segunda-feira, 13 de abril de 2020

Civitas, civitatis



“A cidade” e “da cidade” ecivis, civis”, “o cidadão” e “do cidadão”, respectivamente nominativos e genitivos, ambas as palavras pertencentes à terceira declinação latina. Vem este intróito no sentido de apoiar o pensamento de António Barreto, que atribui a verdadeira cidadania ao habitante da cidade, por mérito etimológico. Quanto à sua visão dramática ou crítica de pensamentos alheios sobre a situação de “apagão” criada por um diabólico corona-vírus, dos inconformistas ou dos seus apoiantes, de pesadelo, pois, ou de deslumbramento – alguns comentadores lhe respondem. A mim penaliza-me, embora eu não goste de ajuntamentos nem de manifestações nem do excesso de ruídos, mas o movimento normal das ruas ou dos estabelecimentos vários parece-me reconfortante, e desoladora a sua ausência, como paisagem desértica ou até lunar, alucinatórias. Mas entre os cidadãos das cidades, e os cidadãos das aldeias, apesar dos casos dolosos naturalmente mais expressivos nas cidades, julgo que nestas, se pode andar mais à vontade, na indiferença que os comportamentos alheios merecerão, ao contrário do que sucede nas aldeias, onde a coscuvilhice e o beatismo, de longa data estimulado nas igrejas, e na falta também de estabelecimentos educacionais de um nível acima da escolaridade primeira – que, aliás, até essas escolas desapareceram em aldeias onde elas já existiram – a coscuvilhice, digo, o beatismo e a pobreza mental dos seus habitantes tornam a vivência mais complicada ali. Não esqueço que os meus pais, vindos de África, e numa primeira fase habitando a aldeia onde nasceu a minha mãe, tiveram que sair bem depressa dali, já por reserva natural do meu pai, já pela condenação das pessoas pelo facto de não frequentarem a missa, em manifesta atitude de ostracismo contra o livre pensamento.
OPINIÃO CORONAVÍRUS
As cidades mortas
As cidades desta epidemia são cidades sem vida, paradas no tempo, sem alegria, são cidades cemitérios. São cidades depois da bomba de neutrões que poupa as coisas, mas mata os seres humanos e os animais.
PÚBLICO, 12 de Abril de 2020
Em tempos difíceis, ouvem-se frases inesperadas e lêem-se pensamentos surpreendentes. Entre estes últimos, um dos mais espantosos diz respeito às cidades. Ao estado em que se encontram. Desertas! Silenciosas. Sem turistas. Sem movimento. Sem ruído. Sem buzinas. Sem poluição. Há quem diga explicitamente “Ai que bom! Deveria ser sempre assim”. Ou então “Assim é que a cidade é bonita e dá vontade de viver!”. Há quem pense e quem diga a sério que as cidades não deveriam receber mais turistas (pelo menos tantos…), nem cruzeiros (se fossem menos…), nem estrangeiros (a não ser os que se portam bem…). E também não deveria haver automóveis (a não ser os nossos…). Nem autocarros ou aviões por cima das cabeças. Há quem pense que o exemplo das cidades durante a epidemia deveria ser uma lição e levar as autoridades a fazer com que as cidades, depois, um dia, fossem mais ou menos o que são hoje: quase desertas. Ou com a beleza do silêncio dos cemitérios.
Tanto disparate! Sabe-se que a morte pode ser fotogénica e que a dor dos outros pode ser atraente. Mas daí a estabelecer a beleza destas cidades mortas vai um passo que roça a loucura ou a tolice. Pode haver sossego em cidades silenciosas e ruas vazias, com comércios fechados e sem passeantes? Pode haver paz em cidades sem vida, sem cheiro, sem ruído de fundo e sem agitação? Pode haver alegria em cidades sem urbano, cidades sem conversa e sem intriga, cidades sem correrias, sem atrasos, sem reuniões, sem idas para o trabalho, sem escolas, sem crianças e sem sirenes de ambulâncias? Pode haver cidades sem polícias e ladrões?
