“A
cidade” e “da cidade”
e “civis, civis”, “o cidadão” e “do
cidadão”, respectivamente nominativos e genitivos, ambas as palavras
pertencentes à terceira declinação latina. Vem este intróito no sentido de
apoiar o pensamento de António Barreto, que
atribui a verdadeira cidadania ao habitante da cidade, por mérito etimológico.
Quanto à sua visão dramática ou crítica de pensamentos alheios sobre a situação
de “apagão” criada por um diabólico corona-vírus, dos inconformistas ou dos seus apoiantes, de pesadelo, pois, ou de deslumbramento – alguns comentadores
lhe respondem. A mim penaliza-me, embora eu não goste de ajuntamentos nem de
manifestações nem do excesso de ruídos, mas o movimento normal das ruas ou dos
estabelecimentos vários parece-me reconfortante, e desoladora a sua ausência,
como paisagem desértica ou até lunar, alucinatórias. Mas entre os cidadãos das
cidades, e os cidadãos das aldeias, apesar dos casos dolosos naturalmente mais
expressivos nas cidades, julgo que nestas, se pode andar mais à vontade, na
indiferença que os comportamentos alheios merecerão, ao contrário do que sucede
nas aldeias, onde a coscuvilhice e o beatismo, de longa data estimulado nas
igrejas, e na falta também de estabelecimentos educacionais de um nível acima
da escolaridade primeira – que, aliás, até essas escolas desapareceram em
aldeias onde elas já existiram – a coscuvilhice, digo, o beatismo e a pobreza
mental dos seus habitantes tornam a vivência mais complicada ali. Não esqueço
que os meus pais, vindos de África, e numa primeira fase habitando a aldeia
onde nasceu a minha mãe, tiveram que sair bem depressa dali, já por reserva
natural do meu pai, já pela condenação das pessoas pelo facto de não
frequentarem a missa, em manifesta atitude de ostracismo contra o livre
pensamento.
OPINIÃO CORONAVÍRUS
As cidades mortas
As cidades desta epidemia são cidades
sem vida, paradas no tempo, sem alegria, são cidades cemitérios. São cidades
depois da bomba de neutrões que poupa as coisas, mas mata os seres humanos e os
animais.
PÚBLICO, 12 de
Abril de 2020
Em tempos difíceis, ouvem-se frases
inesperadas e lêem-se pensamentos surpreendentes. Entre estes últimos, um dos mais espantosos diz
respeito às cidades. Ao estado em
que se encontram. Desertas! Silenciosas. Sem turistas. Sem movimento. Sem
ruído. Sem buzinas. Sem poluição. Há quem diga explicitamente “Ai que bom!
Deveria ser sempre assim”. Ou então “Assim é que a cidade é bonita e dá vontade
de viver!”. Há quem pense e quem diga a sério que as cidades não deveriam
receber mais turistas (pelo menos tantos…), nem cruzeiros (se fossem menos…),
nem estrangeiros (a não ser os que se portam bem…). E também não deveria haver
automóveis (a não ser os nossos…). Nem autocarros ou aviões por cima das
cabeças. Há quem pense que o exemplo das cidades durante a epidemia deveria ser
uma lição e levar as autoridades a fazer com que as cidades, depois, um dia,
fossem mais ou menos o que são hoje: quase desertas. Ou com a beleza do
silêncio dos cemitérios.
Tanto
disparate! Sabe-se que a morte pode ser fotogénica e que a dor dos outros pode
ser atraente. Mas daí a estabelecer a beleza destas
cidades mortas vai um passo que roça a loucura ou a tolice. Pode
haver sossego em cidades silenciosas e ruas vazias, com comércios fechados
e sem passeantes? Pode haver paz em cidades sem vida, sem
cheiro, sem ruído de fundo e sem agitação? Pode haver alegria em cidades
sem urbano, cidades sem conversa e sem intriga, cidades sem correrias, sem
atrasos, sem reuniões, sem idas para o trabalho, sem escolas, sem crianças e
sem sirenes de ambulâncias? Pode haver cidades sem polícias e ladrões?
