E eis-nos navegando e reflectindo, no
apontamento chão mas com a ênfase precisa, sobre os pormenores de interesse que
não pretendem, como faz Eça, descrever ao pormenor e com a adjectivação sensorial
ou subjectiva daquele - que já se percebem no estilo do seu texto, apesar da
idade jovem – cerca de 24 anos - sobre a inauguração do canal do Suez (em
17/11/1869). Salles da Fonseca merece bem, neste seu trabalho diarístico, de
sentido reflexivo e crítico, que lhe dedique o texto de Eça, apesar do seu
tamanho – (1º texto de NOTAS
CONTEMPORÂNEAS” em 3 partes), de que transcrevo a primeira, que colho da
Internet. As informações que S.F vai
semeando sobre o progresso da zona – especificamente no canal do Suez, são de
um interesse enorme, a servir de exemplo, como esse do tratamento de águas que
torna verdejantes as margens do canal e em perspectivas de progredir para
outras zonas, transmitindo um sentimento de tranquilidade a outros povos,
incluindo o nosso, necessitados de conquistar águas ao mar ou mesmo residuais,
para as transformar e aplicar. Outros dados apresenta, em resposta a um comentador
anónimo. E assim vamos viajando e admirando, para mais com o mapa ilustrativo que coloca e
nos informa sobre o roteiro.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 09.04.19
SINAI - SUEZ
Regressados,
não nos pararam na Alfândega da Zona Franca e chegámos a Aqaba já estava o Sol
posto. Foi-nos, então, proporcionada uma volta pela cidade que à noite é
muito mais bonita do que de dia. Não nos apeámos do autocarro e seguimos
para o barco; eram horas de jantar e o pessoal de bordo tem direito a que os
passageiros não se atrasem muito.
Estávamos
a jantar quando vimos as luzes de Eilat a mexerem-se de um lado para o outro do
janelão do restaurante. Zarpávamos para fazermos o périplo da Península do
Sinai, nos lançarmos pelo Canal de Suez além e abandonarmos as Arábias por Port
Saïd rumo ao Pireu.
Foi
durante a minha noite dormente que passámos frente a Sharm El Sheik que
eu já conheço vista do ar num espectáculo fabuloso de luzes, tornejámos o
cabo Ra’s Muhammad, extremo Sul do Sinal e rumámos a Norte.
Amanheceu
um pouco antes da entrada do Canal de Suez e coube-nos liderar um comboio de
alguns navios que pretendiam o mesmo que nós, subir o Canal. Vindo de Eilat, o nosso companheiro «Costa» alinhou a
trás de nós; depois dele, vários cargueiros que perdi de vista lá para
trás. Pena, pena, foi termos perdido as vistas do Golfo do Suez; mas não
se pode ter tudo, paciência.
E,
uma vez entrados no Canal, eis-nos com terra à vista de ambos os lados. E que
vimos? Muito
Parece
pouco mas é muito: uma linha
verde contínua, paralela à costa, autêntica barreira de contenção do deserto. E
isto, em ambas as margens. Perante o clima local, a linha no Sinai só pode ser
mantida à custa de água dessalinizada enquanto a do lado africano ainda posso
admitir que venha do Nilo. Virá? De
qualquer modo, é uma obra magnífica seja ela com água daqui ou dali. E desde já
faço notar que estas linhas se mantiveram ininterruptamente, apesar das obras,
cidades e outras ocorrências que entretanto acontecem de permeio. Parece pouco?
Talvez pareça, mas a mim pareceu-me muito e bom. Outras linhas se lhes seguirão
e o futuro está por ali definido como uma luta titânica contra o deserto. E
digo deserto, não digo desertificação porque naquelas paragens não é possível
desertificar mais a Natureza que já o é plenamente; a mudança aponta no sentido
da des-desertificação, da verdificação. É evidente que muito está por fazer
mas o caminho está por ali traçado e é com esperança que vejo o Egipto a
olhar para a frente.
Oxalá
o verde chegue a tempo de ocupar os radicais muçulmanos e de os distrair do
ócio e das ideias abstrusas a que o deserto os tem condenado. (continua)
COMENTÁRIOS:
Anónimo 09.04.2019 20:09: Bela e elucidativa descrição. Todavia, noto que o viajante-relator não teve ocasião
de emitir uma palavra de grande apreço pelos lugares visitados, não
propriamente pela sua estética urbanística ou paisagística, mas ao menos pelo
encanto do seu exotismo, que para o ocidental julgo que é o mais apelativo. No
entanto, com essa "Linha Verde Contínua" a conversa é outra.
