Não, não foram convulsões guerreiras, como
as que vemos nas telas do cinema do estilo de “E tudo o vento levou” sobre uma guerra civil que tanto destruiu mas
que deu origem a uma nação mais
poderosa. Ou as cautelas tomadas previamente com os monumentos aquando da
previsão da ocupação alemã em França... Em 1955, quando visitei a Sainte-Chapelle, ainda se estavam a recolocar
os vitrais recolhidos cautelosamente, na previsão da destruição de tão
fulgurante harmonia, de que nunca esqueci o deslumbramento. Agora, vivemos
também deslumbramentos de cores – coletes amarelos, incêndios…
Só vi a Notre-Dame, de fora, mas era bela,
fazia parte de um cenário que julgávamos imorredoiro, a que pertenciam outros
monumentos que fizeram de Paris a cidade-luz, por toda a sua irradiação
cultural também. Bastou um incêndio, Senhores!
I - OPINIÃO: Uma flecha no coração da
Europa
A Notre-Dame resume em si grande parte
da história deste continente. Por isso o momento do colapso da espiral da
catedral parisiense não pode deixar de ser sentido como o momento em que uma
flecha atingiu o coração da Europa.
RUI TAVARES PÚBLICO, 15 de Abril de 2019, 22:19
“Não pode haver democracia europeia porque
não existe identidade europeia”, repetiram incessantemente alguns
intelectuais rendidos ao nacionalismo nos últimos anos. A solidariedade entre
os países é uma treta, diziam também, só há solidariedade onde partilhamos uma
história, uma cultura e um destino nacionais.
Pois
bem, desafio quem quer que tenha visto as imagens da Igreja da Notre-Dame ardendo em Paris a
responder se o que sentiu não foi uma perda da sua própria identidade. Porque a Notre-Dame, a Île de la Cité em que ela se
situa, e todo o perímetro que em tempos foi da Paris medieval, são bem mais do
que apenas francesas. Elas fazem parte da história europeia. Melhor dizendo: a
história europeia fez-se ali. Incluindo a portuguesa: nas primeiras décadas de
1500 até um homem nascido na minha aldeia por ali andou: Diogo de Gouveia,
o moço, sobrinho de outro Diogo de Gouveia a quem chamaram de “grande reaccionário”,
e de um André de Gouveia a quem chamaram grande humanista. Nessa altura, o Colégio
de Santa Bárbara, na Sorbonne, era uma colmeia de laboriosos estudantes
vindos de todo o continente — e por várias vezes os reitores e estudantes mais
ilustres foram portugueses. Ali nasceram os jesuítas como nascem tantas coisas
na Europa: com um encontro entre estudantes fora de casa, numa cidade
estrangeira. Antes disso por ali tinha passado Erasmo de Roterdão,
no tempo em que não se fazia o programa Erasmus mas se podia visitar o
Erasmo propriamente dito, para discutir as novas teorias de Martinho Lutero ou
João Calvino, ou as novas terras reais e imaginárias de que falavam Damião de
Góis ou Tomás Moro.
Toda essa gente passou pela sombra da
Notre-Dame, sempre a mesma e sempre diferente ao longo dos séculos. Boa parte
das suas gárgulas mais famosas e fotografadas são reconstituições neo-medievais
do século XIX. As suas rosáceas são do século XIII. Os seus vitrais não são
apenas medievais, mas também do século XVIII e até contemporâneos. A Notre-Dame
resume em si grande parte da história deste continente. Por isso o momento do
colapso da espiral da catedral parisiense não pode deixar de ser sentido como o
momento em que uma flecha atingiu o coração da Europa.
Poderíamos
ir mais longe. Ainda há pouco tempo sentimos o mesmo quando ardeu o Museu
Nacional do Rio de Janeiro, no Brasil. Perdeu-se património brasileiro, mas
perdeu-se memória e identidade que era também nossa. E era também nossa não só
por sermos portugueses; era nossa porque se perderam registos da humanidade que
não se voltarão mais a encontrar.
As
modas intelectuais passam, regressam, e desaparecem. A tempo acharemos o
nacionalismo do século XXI tão ridículo como o do século XX. Já nos esquecemos
aliás que a teoria da moda há meros quinze anos era a da “Guerra das
Civilizações”, que influenciou em grande parte a decisão de dar início à Guerra
do Iraque, e segundo a qual seriam os grandes blocos culturais e não as
nações a determinar o curso da história no novo milénio. Aquilo de que estas teorias do tribalismo a diversas escalas se
esquecem é que existe só uma humanidade e que em cada parte da humanidade
residem potencialmente as ideias da humanidade inteira. Quando os talibans destruíram os Budas de Bamyan,
no Afeganistão, ou o ISIS tentou demolir Palmira, na Síria, o que aconteceu não
foi uma civilização a atacar outra. O que aconteceu foi um ataque à memória de
toda a civilização humana. Porque os Budas de Bamyan não deixam de ser tão
nossos quanto a Notre-Dame o é — e aliás porque a linha que os une,
passando pela Rota da Seda, por sábios muçulmanos da Ásia Central como Al
Farabi, por judeus de Toledo que ensinaram árabe aos tradutores das traduções
de Aristóteles, e pelo Tomás de Aquino que foi ensinado no Quartier Latin, é
menos difícil de desenhar do que aquilo que se pensa.
