terça-feira, 16 de abril de 2019

Um artigo de muito interesse



De Salles da Fonseca. Sobre um escritor e político israelita – Amoz Oz – personagem importante neste mundo actual, pertencente a um povo bem expressivo, na sua caminhada errante, e tão apta ao longo dos tempos, também aqui, em Portugal. Um artigo facundo e generosamente informativo, como de costume.
 HENRIQUE SALLES DA FONSECA    A BEM DA NAÇÃO, 16.04.19
Título – UMA HISTÓRIA DE AMOR E TREVAS
Autor – Amos Oz; Tradutora – Lúcia Liba Mucznik; Editora – D. QUIXOTE; Edição – 1ª, Março de 2016
É logo da capa que se extrai a informação de que o livro deu em filme, o que induz de imediato a ideia de que se trata de obra pictórica e, talvez mesmo, animada. Pictórica, sim; animada, na nossa própria imaginação como o terá sido na da realizadora, Natalie Portman.
Eu já conhecia Amos Oz de um livrinho que ele publicou (não me lembro onde o tenho e se o li em inglês ou português) em que expõe as suas ideias políticas sobre Israel e o processo de paz que preconizava (morreu em finais de 2018) de modo a ultrapassar a tensão permanente entre judeus, árabes e palestinianos. Gostei do que então li e avancei para este livro (636 páginas de texto) cuja leitura tive pena de ver chegar ao fim. Até porque a autobiografia não é completa, muito terá ficado por contar. Fico à espera do trabalho futuro de algum biógrafo que nos relate o que aqui ficou por contar da vida deste que foi um dos mais importantes escritores israelitas.
Nascido Klausner, Oz decidiu mudar de nome não só por razões literárias mas também porque a certa altura decidiu mudar radicalmente de vida abandonando Jerusalém e optando por umkibbutz. Essa mudança radical aconteceu pouco tempo depois do suicídio da mãe e de o pai se ter casado novamente.
Mas para ter a certeza de que não estrago a futura leitura de quem me lê, inspiro-me na contracapa…
Amor e trevas são duas poderosas forças que se cruzam e acompanham a vida do Autor que nos guia numa fascinante viagem ao longo dos 120 anos de história da sua família e dos seus paradoxos.
Em busca das raízes remotas da sua tragédia familiar, Oz desvenda segredos e «esqueletos» de quatro gerações de sonhadores, intelectuais, homens de negócios mais ou menos fracassados ou mais ou menos prósperos, reformistas, sedutores antiquados e rebeldes ovelhas negras.
Celebridades históricas materializam-se em personagens autênticos, desde David Ben-Gurion a Menahem Begin e a escritores como Tchernikhovsky e ao nobelizado Agnon, todos eles algumas vezes passantes – ou passeantes - pela vida de Amos Oz.
Do que chamou a minha atenção:
Pensava que «renome mundial» significava ter pernas doentes porque eram frequentemente velhos com bengalas que coxeavam um pouco e andavam vestidos de fatos de lã grossa mesmo no Verão – pág. 9;
Em Jerusalém andava-se como num funeral ou como os espectadores atrasados num concerto: primeiro apalpava-se o terreno com a ponta do pé. Em seguida, depois de pousar o pé, não havia pressa em mexê-lo: se tínhamos levado dois mil anos a conseguir pôr o pé em Jerusalém, não íamos renunciar tão rapidamente. Porque se levantássemos o pé, podiam tirar-nos o pedaço de chão. Por outro, se já estava no ar, também não havia pressa em pousá-lo: sabe-se lá que ninho de víboras lá podia estar, que intrigas e maquinações. Durante dois mil anos tínhamos pago com sangue a nossa imprudência caindo constantemente nas mãos dos nossos inimigos porque pousávamos o pé sem medir bem as consequências. Era mais ou menos assim que se andava em Jerusalém. Mas em Telavive, qual quê! A cidade inteira parecia um gafanhoto. As pessoas, as casas, as ruas, as praças, o vento marítimo, as areias, as avenidas e até as nuvens corriam. Telavive era outro continente – pág. 14;
Sobre o mérito do escritorSó há bênção se o murmúrio das asas assentar no suor e a inspiração nascer da perseverança e do rigor – pág. 68;
Um corredor estreito e comprido, o intestino da casa – pág. 68;
Diz o tio ao sobrinho: - Faz-me o favor de perguntar à tia onde está a pomada para a pele, o meu creme para o rosto. Diz-lhe, por favor, que é o antigo porque o novo não presta para nada. E saberás tu, por acaso, a enorme diferença que existe entre «O Redentor» na língua dos góis e o nosso «messias»? Para nós, messias é apenas alguém que foi ungido com óleo: todos os sacerdotes e reis da Bíblia são messias e em hebraico a palavra «messias» é uma palavra totalmente prosaica e de todos os dias, muito próxima da palavra «pomada» - ao contrário das línguas dos gentios nas quais «messias» é chamado «O Redentor» e «O Salvador» - pág. 82;