As
cidades desta epidemia são cidades sem vida, paradas no tem po, sem
alegria,são cidades
cemitérios. São cidades depois da bomba de neutrões que poupa
as coisas, mas mata os seres humanos e os animais. As cidades com vida são
grandes criações humanas, quase obras de arte, mas sem dúvida obras de
génios, do génio de planeadores e de génios de milhares de indivíduos e de
milhões de decisões que, sem plano, convergem e criam. A cidade é um dos
cumes da criação social. É na cidade que existe cultura, igualdade,
democracia, discussão e tolerância. Sabemos que também pode haver crime, roubo,
doença, acidente, mas tudo isso é nada comparado com a liberdade e a criação
que a cidade nos dá. Nem com a alegria que nos proporciona. Até porque a cidade
também é protecção e segurança.
O
mistério, o encanto e a alegria da cidade foram analisados e cantados pelos
melhores. Por Lewis Mumford
que, apesar da sua visão crítica das cidades contemporâneas, realçou como
poucos a ideia de que a cidade, mais do que matéria e engenharia, é obra de
espírito. Por Italo Calvino
que, melhor do que ninguém, mostrou que as cidades são como os sonhos,
feitos de medos e de desejos. Por Santo Agostinho, que gravou as expressões Cidade de Deus e Cidade
da Terra, com as quais quase resumiu a condição humana. Por Augusto
Abelaira que, na Cidade das Flores, nos
levou, há mais de cinquenta anos, a uma Lisboa disfarçada de Florença, onde
sugeriu que a palavra e a arte acompanhavam os desejos de juventude e que
política e amor podiam andar juntos. Por Jacques Le Goff que nos garantiu que, desde a Idade Média, foram
as cidades que permitiram e criaram as ciências e as letras. E até por Alphonse
Allais que escarnecia dos que vociferavam
contra os problemas urbanos, recomendando-lhes que simplesmente deveriam
construir as cidades nos campos!
Para
Marco Polo e o Kublai
Khan, segundo Calvino, havia pelo menos
55 tipos de cidades. É possível. Todas elas com ideia e espírito. Todas
com história e vocação. Todas com um lugar no património da humanidade. E
parece que não há duas cidades iguais. Nem sequer parecidas. Há Veneza,
única. Atenas e Esparta. Cusco e Machu Picchu. Tróia, Cartago e Alexandria.
Babilónia e Roma. Palmira, Constantinopla e Alepo. Foi nas cidades que se
fizeram as universidades e as bibliotecas. Mas também as orquestras e
os museus. Cada cidade é um resumo de vida e de história. Há nomes de
cidades que nem precisam de ser ilustrados. A Cidade Proibida, da
autoridade. A Cidade Aberta, da liberdade. A Cidade República e a Cidade
Império. A Cidade de Arte. A Cidade Antiga. A Cidade Medieval. A Cidade
Ideal, do Renascimento. A Cidade Industrial. A Cidade Luz. A Cidade do Vinho.
Ou a Cidade ao lado das Serras. E as duas cidades das cenas no tempo da
revolução francesa! Há cidades mágicas, invisíveis, felizes, operárias,
financeiras e burguesas. O que não há são cidades mortas,
cidades desertas, cidades cemitérios, cidades ruínas… Ou antes, não deveria
haver. São contradições nos termos.
Um
povo sem cidade é um povo triste. Ou atrasado. Ou conquistado. Ou escravo. O Imperador louco pegou fogo à cidade, Roma. Os
deuses destruíram e castigaram as cidades de maus costumes, Sodoma,
Gomorra e Pompeia. Quando
fizeram campos de concentração na Alemanha, esvaziaram cidades. Quando sonharam
com a reeducação de cidadãos na China, foram estes enviados para o campo.