As cidades desta epidemia são cidades sem vida, paradas no tem po, sem alegria,são cidades cemitérios. São cidades depois da bomba de neutrões que poupa as coisas, mas mata os seres humanos e os animais. As cidades com vida são grandes criações humanas, quase obras de arte, mas sem dúvida obras de génios, do génio de planeadores e de génios de milhares de indivíduos e de milhões de decisões que, sem plano, convergem e criam. A cidade é um dos cumes da criação social. É na cidade que existe cultura, igualdade, democracia, discussão e tolerância. Sabemos que também pode haver crime, roubo, doença, acidente, mas tudo isso é nada comparado com a liberdade e a criação que a cidade nos dá. Nem com a alegria que nos proporciona. Até porque a cidade também é protecção e segurança.
O mistério, o encanto e a alegria da cidade foram analisados e cantados pelos melhores. Por Lewis Mumford que, apesar da sua visão crítica das cidades contemporâneas, realçou como poucos a ideia de que a cidade, mais do que matéria e engenharia, é obra de espírito. Por Italo Calvino que, melhor do que ninguém, mostrou que as cidades são como os sonhos, feitos de medos e de desejos. Por Santo Agostinho, que gravou as expressões Cidade de Deus e Cidade da Terra, com as quais quase resumiu a condição humana. Por Augusto Abelaira que, na Cidade das Flores, nos levou, há mais de cinquenta anos, a uma Lisboa disfarçada de Florença, onde sugeriu que a palavra e a arte acompanhavam os desejos de juventude e que política e amor podiam andar juntos. Por Jacques Le Goff que nos garantiu que, desde a Idade Média, foram as cidades que permitiram e criaram as ciências e as letras. E até por Alphonse Allais que escarnecia dos que vociferavam contra os problemas urbanos, recomendando-lhes que simplesmente deveriam construir as cidades nos campos!
Para Marco Polo e o Kublai Khan, segundo Calvino, havia pelo menos 55 tipos de cidades. É possível. Todas elas com ideia e espírito. Todas com história e vocação. Todas com um lugar no património da humanidade. E parece que não há duas cidades iguais. Nem sequer parecidas. Há Veneza, única. Atenas e Esparta. Cusco e Machu Picchu. Tróia, Cartago e Alexandria. Babilónia e Roma. Palmira, Constantinopla e Alepo. Foi nas cidades que se fizeram as universidades e as bibliotecas. Mas também as orquestras e os museus. Cada cidade é um resumo de vida e de história. Há nomes de cidades que nem precisam de ser ilustrados. A Cidade Proibida, da autoridade. A Cidade Aberta, da liberdade. A Cidade República e a Cidade Império. A Cidade de Arte. A Cidade Antiga. A Cidade Medieval. A Cidade Ideal, do Renascimento. A Cidade Industrial. A Cidade Luz. A Cidade do Vinho. Ou a Cidade ao lado das Serras. E as duas cidades das cenas no tempo da revolução francesa! Há cidades mágicas, invisíveis, felizes, operárias, financeiras e burguesas. O que não há são cidades mortas, cidades desertas, cidades cemitérios, cidades ruínas… Ou antes, não deveria haver. São contradições nos termos.
Um povo sem cidade é um povo triste. Ou atrasado. Ou conquistado. Ou escravo. O Imperador louco pegou fogo à cidade, Roma. Os deuses destruíram e castigaram as cidades de maus costumes, Sodoma, Gomorra e Pompeia. Quando fizeram campos de concentração na Alemanha, esvaziaram cidades. Quando sonharam com a reeducação de cidadãos na China, foram estes enviados para o campo. Quando pretenderam castigar os adversários e os homens livres na Rússia, foram deslocados para os campos. Quando os tiranos desejaram consolidar o seu poder no Camboja, tiraram milhões de pessoas das cidades. Napoleão e Hitler queriam as cidades, quiseram Moscovo, em Moscovo esbarraram e a guerra perderam. Os ditadores não se sentem bem nas cidades. Nem gostam de quem vive nas cidades, porque a liberdade é citadina. E porque cidadania vem de cidade.
