domingo, 28 de abril de 2019

Ainda bem que está feliz


A Teresa de Sousa costuma ser pessoa arguta e objectiva, desta vez deixou escapar o lado sensível da sua personalidade, o que a humanizou, abrindo-se às confissões. Só acho que as efusões do passado, dados os desgastes e provavelmente algumas desilusões do presente, deviam fazê-la ponderar um pouco mais na irrelevância desses passados de “liberdade”, que não deixam de ser uma pedrada sobre quem se julgou sempre livre, na obediência e no respeito pelas normas. Mas continuo a admirar TS no seu equilíbrio e competência, e fico contente por se sentir feliz.  
OPINIÃO  A culpa é de Eduardo Ferro Rodrigues
O discurso que Ferro Rodrigues proferiu na sessão solene dos 45 anos do 25 de Abril foi verdadeiro, desassombrado, livre.
TERESA DE SOUSA   PÚBLICO, 28 de Abril de 2019, 7:30
1. Não sou dada a nostalgias, mas 45 anos sempre são 45 anos. Passaram num ápice. A minha geração, moldada pela crise de 69, ela própria uma emanação do Maio de 68, foi demasiado libertária, demasiado rebelde, demasiado radical em todos os sentidos da palavra, demasiado individualista, para se deixar ficar imóvel no tempo ou prisioneira dele. Cada um seguiu o seu caminho. Cada um fez contas consigo próprio à sua maneira. A única herança particular que ficou desses anos que precederam o 25 de Abril – a marca única da crise de 69 – foi a ruptura com o domínio do PCP nas associações de estudantes, abrindo as portas à luta frontal contra a guerra colonial, que não fazia parte dos seus objectivos, limitados às reivindicações por melhores cantinas, por melhores professores e outras coisas razoavelmente modestas e devidamente compartimentadas das lutas operárias. Essa ruptura radical acabou por transformar-se, com o tempo e a maturidade, numa convicção democrática e liberal que, apesar das circunstâncias da vida e dos inúmeros caminhos que cada um seguiu, nos é ainda hoje bastante comum.
2. Naquele “dia inicial inteiro e limpo” – nunca estará gasto o verso de Sophia por mil vezes que seja repetido ­– a manhã acordou cinzenta. Estava frio em Paris. Saí cedo da minha “chambre de bonne” de uma zona nobre da cidade, que era onde havia “chambres de bonne”. O “ménage” começava às 9h no 7.º andar, para continuar no 5.º. Fui recebida com a mais inesperada das notícias: “Têrêsá, il y a une revolution au Portugal”. Já não pus o avental. Nas horas seguintes, a televisão começou a passar as imagens do inacreditável. Não, não digam “coitada”. Os poucos anos de exílio que passei em Paris foram de felicidade. Aprendi a viver em liberdade, a caminhar pelas ruas e a discutir nas esplanadas sem medo de falar alto. A ler o Monde à luz do dia. A percorrer as livrarias de olhar insaciável. Não é sequer preciso ter dinheiro para se ser feliz em Paris. Experimentem pedir “un grand-crème, tartine beurrée” numa esplanada ao pequeno-almoço. Ou, num dia de festa, que o dinheiro era curto, “un croque-monsieur, verre rouge” ao jantar. E, sobretudo, imaginem tudo isto quando se tem vinte anos. Foi nessa manhã cinzenta de Paris que essa outra alegria me chegou. Houve festa em casa dos Gourniki (5.º andar), sempre solidários com quem lutava contra a ditadura em Portugal. Discutiu-se intensamente o golpe militar e o regresso. Alguns de nós partiram no dia 27 de Abril numa velha carrinha “pão-de-forma”, ainda um tanto ou quanto apreensivos. O meu passaporte caducara e, por circunstâncias várias, ainda não tinha recebido o passaporte de refugiado – aquele peculiar passaporte onde se destacava a palavra “apátrida” na nacionalidade. Fiquei, mas tive sorte. O meu pai estava em Bruxelas numa reunião. Passou por Paris. Trouxe-me com ele, creio que no primeiro ou num dos primeiros aviões que aterraram na Portela, quando o aeroporto reabriu. Havia soldados sorridentes e desalinhados na pista, fazendo o V da Vitória. Ainda se atravessava a pista a pé. Ninguém me pediu o passaporte. Houve lágrimas de felicidade. A minha primeira incumbência foi levar ao Sindicato dos Químicos (que tínhamos mantido firmemente fora da alçada do PCP) o “ozalide” com o panfleto que queríamos distribuir no 1.