Quando pretenderam castigar os adversários e os homens livres na Rússia, foram
deslocados para os campos. Quando os tiranos desejaram consolidar o seu poder
no Camboja, tiraram milhões de pessoas das cidades. Napoleão e Hitler queriam
as cidades, quiseram Moscovo, em Moscovo esbarraram e a guerra perderam. Os ditadores não se sentem bem nas cidades. Nem gostam
de quem vive nas cidades, porque a liberdade é citadina. E porque cidadania vem
de cidade.
As cidades são antros de crime e pecado. Têm
noites malvadas e esquinas fatais. Têm escadinhas de droga e de assalto. Têm
becos de má fama e calçadas de reputação duvidosa. Têm tango e fado. Têm
esplanadas de espiões e mirones. Têm especuladores e açambarcadores. Têm
criança abandonada, mulher explorada, homem bandido, velho adoentado e jovem
batido. Têm minorias oprimidas e máfias tribais. As cidades têm crime e doença,
têm violência e drama, mas é nas cidades que encontramos o
sentido criativo, a invenção e o progresso. As cidades têm exploração e
despotismo, mas é nas cidades que temos liberdade. Aliás, a liberdade é urbana.
Sociólogo
TÓPICOS
COMENTÁRIOS:
Fowler Fowler
INICIANTE: Antes do “Liberty for all”, a liberdade
era um privilégio apenas de alguns. Nesse tempo, os agricultores lutaram pela
sua liberdade, contra os desmandos dos senhores das terras. No século XX, em
Portugal, encontramos no centro e sul do país trabalhadores rurais a lutarem
pela liberdade e dignidade da classe. Por isso, vir dizer que “a liberdade é
urbana” é um engano. A não ser que o sociólogo esteja a pensar nele próprio,
uma vez que sofre do trauma de ter crescido numa pequena cidade de província
durante o Estado Novo, e na vantagem do anonimato que a urbe proporciona,
sobretudo nos costumes.
INICIANTE: belíssimo texto
literário. acho que AB não tem que ser científico em tudo o que escreve. a
literatura ensaia as verdades, que às vezes não se verificam. eu cá gostei,
muito, mesmo que as coisas (as cidades) possam não ser exactamente tudo isso
Fowler Fowler INICIANTE: Sim, um
vendedor da banha-de-cobra. Quase sempre inspirado e eficaz no discurso.
SantosGuerreiro INICIANTE: A designação é forte, provoca eco, mas é desajustada.
As cidades estão recolhidas, mas vivas. Como orgânica que é, a Cidade
recolheu-se para sobreviver ao que lhe é estranho, ao vírus. O silêncio que se
sente não é morte, é recolhimento.
Jose MODERADORE: não
por acaso ou milagre, vem dos campos o que mantém a vida das cidades. As vivas,
as adormecidas, as recolhidas, as contemplativas, as belas, delicadas, duras,
vetustas, luminosas, perdidas no nevoeiro... Enquanto há mãos na terra, na
massa...
INICIANTE: "A liberdade é urbana." é das frases
mais estúpidas e sem sentido que já li. É uma pena AB gagalizar-se assim. Já
foi lúcido.
A. Martins INICIANTE:Entendi a frase de A. B. como sendo, nas cidades que se
conquista a Liberdade. Perante as ditaduras é nas cidades que se conquista a
Liberdade. Mesmo contra este vírus, só seremos livres quando o tivermos
erradicado das cidades.
Sandra MODERADOR: Sempre tive para mim como muito injusta, por vezes
enganatória, a desmoralização que, por vezes se tem, dos cidadãos que habitam a
urbe, como se fossem mais frios, mais superficiais, menos gente. Não vejo as
coisas desse modo. Em termos de relações pessoais, é um facto que, nas aldeias,
o número de relações primárias suplanta o número de relações secundárias,
terciárias, como se, por si só, esse estreitamento nas relações primárias fosse
garante de alguma coisa. Não é, ou, pelo menos, já não o é.