Como
disse um sábio que também andou pela sombra da Notre-Dame, François Fénelon,
ali pela viragem do século XVII para o XVIII: qualquer ser humano é
infinitamente mais beneficiado pelos contributos que lhe chegaram da humanidade
inteira do que por aqueles que lhe foram legados pela sua pátria. E esse
é verdade para todas as pátrias, em todos os tempos, em todo o mundo. Por isso
todos nós devemos à Notre-Dame boa parte da nossa identidade europeia e de
cidadãos do mundo. Quando a Notre-Dame se reerguer, como decerto acontecerá,
ela reerguer-se-á para a toda a humanidade.
COMENTÁRIOS
Rui Ribeiro, Bruxelas Há 55 minutos: De acordo.
Rui Ribeiro, Bruxelas Há 55 minutos: De acordo.
Francis Delannoy, 01:21: Não pode haver
democracia europeia porque não existe identidade europeia”, repetiram
incessantemente alguns intelectuais rendidos ao nacionalismo nos últimos anos.
A solidariedade entre os países é uma treta, diziam também, só há solidariedade
onde partilhamos uma história, uma cultura e um destino… é treta e não há nem
haverá solidariedade até a prova do contrário… partilhar de boca qualquer um
chora, pôr as mãos à carteira é outra música.
Vamos lá ver quantos milhões irão
a fundo perdido da Europa ou dos países europeus, ou doação de banqueiros ou
financeiros europeus e não sob a forma de empréstimo escondido para a
reconstrução da catedral..
Fernando Carvalho,
Alverca 00:12: A perda extravasa
as fronteiras de França e é uma perda mundial, de toda a humanidade.
paulocarnaxide, 15.04.2019 22:44 Um grande rombo no património da Humanidade...
chocante.
II - EDITORIAL: Notre-Dame: uma parte da
alma da Europa que nos deixa
Uma tragédia de todos os humanistas,
de todos os europeus, de todos os humanos aos quais a natureza (ou Deus)
concedeu o dom de se emocionarem com a arte e de se exaltarem com a História.
MANUEL CARVALHO PÚBLICO, 15 de Abril de 2019,
22:07
Esta
segunda-feira foi dia do Pacto de Estabilidade, dia de anúncios de greves, dia
em que se anuncia um plano de paz americano para o Médio Oriente, o dia em que
se revelou a retirada do mandato a um autarca de uma cidade portuguesa. Mas
todas estas coisas importantes para a nossa vida e para o nosso futuro sucumbem
perante a dor pela perda de uma parte substancial do nosso passado comum. O incêndio na catedral de
Notre-Dame é um dos maiores desastres da cultura europeia, e
mundial, em muitas décadas.
Num final de tarde trágico, ardeu uma
obra gloriosa do gótico, uma imagem icónica da Europa do tempo das catedrais, o
monumento mais visitado do continente, a memória da luz de uma civilização que
se começava a reerguer após a longa noite desde o final do Império Romano para
transformar a Europa na pátria da razão, da tolerância iluminista, das
constituições, dos direitos humanos e do progresso – uma herança que nem os
totalitarismos nem as guerras mais sanguinárias da História conseguem apagar.
O incêndio num monumento com esta
importância cultural e simbólica não pode deixar de representar mais uma
manifestação de infortúnio e descrença num país e num continente assolados por
problemas novos e ameaças velhas. Como que num terrível sinal dos tempos, a Europa
perde nestes dias ansiosos um dos mais valiosos exemplos da sua grandeza e da
sua memória.
Sem
dúvida que o provável carácter incidental da destruição pode e deve alimentar o
discurso do relativismo, da incontornável imprevisibilidade dos desastres, da
impossibilidade de os humanos serem donos do destino das suas criações. Mas
há-de haver também lugar para o discurso legítimo sobre a imprevidência, sobre
os custos do desinvestimento dos estados na protecção do seu património (e dos
seus cidadãos). Uma tragédia desta dimensão torna mais cruas as feridas que dão fulgor aos Coletes
Amarelos, a Le Pen e à crescente incerteza que leva os europeus a
duvidarem de si mesmos e do seu destino.
Não
é ainda tempo para se perguntar por responsabilidades. É apenas tempo de sofrer
como nossa a tragédia de um lugar que todos conhecemos por experiência
pessoal, por termos lido Victor Hugo ou apenas por sabermos à distância da sua
majestade e grandeza. O que aconteceu esta segunda-feira em Paris é uma
tragédia de todos os humanistas, de todos os europeus, de todos os humanos aos
quais a natureza (ou Deus) concedeu o dom de se emocionarem com a arte e de se
exaltarem com a História. Mesmo que nem tudo esteja perdido em Paris, esta
segunda-feira foi um dia horrível para a França, um dia trágico para a Europa.
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