As cidades são antros de crime e pecado. Têm noites malvadas e esquinas fatais. Têm escadinhas de droga e de assalto. Têm becos de má fama e calçadas de reputação duvidosa. Têm tango e fado. Têm esplanadas de espiões e mirones. Têm especuladores e açambarcadores. Têm criança abandonada, mulher explorada, homem bandido, velho adoentado e jovem batido. Têm minorias oprimidas e máfias tribais. As cidades têm crime e doença, têm violência e drama, mas é nas cidades que encontramos o sentido criativo, a invenção e o progresso. As cidades têm exploração e despotismo, mas é nas cidades que temos liberdade. Aliás, a liberdade é urbana.
Sociólogo
TÓPICOS
COMENTÁRIOS:
Fowler Fowler INICIANTE: Antes do “Liberty for all”, a liberdade era um privilégio apenas de alguns. Nesse tempo, os agricultores lutaram pela sua liberdade, contra os desmandos dos senhores das terras. No século XX, em Portugal, encontramos no centro e sul do país trabalhadores rurais a lutarem pela liberdade e dignidade da classe. Por isso, vir dizer que “a liberdade é urbana” é um engano. A não ser que o sociólogo esteja a pensar nele próprio, uma vez que sofre do trauma de ter crescido numa pequena cidade de província durante o Estado Novo, e na vantagem do anonimato que a urbe proporciona, sobretudo nos costumes.
INICIANTE: belíssimo texto literário. acho que AB não tem que ser científico em tudo o que escreve. a literatura ensaia as verdades, que às vezes não se verificam. eu cá gostei, muito, mesmo que as coisas (as cidades) possam não ser exactamente tudo isso
Fowler Fowler INICIANTE: Sim, um vendedor da banha-de-cobra. Quase sempre inspirado e eficaz no discurso.
SantosGuerreiro INICIANTE: A designação é forte, provoca eco, mas é desajustada. As cidades estão recolhidas, mas vivas. Como orgânica que é, a Cidade recolheu-se para sobreviver ao que lhe é estranho, ao vírus. O silêncio que se sente não é morte, é recolhimento.
Sandra MODERADOR: Caro Santos Guerreiro, perfeito, simplesmente perfeito.
Jose MODERADORE: não por acaso ou milagre, vem dos campos o que mantém a vida das cidades. As vivas, as adormecidas, as recolhidas, as contemplativas, as belas, delicadas, duras, vetustas, luminosas, perdidas no nevoeiro... Enquanto há mãos na terra, na massa...
INICIANTE: "A liberdade é urbana." é das frases mais estúpidas e sem sentido que já li. É uma pena AB gagalizar-se assim. Já foi lúcido.
A. Martins INICIANTE:Entendi a frase de A. B. como sendo, nas cidades que se conquista a Liberdade. Perante as ditaduras é nas cidades que se conquista a Liberdade. Mesmo contra este vírus, só seremos livres quando o tivermos erradicado das cidades.
Sandra MODERADOR: Sempre tive para mim como muito injusta, por vezes enganatória, a desmoralização que, por vezes se tem, dos cidadãos que habitam a urbe, como se fossem mais frios, mais superficiais, menos gente. Não vejo as coisas desse modo. Em termos de relações pessoais, é um facto que, nas aldeias, o número de relações primárias suplanta o número de relações secundárias, terciárias, como se, por si só, esse estreitamento nas relações primárias fosse garante de alguma coisa. Não é, ou, pelo menos, já não o é. "Benefícios" da globalização. Ao invés, nas cidades, as relações secundárias estendem-se como ramos, humanizam-nos.
Sandra MODERADOR: Pela parte que me toca, tenho muitas, muitas saudades, das pessoas, da minha cidade à espera, da minha Lisboa que não está morta, está apenas em suspenso, a aguardar, tal como nós.
rafael.guerra EXPERIENTE:  A palavra "enganatória" seria um outro benefício da globalização? Quanto às relações "primárias" nas aldeias, a palavra é bem apropriada e não "enganatória"...
Sandra MODERADOR: Rafael, substitua enganatória por enganadora, caso prefira. Nada tenho contra as aldeias, embora confesse que sou citadina por natureza. Não creio que se seja melhor pessoa por vivermos mais isolados, com menos gente, interagindo apenas com o nosso grupo restrito, relações primárias. Nas cidades, por circunstâncias da vida, muitas das vezes essas ditas relações primárias, chame-lhe familiares se preferir, são de certa forma substituídas por um imenso número de gentes que formam o nosso núcleo de contactos, sejam eles os empregados dos cafés, bares e restaurantes que frequentamos, o quiosque onde compramos o café, os motoristas dos transportes públicos que utilizamos anos a fio, todos eles fazem A Cidade viva. Eu gosto assim, nada contra as aldeias.
rafael.guerra EXPERIENTE: Cidades mortas, com ou sem coronavirus, são inúmeras cidades americanas, cujos centros estão desertos à noite e ao fim de semana. Numa tarde de sábado não se encontra uma alma no centro de Houston, onde nessa altura a vida só existe nos centros comerciais. Pelo menos no velho continente, mesmo durante o isolamento, ainda cheira à boa cozinha caseira, essa ainda não morreu...
Roberto34 INICIANTE: É verdade, Rafael.
Fowler Fowler INICIANTE: O sociólogo das banalidades tem toda a razão: a liberdade é urbana. No campo, como sabemos, um cidadão, no exercício da sua intelectualidade, corre o risco de ser preso.
viana EXPERIENTE: António Barreto no "seu melhor". Incapaz de pensar o futuro, pois nada pode ser melhor, nada pode ser tentado para ser melhor. Se for tentado, vai ficar pior. Para ele, talvez, preso no passado, e na sua vida confortável. A Liberdade é muito mais do que conversas entre intelectuais, no conforto das suas casas, e a possibilidade de escrever em jornais. Protegido pelo Poder que emana da Cidade. Cegos são os que se acham livres na sombra do Poder.
Manuel Pessoa INICIANTE: A liberdade é urbana? Não me convence!!!
Fun.eduardoferreira.883473 INICIANTE: Sim, a “liberdade” no sentido intelectual do termo. As cidades são a plataforma onde as ideias se discutem, se disseminam. Por ser ponto de encontro, são ponto de cruzamento de ideias sobre modelos de sociedade. É a isso que o autor se refere. Nada tem a ver com a liberdade sensorial que acontece fora das cidades. Claro que existem também os fenómenos urbanos que rivalizam com essa liberdade intelectual como são a massificação e o primado da igualdade geradora de conflitos que podem corromper essa liberdade, mas isso é outra discussão.
AndradeQB MODERADOR: Os filmes futuristas mostram as cidades vazias como espaços desolados e penso que os actuais elogios a esse vazio também não corresponderão ao sentimento mais generalizado de quem passa por uma rua vazia. Sendo isso verdade, e até que as cidades sejam tudo que António Barreto diz, a sua vantagem, para além de encurtar o comprimento da rede de distribuição de água e do conhecimento, é o de facilitar a liberdade individual, que a mistura numa multidão permite, e a concentração de poder que, ter os apoiantes e os inimigos debaixo de olho, proporciona. Daí que, como se constata, o poder é mais democrático quando num país existem muitas cidades com dimensão equilibrada, do que naqueles em que uma cidade concentra o poder. As cidades também podem ser boas e más.


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