Sobre a cidade idealizada pelo «Amor de Sião» e a realidade: - A Jerusalém de ruas calcetadas de jaspe e ónix, com um anjo em cada esquina e por cima o céu a brilhar à luz dos sete firmamentos, não a cidade poeirenta, canicular e fanática  pág. 113 e seg.;
O avô nunca mudou a sua opinião (…): alguns dias depois da conquista da cidade velha de Jerusalém na Guerra dos Seis Dias, propôs que as nações do mundo ajudassem Israel a fazer regressar todos os árabes ao Levante, «com o maior respeito, sem tocar num único dos seus cabelos, nem se apropriar de uma galinha sequer», à sua pátria histórica, a que ele chamava «Sáudia Arábia»; «Tal como nós, judeus, regressamos agora à nossa pátria histórica, também eles devem ter o direito de regressar dignamente a casa, a Sáudia Arábia, de onde eles todos vieram – pág. 127 e seg.;
Dizia o outro avô, aquele a quem todos chamavam Papá – Há muito mais cores e cheiros do que palavras; a riqueza era pecado e a pobreza castigo mas, aparentemente, Deus queria que entre o crime e o castigo não houvesse relação nenhuma; um peca e o outro é castigado. Eis como o mundo é feito – pág. 196 e seg.;
E mais dizia o avô Papá: - Justiça sem compaixão é um açougue; compaixão sem justiça talvez fosse bom para Jesus mas não para os simples seres humanos que tinham comido a maçã do Mal – pág. 201;
Foi sempre assim nas famílias judias: os estudos constituíram sempre uma segurança para o futuro, a única coisa que ninguém jamais podia tirar aos filhos, mesmo que houvesse outra guerra, outra revolução, outra emigração ou outras perseguições – o diploma podia ser rapidamente dobrado e escondido no forro do casaco antes de fugir para um sítio onde fosse permitido os judeus viverem pág. 223;
Dizia a mãe de Amos Oz que as sinagogas, as casas de estudo, as igrejas, os conventos e as mesquitas eram todos semelhantes, uns lugares aborrecidos que cheiravam aos corpos dos religiosos que se lavavam pouco; mesmo debaixo da nuvem pesada de incenso, sentiam-se os eflúvios enjoativos da carne mal lavada – pág. 336;
E agora é a vez de ser o pai do Autor a dizer que quem roubasse as ideias de um livro, era considerado um gatuno literário, autor de plágio; quem roubasse de cinco livros, não era considerado ladrão mas sim especialista; se roubasse de cinquenta livros, era um grande sábio – pág. 408;
Sobre quem é desprezado – os gatos também têm o direito de olhar para os reis – pág. 619.
Sim, li com interesse e mesmo mais: com gosto.          Abril de 2019
Notas de apoio:
Biografia[ Wikipédia, a enciclopédia livre.
Nascimento: 4/5/1939, Jerusalém, Mandato Britânico da Palestina, Estado de Israel (presente)            Morte: 28/12, 2018 (79 anos), Jerusalém         Nacionalidade: Israelita.
Os seus pais fugiram em 1917 de Odessa, na Ucrânia para Vilnius, na Lituânia e daí para o Mandato Britânico da Palestina em 1933. Em 1954 Oz entrou para o Kibbutz Hulda e tomou então o seu nome actual. Durante o seu estudo de Literatura e Filosofia na Universidade Hebraica de Jerusalém entre 1960 e 1963 publicou seus primeiros contos curtos. Oz participou na Guerra dos Seis Dias e na Guerra do Yom-Kippur e fundou na década de 70, juntamente com outros, o movimento pacifista israelita/israelense Schalom Achschaw (Peace Now); pela Solução de Dois Estados.
Fundador e principal representante do movimento israelita/israelense Paz Agora, é o escritor mais influente de seu país. Poucos autores escrevem com tanta compaixão e clareza sobre as agruras presentes e passadas de Israel. Em romances como Conhecer uma mulher (1992), Pantera no porão (1999) ou Meu Michel (2002); explora a persistência do amor durante a guerra.
Em 1991 foi eleito membro da Academia de Letras Hebraicas; Em 1992, recebeu o Prémio de Frankfurt pela Paz, e ganhou o Prêmio Israel, o mais prestigioso do país. Em 1998 (50º ano da Independência de Israel), recebeu o Prémio Femina em França e foi indicado para o Prémio Nobel de Literatura em 2002. Em 2004 recebeu o Prémio Internacional Catalunya, junto com o pacifista palestino Sari Nusseibeh, e também Prémio de Literatura do jornal alemão Die Welt, por "Uma História de Amor e Escuridão". Publicou cerca de duas dezenas de livros em hebraico, e mais de 450 artigos e ensaios em revistas e jornais de Israel e internacionais (muitos dos quais para o jornal do Partido Trabalhista "Davar" e, desde o encerramento deste na década de 1990, para o "Yediot Achronot"). Tem livros e artigos seus traduzidos por todo o mundo e quase toda a sua obra se encontra traduzida em português. Em 2005 recebeu o prémio/prémio Goethe como escritor. Em 2007 recebeu o Prémio Príncipe das Astúrias de letras.

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