º de Maio. Era o dia 28 de Abril de 1974, o meu dia inicial inteiro e limpo. Mário Soares chegava a Santa Apolónia. Pedi à minha mãe que me levasse a ver o mar. Tinha todo o tempo do mundo. Na mais extraordinária manifestação de que há memória em Lisboa, enquanto Álvaro Cunhal discursava, nós distribuímos o nosso panfleto: “Catarina é do Povo. Não é de Moscovo”. Não houve incidentes. Escutei pela primeira vez em Portugal as palavras poderosas de Mário Soares. Já tinha ido ouvi-lo (para ser franca, contestá-lo) aos seus comícios na Mutualité. Transformou-se rapidamente na minha referência política. Ensinou-me que há uma linha de demarcação intransponível entra a democracia e o resto, definida pela palavra liberdade. Também lhe devo isso, para além de tudo o resto que o país lhe deve.
3. Porquê este regresso a um passado que não interessa a ninguém? A culpa é de Eduardo Ferro Rodrigues e do discurso que proferiu na sessão solene dos 45 anos do 25 de Abril. Verdadeiro, desassombrado, livre. É verdade que a nossa amizade se construiu na crise de 69 em “Económicas”. É verdade que acompanhei aquilo que fez, para lá da política, como investigador do GEBEI (Gabinete de Estudos de Economia Industrial) e dos livros que publicou com dois outros notáveis dirigentes da mesma crise académica na mesma faculdade: José Manuel Félix Ribeiro (são incontornáveis os seus estudos de prospectiva no Gabinete de Estudos e de Planeamento) e Lino Fernandes (que dirigiu a Agência de Inovação nos anos em que outro dirigente da crise de 69, Mariano Gago, revolucionava o ensino superior e a investigação científica em Portugal). Aprendi com eles a compreender a economia portuguesa no seu contexto global e os caminhos possíveis da sua internacionalização e especialização. Como é verdade que é da sua responsabilidade uma das mais profundas “reformas estruturais” – sempre tão reclamadas por alguns mas que se foram fazendo – que foi a publicação do Livro Branco para a reforma da Segurança Social, quando era ministro de Guterres, elogiada à direita e orientada pelas ideias mais reformistas que então se debatiam na Europa sobre o seu modelo social. A sua vida foi sempre a mesma: modesta, de acordo com o salário de um político que, seja qual for o cargo, é inevitavelmente pequeno. Tudo isto eu sabia e sei. O desassombro do seu discurso, a maneira directa e simples com que abordou os dilemas mais fundos e mais essenciais da crise das democracias liberais, incluindo a nossa, dispensando as banalidades de ocasião, olhando sem benevolência para o presente, denunciando sem entrelinhas o que está mal, provocaram-me uma estranha sensação de orgulho. Trouxeram-me à memória os anos em que, muito jovens, moldámos a nossa maneira de ser e de viver. Rebeldes e profundamente livres. Modestos nos nossos hábitos de vida, mas não nos prazeres da vida. Aprendendo que ninguém é dono de nenhuma verdade, nem demasiado fiéis a qualquer disciplina (ou apenas fiéis o necessário). Numa palavra, o que Ferro Rodrigues conseguiu foi lembrar a cada um – políticos, jornalistas, sindicalistas, académicos – as suas responsabilidades, num tempo em que essas responsabilidades são ainda maiores.
