sexta-feira, 3 de abril de 2020

Voltar ao nosso trapo



«Melhor fora se não tivéssemos entrado nela, - na União Europeia - CEE, de seu nome primeiro.» - é o que pensam alguns. Agora, que nos servimos à grande e à “portuguesa” dos euros que nos ajudaram a criar espaços e tecnologias de maior envergadura, e sem os quais a sociedade portuguesa continuaria arrimada à canga dos seus prestáveis animais e talvez utensílios primitivos, em virtude dos danos económicos e políticos trazidos por uma revolução destruidora do capital acumulado nos governos anteriores, de ditadura e tacanhez económica mas mais honrada e modesta do que a do liberalismo que se lhe seguiu, de importação ideológica (e pecuniária de empréstimo), mas decididamente eficaz na modernização, conquanto de retrocesso intelectual - mau grado as aparências da multiplicidade de “cursos superiores” e da explosão “educativa” (de pouca consistência, todavia, que o clima de indisciplina generalizada facultou) – agora, pois, que um “coronavírus” nos arruína de vez (como aos demais países, pelo mundo), voltamos a exigir o auxílio da U E, desta vez ainda mais renitente e altiva, dando azo a teorias sobre o desfazer da dita União, de falsa democracia e generosidade, afinal, por parte dos países de maior velocidade e equilíbrio financeiro.
Paulo Tunhas pranteia mesmo, com saudosismo, os seus tempos de privilegiado viageiro por museus e arte, lamentando que não mais isso seja possível, com o espectro da destruição possível dessa União. Mas, entre os seus comentadores, há os que, como Agostinho da Silva, citado por readbeat algorithms, nada quisera com a União, palrando despudoradamente sobre o “Portugal dos pequeninos” (que o fomos sempre todos nós), avesso a uma modernização dignificadora - «Não querermos para nada essa porcaria de ser europeu». Ainda há quem assim pense, hoje. Mas parece-me isso ingratidão.
Ai de nós, de resto, se a União for ao ar - o que talvez aconteça, manta de trapos a desfazer-se…

A Europa de ontem /premium
Como não perceber os governos alemães, holandeses, austríacos e finlandeses, são directamente responsáveis, em virtude da democracia, convém lembrá-lo, perante a vontade dos seus eleitores?
OBSERVADOR, 02 abr. 2020, 07:52
É claro que o próximo verdadeiro problema vai ser a terrível miséria que por aí grassará quando a pandemia começar a desaparecer. Trabalhadores e empresários, e com eles a sociedade inteira, têm os mais negros dias pela frente e os tempos da troika parecerão retrospectivamente uma brincadeira de menino de coro. A única reserva que esta consideração merece vem do optimismo implícito em pensar-se num futuro independente deste presente, porque ninguém sabe quanto ele vai durar e se não está destinado a repetir-se ciclicamente. De qualquer maneira, os sinais estão um pouco por todo o lado e não enganam. Nos países com maior tradição de dinamismo económico, por maior que seja a destruição, haverá sem dúvida uma laboriosa recuperação. Nos que a não têm, como Portugal, ela é muito mais difícil de conceber. Preparem-se para o pior, que o pior é certo.
Ou então, se tiverem a sorte e o luxo de poder pensar noutras coisas, pensem noutras coisas. Por estes dias, é o que tenho tentado fazer. Pus-me a ler (num caso, a reler) as obras quase completas de um historiador da pintura francês, Daniel Arasse, morto ainda novo em 2003 com a doença de Charcot (esclerose lateral amiotrófica). Especialista da Renascença italiana, mas tendo escrito também sobre outras épocas e outros autores, de Vermeer a Anselm Kiefer, a sua história da pintura ocupa-se sobretudo dos pequenos detalhes, às vezes quase imperceptíveis, que podemos, se a nossa atenção for chamada por eles, observar em certos quadros: a mosca pousada sobre o joelho de um velho pintado por Georges de La Tour ou um caracol colocado num bordo de uma Anunciação de Francesco del Cossa, entre um sem-número de outros exemplos. Praticando maravilhosamente a arte da descrição, uma velha disciplina da história e da crítica de arte cujo primeiro exemplo, vezes sem conta nomeado desde a Antiguidade, é a descrição – os gregos diziam: ekphrasis – do escudo de Aquiles na Ilíada e que a destruição da tradição figurativa e mimética deslocou do primeiro plano para lugares mais remotos, Arasse convida-nos a ver a pintura de perto. E convida-nos igualmente a explorar a singularidade de cada obra de arte: a descrição incide, quase por definição, sobre o que é irredutivelmente singular, não há descrição – pode eventualmente haver explicação, amputada da compreensão que a descrição idealmente fornece – do geral.
