sexta-feira, 10 de abril de 2020

Os pequenos estiletes da vida



Quando nos sentimos insignificantes no meio dos ilustres, que desempenham o seu próprio papel de prestigiados, no relativismo de toda a condição humana… Memórias que um presente de clausura favorece.
CLAUSURA – 8  -  CALA E COME
Henrique Salles da Fonseca
A BEM DA NAÇÃO, 10.04.20
Este regime de clausura tem vantagens para quem tem centros serenos de interesse como o estudo. No meu caso, de temas que não pertenceram à minha formação básica - a cultura clássica, a filosofia e outras «coisas» do género de que só tinha tido umas lambuzadelas no Liceu. Mas tenho que mudar de tipo de letra de vez em quando e é por isso que alterno entre Nietzsche, Raymond Aron e uma biografia de S. Paulo escrita por um bispo anglicano[i]. Mas, mesmo assim, tenho que descansar mais do que gostaria. Vai daí, cumpro as orientações oficiais de não fazer absolutamente nada para salvar a Humanidade. E foi assim que hoje me lembrei…
… da minha avó, Clotilde Madeira Branquinho, da Fonseca de casada.
Ela e a irmã, Felismina, um pouco mais velha, eram meninas prendadas, potencialmente conservadoras, integradas numa sociedade quase hierocrática em Mortágua, nascidas em finais do séc. XIX mas ambas escolheram casar com homens progressistas. A tia Felismina casou com José Lopes de Oliveira e a minha avó casou com José Tomás da Fonseca, ambos literatos e possuidores de vastíssima cultura, nomeadamente clássica. À maneira da época, as irmãs não fizeram estudos formais mas também não aprenderam piano nem francês. Aliás, a minha avó sempre se queixou de nunca ter aprendido línguas.
E, já no Outono da vida, a ouvi muitas vezes lastimar-se de só poder ver as fotografias do National Geographic Magazine cujas legendas a minha mãe, nora dela, lhe ia traduzindo. Em compensação, tratava por «tu» a literatura portuguesa. Não fazia alarde dos seus conhecimentos mas, de vez em quando, citava uma ou outra passagem camiliana, queiroziana ou mesmo mais antigas.
Certa vez, já encartado, levei os meus avós (que, como era habitual, estavam a passar o Verão em nossa casa em Cascais) à Malveira, para jantarmos em casa dos meus tios (o escritor Branquinho da Fonseca). E assim foi que nos vimos sentados à mesa com Jorge Amado e Zélia Gatai.
A minha tia tinha acabado de traduzir o Le rouge et le noir, de Stendhal, pelo que também se enquadrava na classe literata. Como era de esperar, a minha avó e eu deliciámo-nos a ouvir toda a erudição que por ali fluía e só abríamos a boca para comer ou para responder a quem se nos dirigisse. Jantar bem interessante, sem dúvida, mas nesta coisa de pôr literatos a falar, não se consegue fazer um resumo para contar aqui do que se tratou. Mas lembro-me de que ninguém falou das suas próprias obras, todos mostraram conhecer as obras dos outros. A minha avó e eu também não falámos das nossas obras porque, pura e simplesmente, não as tínhamos.
Até que o jantar acabou. Mas ficámos todos sentados à mesa com a conversa a seguir…
Chegados à hora regulamentar, despedidas feitas, foram as ilustres visitas conduzidas a Lisboa e nós voltámos para Cascais. Eu ao volante, o meu avô ao meu lado e a minha avó no banco de trás. E foi então que ela começou a falar. Não comentando o que tinha sido dito mas apenas imitando o sotaque brasileiro numas quantas frases de que mais gostara. E foi um fartote de riso da Malveira até Cascais.
Fim de citação.
Amanhã há mais.
(continua)
Abril de 2020
Henrique Salles da Fonseca


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