"Benefícios" da globalização. Ao invés, nas cidades, as relações secundárias
estendem-se como ramos, humanizam-nos.
Sandra MODERADOR: Pela parte que me toca, tenho muitas, muitas saudades,
das pessoas, da minha cidade à espera, da minha Lisboa que não está morta, está
apenas em suspenso, a aguardar, tal como nós.
rafael.guerra EXPERIENTE: A palavra "enganatória" seria um outro
benefício da globalização? Quanto às relações "primárias" nas
aldeias, a palavra é bem apropriada e não "enganatória"...
Sandra MODERADOR: Rafael, substitua enganatória por enganadora, caso
prefira. Nada tenho contra as aldeias, embora confesse que sou citadina por
natureza. Não creio que se seja melhor pessoa por vivermos mais isolados, com
menos gente, interagindo apenas com o nosso grupo restrito, relações primárias.
Nas cidades, por circunstâncias da vida, muitas das vezes essas ditas relações
primárias, chame-lhe familiares se preferir, são de certa forma substituídas
por um imenso número de gentes que formam o nosso núcleo de contactos, sejam
eles os empregados dos cafés, bares e restaurantes que frequentamos, o quiosque
onde compramos o café, os motoristas dos transportes públicos que utilizamos
anos a fio, todos eles fazem A Cidade viva. Eu gosto assim, nada contra as
aldeias.
rafael.guerra EXPERIENTE: Cidades mortas, com ou sem coronavirus, são inúmeras
cidades americanas, cujos centros estão desertos à noite e ao fim de semana.
Numa tarde de sábado não se encontra uma alma no centro de Houston, onde nessa
altura a vida só existe nos centros comerciais. Pelo menos no velho continente,
mesmo durante o isolamento, ainda cheira à boa cozinha caseira, essa ainda não
morreu...
Fowler Fowler INICIANTE: O sociólogo das banalidades tem toda a
razão: a liberdade é urbana. No campo, como sabemos, um cidadão, no exercício
da sua intelectualidade, corre o risco de ser preso.
viana EXPERIENTE: António Barreto no "seu melhor". Incapaz de
pensar o futuro, pois nada pode ser melhor, nada pode ser tentado para ser
melhor. Se for tentado, vai ficar pior. Para ele, talvez, preso no passado, e
na sua vida confortável. A Liberdade é muito mais do que conversas entre
intelectuais, no conforto das suas casas, e a possibilidade de escrever em
jornais. Protegido pelo Poder que emana da Cidade. Cegos são os que se acham
livres na sombra do Poder.
Fun.eduardoferreira.883473 INICIANTE: Sim, a
“liberdade” no sentido intelectual do termo. As cidades são a plataforma onde
as ideias se discutem, se disseminam. Por ser ponto de encontro, são ponto de
cruzamento de ideias sobre modelos de sociedade. É a isso que o autor se
refere. Nada tem a ver com a liberdade sensorial que acontece fora das cidades.
Claro que existem também os fenómenos urbanos que rivalizam com essa liberdade
intelectual como são a massificação e o primado da igualdade geradora de
conflitos que podem corromper essa liberdade, mas isso é outra discussão.
AndradeQB MODERADOR: Os filmes futuristas mostram as cidades vazias como
espaços desolados e penso que os actuais elogios a esse vazio também não
corresponderão ao sentimento mais generalizado de quem passa por uma rua vazia.
Sendo isso verdade, e até que as cidades sejam tudo que António Barreto diz, a
sua vantagem, para além de encurtar o comprimento da rede de distribuição de
água e do conhecimento, é o de facilitar a liberdade individual, que a mistura
numa multidão permite, e a concentração de poder que, ter os apoiantes e os
inimigos debaixo de olho, proporciona. Daí que, como se constata, o poder é
mais democrático quando num país existem muitas cidades com dimensão
equilibrada, do que naqueles em que uma cidade concentra o poder. As cidades
também podem ser boas e más.
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