Estes dias passados com Arasse trouxeram-me a vontade, impossível de satisfazer por estes tempos, de ver de perto pintura em museus. E com essa vontade, a nostalgia de uma vida passada. Grande parte dos anos noventa do século passado vivi em Paris, com toda a Europa relativamente próxima. O que me permitiu ver, alguns várias vezes, os grandes museus europeus: além dos franceses, é claro, os ingleses, alemães, holandeses, belgas, espanhóis e sobretudo os italianos, de Milão a Nápoles. A maravilha da beleza da pintura, a possibilidade do prazer de a ver de perto, em carne e osso, como uma presença com a força toda da evidência, iluminando por dentro as cidades na qual se encontra e da qual faz parte, é ainda hoje para mim uma recordação de pura felicidade e, mesmo conhecendo alguns dos magníficos museus americanos, uma parte maior do significado que a palavra “Europa” tem para mim. Infelizmente – por várias razões que não se prendem todas com a natureza dos tempos presentes -, é uma Europa de ontem, não uma Europa de hoje.
Para além da catástrofe da pandemia e das terríveis sequelas que trará, a Europa de hoje não pode ser pensada fora das permanentes discussões em torno da “União Europeia”. Ora, mesmo que a União Europeia tenha indiscutíveis benefícios – e eu serei o último a negá-los -, a verdade é que a violência exercida sobre as condições quase antropológicas da vida dos povos – aquilo que um filósofo chamava a “insociável sociabilidade” –, traz consigo, junto com a tendência centrípeta que a anima, uma tendência centrífuga não menos forte, que está directamente na origem dos vários nacionalismos que idealmente deveria contrariar. Esta consideração não me parece excessivamente interpretativa, relevando antes da ordem do factual. Daí a tensão permanente que se observa na Europa e que os especialistas no capítulo – e é significativo que as questões europeias se tenham tornado objecto quase exclusivo de especialistas – recapitulam dia após dia. Leio regularmente, por exemplo, aquilo que Teresa de Sousa, que conhece aquilo de que fala, escreve no Público. Tirando alguns raros momentos de optimismo, eles mesmos problemáticos, o que ressalta o mais das vezes dos seus artigos é uma patente angústia pelos destinos da União, como se a tal insuportável tensão fosse estrutural e não meramente conjuntural.
O último episódio desta tensão gira em torno dos célebres “coronabounds”. Devem eles ser criados – algo que, segundo li, a burocracia europeia só poderia pôr em prática daqui a três anos – ou devem eles ser recusados? É óbvio que para um país como Portugal (e a mim pessoalmente) davam um jeito dos diabos, para falar de uma forma delicada, tal como o davam à Espanha, à Itália e a vários outros países. Mas como não perceber os governos alemães, holandeses, austríacos e finlandeses, são directamente responsáveis, em virtude da democracia, convém lembrá-lo, perante a vontade dos seus eleitores? Pôr as coisas em termos de “egoísmo” é reduzir a tensão – e, já agora, a equivocidade – da União Europeia, que permite a indecidibilidade entre as duas posições, ambas possíveis e incompatíveis, a um plano psicológico que falseia a questão. O “repugnante” do nosso António Costa, desdobrado num “re-pug-nan-te” que tem pelo menos o mérito de preservar todas as sílabas, um exercício ao qual ele se poderia dedicar mais assiduamente, além de fazer pensar numa versão actualizada do Finis patriae de Guerra Junqueiro, agora com os cadáveres de ministros holandeses a boiarem, cortados às postas, num canal de Amsterdão, participa dessa mesma redução do político, com a sua legitimidade própria, ao psicológico e moral.
Saudades da Europa de ontem, a de antes do coronavírus e dos últimos estádios da infiltração da sua ideia pela de União Europeia. O melhor é, nestes tempos de reclusão, voltar às moscas e aos caracóis de Arasse e esperar que as nossas prevenções próprias e, sob uma forma ou outra, a solidariedade entre os europeus, diminuam os males presentes e os males a vir, sabendo que o mau tempo está para durar e que a Europa de ontem já não existe.