4. Já assisti a sessões solenes do 25 de Abril bem mais interessantes. O Presidente fez uma boa intervenção lembrando que os jovens de hoje não querem o mesmo que os jovens dessa altura. O PS cumpriu os mínimos. É o partido fundador da democracia e, por isso, não tem de se justificar perante ninguém. O PCP bem pode ter jovens deputados nas bancadas que muito dificilmente consegue sair do seu quadrado. Teima em que o 25 de Abril é dele e que está quase todo ainda por fazer. Abriu uma porta com a “geringonça” porque luta pela sobrevivência: mais de 40 anos depois, tinha de mostrar ao seu eleitorado que tem alguma capacidade para influenciar o governo, sob pena de se tornar inútil. O Bloco, num difícil exercício de equilíbrio entre um passado demasiado radical e a ilusão do futuro com que sonha (mudar o PS por dentro), resolveu falar do PREC e das ocupações das casas e das minorias oprimidas, numa intervenção anódina. Confesso que me fica sempre uma perplexidade dos discursos do PSD e do CDS: não são capazes de distinguir o 25 de Abril do 25 de Novembro, como se tivesse sido sua a responsabilidade de liderar o confronto final entre os dois caminhos possíveis para revolução: o regresso a uma ditadura ou a consagração da democracia liberal. Limitaram-se a seguir os principais actores dessa ruptura fundamental: o Grupo dos Nove entre os militares e Mário Soares nas ruas e nas praças, confrontando o PCP onde ele se achava invencível mas não era. O PSD lançou-se num furioso discurso de campanha, recuperando o Diabo que estaria de novo à nossa espera ao virar da esquina, com a ameaça de nova intervenção externa. Há tanta coisa por fazer neste país que, francamente, é falta de imaginação.
Dito isto, o mundo não está perdido. Por alguma razão, foi a intervenção de Ferro Rodrigues que acabou por dominar as notícias.

Rui Ribeiro, Bruxelas : Tenho um enorme respeito por Teresa de Sousa, concordando na maior parte das vezes com a sua opinião. Seguramente a opinião resulta do conhecimento pessoal de Ferro Rodrigues, e isso é inteiramente respeitável. O comportamento público do dito, no entanto, é o que me leva a não concordar com a dita opinião. Discursos são interessantes, alguns até importantes, mas aquilo que fazemos regularmente é que determina a importância daquilo que dizemos. Infelizmente para o próprio, o comportamento ao longo de todos estes anos é ligeiramente contraditório com os discursos. De Ferro Rodrigues habituei-me a esperar pouco e não espero que isso mude.
ana cristina, Lisboa et Orbi: o eduardo pode ser uma excelente pessoa. não o conheço. o ferro rodrigues, para mim, é o politico do "estou-me cagando para a justiça", é um dos rostos da incapacidade (activa e teimosa) do PS para ser um partido de mãos limpas.
AndradeQB, Porto:  Esta avaliação das comemorações do 25Abril reflecte uma tendência que se vem a verificar no posicionamento politico. Uma tendência que aqui ao lado já é a realidade. O alinhamento ideológico à volta de instintos e memórias. Vão-se buscar ao armário da memória realidades e medos antigos, uns do fascismo, outros do comunismo, e dirigimo-nos para o nosso lado da barricada de forma acrítica. Teresa de Sousa, noutra altura qualquer, não assinaria esta sua visão do último meio século separando-o entre os pais da democracia (Ferro Rodrigues (novidade) e Mário Soares, e os oportunistas. Paremos para pensar. Alguém se acredita que, com militares de abril ou sem, com Mário Soares ou sem, estaríamos hoje ainda em ditadura? Não, seguramente.
António Suarez, Porto : Goste-se mais ou menos. É uma das pessoas que mais sabe e melhor escreve sobre política em Portugal. Ponto.

nelsonfari, Portela-Loures 11:51: Então o Eduardo ganha pouco? Está do lado direito da mediana e se calhar quase no extremo direito dos valores de salários pagos em Portugal, onde o salário médio é de 890 brutos/mês(INE).O Eduardo é um homem do aparelho do PS.E o PS tem contas a pagar pelo mau papel que tem desempenhado. Muita precariedade ,baixos salários, um ambicioso Centeno que não investe mais na saúde, ensino e habitação para fazer boa figura no Eurogrupo. Depois, a cronista despeja em cima do PCP. Pois é, enquanto a D.Teresa andava em Paris (que efeito teve a sua acção? Hum, estava a gozar a liberdade...) os do PCP andavam por Peniche, Tarrafal, etc. Isto, claro, nada tem a ver com o PCP de hoje. Depois de 1968 passou-se muita coisa e 51 anos .E não se esquece o elogio a Constâncio...O Quelhas em força...A clique furada.
Um conjunto de pessoas, uma clique. Têm vivido uns com os outros. Ferro Rodrigues, assistente no então ISCEF, dá aulas a Centeno (e também a outro bem colocado, Sérgio Figueiredo da TVI, director de informação, o que dá sempre jeito). Uma rede apertada de pessoas que têm repartido entre si os lugares e as benesses. E não venha dizer que o Eduardo tem uma vida modesta...Este conjunto de pessoas tem abocanhado o país e os escândalos e as vergonhas sucedem-se de forma vertiginosa. A estes senhores deve aplicar-se o "no mercy". Aguentem, como disse o do BPI,  Ulrich. Só o BES limpou 14% do PIB. E são quatro professores do actual ISEG que o dizem, Consulte, D.Teresa, a SaeR sobre o assunto.
Andre felman cunha rego,: Sou leitor e admirador de Teresa de Sousa, sem dúvida uma das melhores jornalistas de Portugal. Os seus textos, além de bem escritos, são para mim uma ajuda importante para o meu entendimento da politica nacional e internacional. Este no entanto é particularmente fraco. Não conseguiu desassociar a sua amizade por Ferro Rodrigues daquilo que Ferro Rodrigues realmente representa hoje em Portugal. Limitou se a analisar o seu discurso do 25 de Abril em abstracto e não à luz de tudo o que Ferro Rodrigues tem dito e feito ao longo dos últimos anos. Ao contrário do que é habitual, este texto não está à altura da jornalista Teresa de Sousa.
Rui Ribeiro, Bruxelas > Tenho um enorme respeito por Teresa de Sousa, concordando na maior parte das vezes com a sua opinião. Seguramente a opinião resulta do conhecimento pessoal de Ferro Rodrigues, e isso é inteiramente respeitável. O comportamento público do dito, no entanto, é o que me leva a não concordar com a dita opinião. Discursos são interessantes, alguns até importantes, mas aquilo que fazemos regularmente é que determina a importância daquilo que dizemos. Infelizmente para o próprio, o comportamento ao longo de todos estes anos é ligeiramente contraditório com os discursos. De Ferro Rodrigues habituei-me a esperar pouco e não espero que isso mude.
Francis Delannoy: O discurso que Ferro Rodrigues proferiu na sessão solene dos 45 anos do 25 de Abril foi verdadeiro, desassombrado, livre. 1. Não sou dada a nostalgias, mas 45 anos sempre são 45 anos. Passaram num ápice. A minha geração, moldada pela crise de 69, ela própria uma emanação do Maio de 68, foi demasiado libertária, demasiado rebelde, demasiado radical em todos os sentidos da palavra, demasiado individualista, um dos arquitectos da sociedade pobre podre e feia que temos, coitado arrependido do seu trabalho e das suas obras... então que partilha com pobres ou jovens uma boa parte do seu bom salário e da sua futura grandiosa reforma...se for assim tão arrependido.. é só é sol radioso de hipocrisia..rodeado de uma sombra total de fingimento..


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