Merece-lhe uma referência destacada e percebo a razão. É que ali está uma
promessa de futuro mais evidente do que aquilo que deslumbra pela sua aparência
exterior. Essa promessa de futuro será, como diz o relator, a melhor forma de
desarmar o coração feroz dos radicais islâmicos. De lhes mostrar que o engenho
humano e a persistência no bem é que são as armas que vencem.
Henrique Salles da Fonseca 09.04.2019 :
Se os monumentos por que passei me interessaram menos
do que a justificação de relatos nestas croniquetas, isso deve-se a que me
interesso muito mais por outros aspectos da realidade, nomeadamente a
perspectiva humana dos cenários por que passei. Sim, vi algumas mesquitas
mas gostei muito mais de saber que, afinal, em Omã, a versão religiosa não é o
Sunismo nem o Xiismo mas sim o Ibadismo o qual pugna pela exegese conducente à
concórdia, ao contrário dos sunitas que negam qualquer exegese e cumprem
literalmente os respectivos textos sagrados numa lógica de Talião; os xiitas,
fazendo a respectiva exegese, também assentam toda a sua filosofia na mesma
lógica de Talião. Eis por que fiquei a admirar muito mais a beleza da
mesquita de Mascate do que outras por que passei mas como, na altura da visita,
eu não sabia da existência do Ibadismo, não me apercebi de nada e passei em
falso aquela beleza arquitectónica. Sobre a paisagem humana ainda
tenho alguma coisa a dizer: na nossa perspectiva, ocidental, aqueles regimes
políticos são medievo-anacrónicos, criticáveis pela lógica democrática e
denunciáveis ao abrigo dos nossos actuais conceitos de humanismo. Mas – e há
sempre um «mas» - perante realidades como a da Irmandade Muçulmana e outros
grupos fundamentalistas sunitas wahhabitas, é imprescindível que os mullahs
temam mais o ditador terreno do que a ira divina.Eis por que os monumentos me
passaram ao lado mas a linha verde do combate ao deserto me encantou e a
referi.
2 - De Port-Said a Suez
Carta sobre a inauguração do Canal de Suez
Em
1869 Eça de Queiroz encontrava-se no Egipto na companhia do seu amigo conde de
Rezende. Assistiu à inauguração do Canal de Suez deslocando-se a bordo do Fayoum.
Vale a pena saborear a carta sobre acontecimento, que Eça de Queiroz enviou ao Diário
de Notícias, no
português da época (que mais ou menos adaptei a esta, sem AO)
I « Snr.
Redactor: - Acedo da melhor vontade ao seu desejo de que lhe escreva a historia
real das festas de Suez. Conto-lhe, porém, simplesmente e descarnadamente, o
que me ficou em memoria daqueles dias confusos e cheios de acontecimentos, tanto
mais que as festas de Suez estão para mim entre duas grandes recordações – o Cairo
e Jerusalem: estão abafadas, escurecidas por estas duas luminosas e poderosas
impressões: estão como pode estar um desenho a lapis, entre uma tela resplandecente
de Descamps, o pintor do Alcorão, e uma tela mortuária de Delaroche, o pintor
do Evangelho. Talvez em breve diga o que é o Cairo e Jerusalém na sua crua e
positiva realidade, se Deus consentir que eu lhe escreva o que vi na terra dos
seus Profetas. Hoje faço-lhe apenas a narração trivial, o relatório chato das festas
de Port-Said, Ismailia e Suez.
.....
Tínhamos voltado, eu e o meu companheiro, o conde de Rezende, duma excursão ás
Pirâmides de Gizé, aos templos de Sakkara e ás ruínas de Mênfis, quando no Cairo
soubemos que estavam na baía de Alexandria os navios do Khediva que deviam
levar-nos a Port-Said e Suez.
Vista
da baía de Alexandria Vínhamos do sossego do deserto e das ruínas, e logo na
gare do Cairo, ao partir para Alexandria, começámos a envolver-nos, bem a
custo, naquela confusão irritante que foi o maior elemento de todas as festas
de Suez. A previdente penetração da polícia egípcia tinha esquecido que
trezentos convidados, ainda que não tenham a corpulência tradicional dos paxás
e dos vizires, não podem caber em vinte lugares de vagons, estreitos como
bancos de réus. Por isso, em volta das carruagens, havia uma multidão tão ávida
como no saque de uma cidade. Jonas Ali, o nosso drogman, um núbio, intrigou,
conspirou, clamou e alcançou-nos numa carruagem de segunda classe,
miseravelmente desmoronada, dois lugares empoeirados.
Confesso
que foi com o maior tédio que comecei a atravessar a magnifica natureza do
Delta. Demais, os caminhos-de-ferro egípcios não têm velocidade fixa. Vão aos
caprichos do maquinista, que, de vez em quando, pára a máquina, desce, acende o
cachimbo, ri com algum velho conhecimento de estrada, sorve minuciosamente o
seu café, torna a subir bocejando, e faz partir distraidamente o comboio. Nesse
dia, porém, o ar estava nublado, chuvoso; o maquinista levou-nos rapidamente a
Alexandria. Na baía esperavam o Marsh, o Fayoum, o Behera, navios do Pachá. O embarque fez-se com a confusão
habitual, complicada com os embaraços d'um mar agitado: os barcos iam cheios de
gente, uns de pé, outros sentados na borda, roçando pela agua, outros
gravemente equilibrados sobre a acumulação pitoresca das bagagens: ria-se,
fulminava-se a organização e a policia das festas, gritava-se um pouco quando
os barcos pesados oscilavam mais inquietadoramente. Nós subimos para o Fayoum, que devia levantar ferro nessa tarde, apesar do tempo
contrário e dos mares que víamos partir de longe na linha de rochedos, que
precede a baía de Alexandria. E ao outro dia, por uma bela manhã, entrávamos em
Port-Said por entre dois grandes molhes que se adiantam paralelamente pelo mar,
feitos de poderosos blocos de pedra solta. Port-Said é uma cidade improvisada
no deserto. É uma cidade de indústria e de operários: estaleiros, forjas,
serralharias, armazéns de materiais, aparelhos destilatórios. A sua construção
foi determinada pela necessidade de haver um vasto porto, que fosse uma estação
de navios, à entrada do canal, e primitivamente para que engenheiros, maquinistas,
directores de obras tivessem um centro. Isto dá-lhe um aspecto de cidade
provisória. Como havia espaço, as ruas são largas como praças e compridas como
avenidas: as casas são baixas, de materiais ligeiros: sente-se a construção rápida
e a incerteza da duração. Apesar dos seus doze mil habitantes, não há ainda ali
um viver definitivo e regular. Não há estabelecimentos feitos na esperança de
duração: Não há comércio fixamente estabelecido: tudo tem o aspecto duma feira,
que hoje ganha e se anima, e amanhã se levanta e se dispersa. E isto porque,
apesar da confiança de toda a população na prosperidade do canal, nenhuma
profissão, nenhum negócio se quer arriscar a estabelecer-se dum modo definitivo,
correndo o perigo de ver aquele começo de cidade estiolar-se e morrer
miseravelmente. Pois tal seria a sorte de Port- Said, bem como de Ismailia, se
o canal fosse uma inutilidade, abandonado do comércio e da navegação.
A
sua construção ressente-se, pois, destas circunstâncias: nem edifícios, nem monumentos,
nem habitações sólidas e sérias: tudo é ligeiro, barato, temporário. A igreja
católica é como uma grande barraca: vê-se o céu azul através do seu tecto feito
de grandes traves mal unidas. Daí o aspecto triste de Port-Said. No fim das
festas, tempo depois, quando alli tornei a passar, em viagem para Jerusalém,
pareceu-me
pela apatia de vida, pelo silêncio, que o deserto começava de novo a aparecer
por entre aquela fraca aparência de cidade.
Mas
naquele dia 17, da inauguração, Port-Said, cheio de gente, coberto de bandeiras,
todo ruidoso dos tiros dos canhões e dos hurrás da marinhagem, tendo no seu
porto as esquadras da Europa, cheio de flâmulas, de arcos, de flores, de músicas,
de cafés improvisados de barracas de acampamento, de uniformes, tinha um belo e
poderoso aspecto de vida. A baía de Port-Said estava triunfante. Era o primeiro
dias das festas. Estavam ali as esquadras francesas do levante; a esquadra italiana,
os navios suecos, holandeses, alemães e russos, os egípcios, a frota do paxá,
as fragatas espanholas, a Aigle,
com a Imperatriz, o Mamondeh com
o kediva, e navios com todas as amostras de realeza, desde o imperador cristianíssimo
Francisco José, até ao kediva árabe Ábd-el-Kader. As salvas faziam o ar sonoro.
Em todos os navios empavesados e cheios de pavilhões a marinhagem perfilada nas
vergas saudava com vastos hurrás. De todos os tombadilhos vinha o vivo ruído
das músicas militares. O azul da baía era riscado em todos os sentidos pelos
escaleres, a remos, a vapor, à vela: almirantes com os seus pavilhões, oficialidades
todas resplandecentes de uniformes, gordos funcionários turcos afadigados e
apoplécticos, viajantes com os chapéus cobertos de véus e de couffis, cruzavam-se
ruidosamente por entre os grandes navios ancorados; as barcas decrépitas dos árabes,
apinhadas de turbantes, abriam as suas largas velas de azul. Sobre tudo isto o
céu do Egipto duma cor, duma profundidade infinita. À noite a cidade iluminava-se,
enchia-se de músicas, de festas populares. As esquadras tinham as suas armações
e cordagens, cobertas de fios de luz. Durante toda a noite os fogos de artifício
numa grande linha de terra, faziam sobre o céu escuro, grande bordado luminoso.
Na baía
havia um viver completo, como numa cidade: bailes a bordo dos navios, jantares,
visitas trocadas, recepções, passeios a remo, serenata dos escaleres. De tudo
isto saía uma luz, um ruído um fluido de vida poderosamente original. Havia em Port-Said
um café cantante memorável pela excentricidade da sua alegria: estava tão cheio
de gente que era necessário fumar, beber, ouvir, de pé, sufocado, hirto. Quando
no palco aparecia a actriz para dizer a sua canção, as mil vozes daquela imensa
multidão, acompanhadas pelo tinir cadenciado dos corpos, do bater dos pés, dos
assobios, dos uivos, dos gritos, começava repetindo com estrondo assombroso, a canção
conhecida da actriz. Era bestial e extraordinário. No dia seguinte ao da chegada
descemos todos a terra para a cerimónia da inauguração. Do lado oposto aos
molhes, para além da cidade, tinham-se construído três pavilhões, estrados atapetados
e blasonados, sobre a areia húmida da espuma do mar. Era nesse lugar a celebração
religiosa: os ulemas e os padres cristãos deviam abençoar e consagrar nos seus
ritos o canal de Suez. Um grande cortejo de convidados, precedido dos príncipes,
entre os quais sobressaía a pensativa e bela figura de Abdel-Kader, dirigiu-se
para esse lugar, entre duas fileiras de soldados egípcios, de arcos, de bandeiras,
e de árabes que abriam grandes olhos. No pavilhão principal, de cores triunfantes,
colocavam-se os convidados reais e imperiais e os mais que podiam caber: no
outro pavilhão estavam os ulemas maometanos, no terceiro os padres latinos,
gregos, arménios e coptas. Quando todos tomaram os seus lugares e o grande
rumor da chegada se acalmou, os ulemas prostraram-se, voltados para o lado de Meca,
os padres cristãos começaram a missa, a artilharia salvou nas esquadras.
Entretanto a multidão apinhava-se sobre a areia húmida e em volta dos estrados;
a grossa figura vermelha do Khediva estava radiosa, a Imperatriz tinha um ar de
satisfação discreta, o Snr. de Lesseps tinha o seu belo e inteligente sorriso. Em redor e até
ao fundo horizonte, o mar sereno reluzia. Quando a artilharia findou, Mr. Bauer
adiantou-se à beira do estrado e falou. Mr. Bauer é um homem baixo, pálido, de
cara feminina e larga, cabelos pendentes em anéis sobre os ombros, asseado,
barbeado, perfumado,
delicado
e com uma voz assombrosa. O que ele dizia era palavras de fraternidade entre o
Oriente e o Ocidente, esperanças de uma humanidade mais unida por aquela
ligação marítima, palavras afáveis aos convidados reais, e recordações piedosas
dos corajosos trabalhadores, que durante aquela obra de luta morreram obscuramente.
Quando ele disse o nome do Snr. de Lesseps,
toda a imensa multidão bateu as palmas. Mr. Bauer findou, e o cortejo voltou à
praia e dispersou-se pelos navios. Durante toda a noite os fogos de artifício,
os clamores alegres da cidade, o ruído dos escaleres, as músicas, encheram a
baía de vida. Ao outro dia os navios começaram a mover-se lentamente, voltando
a proa para um ponto da baía de Port-Said, onde se erguiam, como os dois umbrais
de porta, doís obeliscos de madeira pintados de vermelho. Era a entrada do
canal de Suez. »
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