COMENTÁRIOS
Manuel Cabral: Caro Paulo, muito bem escrito como de costume e muito 'interessante' pela deriva pictórica que partilhamos. Em contrapartida, como aliás já tinha reparado antes, acho que não coloca bem a questão europeia e o lugar de Portugal na UE. Provavelmente, os 'coronabonds' acabarão por ir para a frente mas, com o governo que temos, não aproveitaremos de certeza a oportunidade de nos 'emendar' não só económica mas tb politicamente, acho eu!
victor guerra: A Europa de ontem, é de hoje e será de sempre
José Paulo C Castro: Não é só a Europa. O mundo de ontem já não existe. A globalização foi um factor na transmissão da pandemia. E isso vai estar presente na mente de todos. Os ganhos da globalização podem esfumar-se perante estes 'cisnes negros'. A resiliência fica no modelo das cidades-estado, da economia local e sustentável a nível local. Nem sequer com o das nações, noção cultural que tem de se submeter a critérios locais de proximidade para resistir. Há nações que coincidem com cidades-Estado, outras não pela sua dimensão. É preciso definir de vez quais os critérios de colaboração e união entre países e aqueles que têm de ser mantidos a nível local. Acabaram as utopias internacionalistas. Resistirá quem conta com o que tem e produz por si. 
Pérolas a porcos: Ao mesmo tempo que esse haverá outro. É que a pandemia não irá desaparecer se continuarmos a aceitar migrantes, e sem fronteiras internas. Como não se sabe de onde vêm as pessoas nem por onde andaram, seria necessário não apenas testar toda a gente, mas pô-los todos de quarentena. Isso não é exequível à escala das fronteiras externas, nem dentro do próprio espaço Schengen. E quem é que aceita meter-se num avião mais de duas horas com outros 200 passageiros de várias nacionalidades, vindos de vários destinos, sem ter a certeza de que nenhum deles está infectado?... E a seguir haverá outro problema: a criminalidade e a segurança.
josé maria > Pérolas a porcos: Os colarinhos brancos que vão divertir-se nas estâncias de ski austríacas, esses, ficam imunes ao vírus
josé maria: Aqui está uma prova de como o Observador cumpre a sua palavra quando assevera que todos os conteúdos sobre a covid 19 seriam abertos ao público...
José Paulo C Castro > josé maria: Este não tem tag 'coronavírus'. O assunto é outro.
Ana Brito: Nunca precisámos da União Europeia para nos sentirmos europeus, estávamos unidos por uma cultura comum, a mesma civilização. O que aconteceu às nossas raízes, ao nosso orgulho sob o domínio centralista da UE? Estamos pobres, duvidamos de nós, temos vergonha de defender a nossa identidade, como se tivéssemos menos direitos do que os outros, enfim... ...trocamos segurança económica por valores e agora desvanecem os dois. Um futuro incerto que nos traz muitas preocupações porque pensamos em nós, nos que nos são próximos, nos nossos vizinhos, compatriotas e depois nos espanhóis, franceses ...tudo por esta ordem, a UE não existe, é instrumental, o que existe são os seculares países europeus e o seu enorme património civilizacional. Havemos de sobreviver.
readbeat algorithms > Ana Brito:  “Porque o dinheiro que vinha da Europa era só para fazer os portugueses europeus. Não querermos para nada essa porcaria de ser europeu. Queremos é repetir aos europeus que não vão ter outro remédio senão submeter-se ao que é a cultura portuguesa e fabricar um mundo que não tenha pressões económicas, e que as crianças estejam livres, e que não haja prisões para ninguém. O português diz «é preciso ser soldado enquanto há guerra». Mas quando a guerra acaba desmobiliza as tropas e cada um dance como lhe apeteça, inteiramente à sua vontade, que é o que tem sucedido no fim de todas a guerras. Vamos acabar com a guerra contra as carências? Então vamos embora! Temos de pensar no mundo, mas é bom aplicar-se também a pensar em Portugal. Vamos a ver se todos os portugueses têm fruta... a de comer, a fruta de saber e a fruta de ter saúde. Com o tal ideal de que todo o português coma o que quer, quando lhe apetece e quando lhe apeteça, que tenha curiosidades que sejam satisfeitas e que todos os médicos lutem para fechar os consultórios. Para que realmente triunfe a saúde e não estejamos sempre ocupados com a doença que é uma grandessíssima maçada. Agostinho da Silva

Nenhum comentário: