terça-feira, 16 de abril de 2019

Profanação



Não, não foram convulsões guerreiras, como as que vemos nas telas do cinema do estilo de “E tudo o vento levou” sobre uma guerra civil que tanto destruiu mas que deu origem a uma nação mais poderosa. Ou as cautelas tomadas previamente com os monumentos aquando da previsão da ocupação alemã em França... Em 1955, quando visitei a Sainte-Chapelle, ainda se estavam a recolocar os vitrais recolhidos cautelosamente, na previsão da destruição de tão fulgurante harmonia, de que nunca esqueci o deslumbramento. Agora, vivemos também deslumbramentos de cores – coletes amarelos, incêndios…
Só vi a Notre-Dame, de fora, mas era bela, fazia parte de um cenário que julgávamos imorredoiro, a que pertenciam outros monumentos que fizeram de Paris a cidade-luz, por toda a sua irradiação cultural também. Bastou um incêndio, Senhores!
I - OPINIÃO: Uma flecha no coração da Europa
A Notre-Dame resume em si grande parte da história deste continente. Por isso o momento do colapso da espiral da catedral parisiense não pode deixar de ser sentido como o momento em que uma flecha atingiu o coração da Europa.
RUI TAVARES          PÚBLICO, 15 de Abril de 2019, 22:19
 “Não pode haver democracia europeia porque não existe identidade europeia”, repetiram incessantemente alguns intelectuais rendidos ao nacionalismo nos últimos anos. A solidariedade entre os países é uma treta, diziam também, só há solidariedade onde partilhamos uma história, uma cultura e um destino nacionais.
Pois bem, desafio quem quer que tenha visto as imagens da Igreja da Notre-Dame ardendo em Paris a responder se o que sentiu não foi uma perda da sua própria identidade. Porque a Notre-Dame, a Île de la Cité em que ela se situa, e todo o perímetro que em tempos foi da Paris medieval, são bem mais do que apenas francesas. Elas fazem parte da história europeia. Melhor dizendo: a história europeia fez-se ali. Incluindo a portuguesa: nas primeiras décadas de 1500 até um homem nascido na minha aldeia por ali andou: Diogo de Gouveia, o moço, sobrinho de outro Diogo de Gouveia a quem chamaram de “grande reaccionário”, e de um André de Gouveia a quem chamaram grande humanista. Nessa altura, o Colégio de Santa Bárbara, na Sorbonne, era uma colmeia de laboriosos estudantes vindos de todo o continente — e por várias vezes os reitores e estudantes mais ilustres foram portugueses. Ali nasceram os jesuítas como nascem tantas coisas na Europa: com um encontro entre estudantes fora de casa, numa cidade estrangeira. Antes disso por ali tinha passado Erasmo de Roterdão, no tempo em que não se fazia o programa Erasmus mas se podia visitar o Erasmo propriamente dito, para discutir as novas teorias de Martinho Lutero ou João Calvino, ou as novas terras reais e imaginárias de que falavam Damião de Góis ou Tomás Moro.
Toda essa gente passou pela sombra da Notre-Dame, sempre a mesma e sempre diferente ao longo dos séculos. Boa parte das suas gárgulas mais famosas e fotografadas são reconstituições neo-medievais do século XIX. As suas rosáceas são do século XIII. Os seus vitrais não são apenas medievais, mas também do século XVIII e até contemporâneos. A Notre-Dame resume em si grande parte da história deste continente. Por isso o momento do colapso da espiral da catedral parisiense não pode deixar de ser sentido como o momento em que uma flecha atingiu o coração da Europa.
Poderíamos ir mais longe. Ainda há pouco tempo sentimos o mesmo quando ardeu o Museu Nacional do Rio de Janeiro, no Brasil. Perdeu-se património brasileiro, mas perdeu-se memória e identidade que era também nossa. E era também nossa não só por sermos portugueses; era nossa porque se perderam registos da humanidade que não se voltarão mais a encontrar.
As modas intelectuais passam, regressam, e desaparecem. A tempo acharemos o nacionalismo do século XXI tão ridículo como o do século XX. Já nos esquecemos aliás que a teoria da moda há meros quinze anos era a da “Guerra das Civilizações”, que influenciou em grande parte a decisão de dar início à Guerra do Iraque, e segundo a qual seriam os grandes blocos culturais e não as nações a determinar o curso da história no novo milénio. Aquilo de que estas teorias do tribalismo a diversas escalas se esquecem é que existe só uma humanidade e que em cada parte da humanidade residem potencialmente as ideias da humanidade inteira. Quando os talibans destruíram os Budas de Bamyan, no Afeganistão, ou o ISIS tentou demolir Palmira, na Síria, o que aconteceu não foi uma civilização a atacar outra. O que aconteceu foi um ataque à memória de toda a civilização humana. Porque os Budas de Bamyan não deixam de ser tão nossos quanto a Notre-Dame o é — e aliás porque a linha que os une, passando pela Rota da Seda, por sábios muçulmanos da Ásia Central como Al Farabi, por judeus de Toledo que ensinaram árabe aos tradutores das traduções de Aristóteles, e pelo Tomás de Aquino que foi ensinado no Quartier Latin, é menos difícil de desenhar do que aquilo que se pensa.
Como disse um sábio que também andou pela sombra da Notre-Dame, François Fénelon, ali pela viragem do século XVII para o XVIII: qualquer ser humano é infinitamente mais beneficiado pelos contributos que lhe chegaram da humanidade inteira do que por aqueles que lhe foram legados pela sua pátria. E esse é verdade para todas as pátrias, em todos os tempos, em todo o mundo. Por isso todos nós devemos à Notre-Dame boa parte da nossa identidade europeia e de cidadãos do mundo. Quando a Notre-Dame se reerguer, como decerto acontecerá, ela reerguer-se-á para a toda a humanidade.
COMENTÁRIOS
Rui Ribeiro, Bruxelas Há 55 minutos: De acordo.
Rui Ribeiro, Bruxelas Há 55 minutos: De acordo.
Francis Delannoy, 01:21: Não pode haver democracia europeia porque não existe identidade europeia”, repetiram incessantemente alguns intelectuais rendidos ao nacionalismo nos últimos anos. A solidariedade entre os países é uma treta, diziam também, só há solidariedade onde partilhamos uma história, uma cultura e um destino… é treta e não há nem haverá solidariedade até a prova do contrário… partilhar de boca qualquer um chora, pôr as mãos à carteira é outra música.  Vamos lá  ver quantos milhões irão a fundo perdido da Europa ou dos países europeus, ou doação de banqueiros ou financeiros europeus e não sob a forma de empréstimo escondido para a reconstrução da catedral..
Fernando Carvalho, Alverca 00:12: A perda extravasa as fronteiras de França e é uma perda mundial, de toda a humanidade.
paulocarnaxide, 15.04.2019 22:44 Um grande rombo no património da Humanidade... chocante.
II - EDITORIAL: Notre-Dame: uma parte da alma da Europa que nos deixa
Uma tragédia de todos os humanistas, de todos os europeus, de todos os humanos aos quais a natureza (ou Deus) concedeu o dom de se emocionarem com a arte e de se exaltarem com a História.
MANUEL CARVALHO              PÚBLICO, 15 de Abril de 2019, 22:07
Esta segunda-feira foi dia do Pacto de Estabilidade, dia de anúncios de greves, dia em que se anuncia um plano de paz americano para o Médio Oriente, o dia em que se revelou a retirada do mandato a um autarca de uma cidade portuguesa. Mas todas estas coisas importantes para a nossa vida e para o nosso futuro sucumbem perante a dor pela perda de uma parte substancial do nosso passado comum. O incêndio na catedral de Notre-Dame é um dos maiores desastres da cultura europeia, e mundial, em muitas décadas.
Num final de tarde trágico, ardeu uma obra gloriosa do gótico, uma imagem icónica da Europa do tempo das catedrais, o monumento mais visitado do continente, a memória da luz de uma civilização que se começava a reerguer após a longa noite desde o final do Império Romano para transformar a Europa na pátria da razão, da tolerância iluminista, das constituições, dos direitos humanos e do progresso – uma herança que nem os totalitarismos nem as guerras mais sanguinárias da História conseguem apagar.
O incêndio num monumento com esta importância cultural e simbólica não pode deixar de representar mais uma manifestação de infortúnio e descrença num país e num continente assolados por problemas novos e ameaças velhas. Como que num terrível sinal dos tempos, a Europa perde nestes dias ansiosos um dos mais valiosos exemplos da sua grandeza e da sua memória.
Sem dúvida que o provável carácter incidental da destruição pode e deve alimentar o discurso do relativismo, da incontornável imprevisibilidade dos desastres, da impossibilidade de os humanos serem donos do destino das suas criações. Mas há-de haver também lugar para o discurso legítimo sobre a imprevidência, sobre os custos do desinvestimento dos estados na protecção do seu património (e dos seus cidadãos). Uma tragédia desta dimensão torna mais cruas as feridas que dão fulgor aos Coletes Amarelos, a Le Pen e à crescente incerteza que leva os europeus a duvidarem de si mesmos e do seu destino.
Não é ainda tempo para se perguntar por responsabilidades. É apenas tempo de sofrer como nossa a tragédia de um lugar que todos conhecemos por experiência pessoal, por termos lido Victor Hugo ou apenas por sabermos à distância da sua majestade e grandeza. O que aconteceu esta segunda-feira em Paris é uma tragédia de todos os humanistas, de todos os europeus, de todos os humanos aos quais a natureza (ou Deus) concedeu o dom de se emocionarem com a arte e de se exaltarem com a História. Mesmo que nem tudo esteja perdido em Paris, esta segunda-feira foi um dia horrível para a França, um dia trágico para a Europa.

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