Julgo que o texto de Salles da Fonseca
se adapta, eventualmente, a estes tempos flexíveis, não ainda de parúsia, mas
pelo menos de descarrilamento, e por isso o utilizo como texto de reflexão, a
propósito de um caso a que por cá se deu relevo – uns em modo de defesa, outros
em modo de ataque: o da zanga de Ferro
Rodrigues, defendendo o seu local de trabalho, contra vexames sofridos
ultimamente, defendido aquele por alguns, atacado por outros, mas melhor que
ninguém só Jesus Cristo para julgar. A flexibilidade é virtude para uma melhor
adaptação, quer em termos de engenharia construtora, quer em termos de ideologia
orientadora. Salles da Fonseca ironiza
qb a esse respeito, São José Almeida defende
o seu herói mais radicalmente, esperemos que Ferro Rodrigues não saia quebrado
na refrega. O texto de Salles da Fonseca ensina a confiar. Confiemos, pois.
I – OPINIÃO: Defender
a democracia 45 anos depois
Sugiro
mesmo que os políticos portugueses recortem a entrevista e passem a usá-la como
mantra diário para a sua vida.
SÃO JOSÉ ALMEIDA PÚBLICO, 27 de Abril de 2019
“Os deputados e os membros dos cargos
políticos não podem ser tratados como cães. Ou pior do que cães, porque há cães
que são muito bem tratados.” O apelo foi
lançado por Eduardo Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República,
na entrevista que deu ao PÚBLICO,
simbolicamente editada a 25 de Abril, e em que assumiu ideias que reafirmou no
discurso da sessão solene na Assembleia da República.
Eduardo Ferro Rodrigues não é um
político qualquer. Aos 69 anos, é a
segunda figura do Estado. Tem um sólido percurso político no MES e depois no
PS. Foi ministro. Foi secretário-geral dos socialistas (2002-2004), num momento
de transição difícil, em que teve de suceder a António Guterres e ver o partido
voltar à oposição. E foi, nesse início do século XX, vítima de uma das mais
hediondas campanhas de ataque, com contornos populistas, feitas a um líder
partidário em Portugal, ao ver o seu nome envolvido no processo da Casa Pia,
até com recurso a fake news, num tempo em que a revolução digital ainda
era uma criança e em que as redes sociais não tinham o peso que têm hoje.
É
um actor político de primeiro plano e, até pela sua própria experiência, está
em situação privilegiada para reflectir sobre o momento que se vive na política
portuguesa, 45 anos após a Revolução dos Cravos. Provavelmente por isso, por
ter o domínio directo e a vivência, muitas vezes na primeira pessoa, desse percurso
democrático em Portugal, Eduardo Ferro Rodrigues levanta uma questão central e
essencial para perceber e retratar o momento que se vive hoje. Falo da forma como em Portugal a política entrou em
velocidade cruzeiro no mundo do relativismo ético.
Quando
os valores éticos parecem ter perdido peso no exercício da política, bem como no funcionamento
da sociedade em geral; quando muitos dos que se entregam à função política não
a entendem enquanto missão de serviço e dedicação à causa e ao interesse
público e mostram estar permeáveis a interesses privados – às vezes até ao seu
próprio interesse pessoal, é importante que alguém com o peso político e a
capacidade discernimento e de reflexão de Eduardo Ferro Rodrigues venha lembrar
aquilo que é vital numa sociedade democrática, ou seja, que a democracia é uma
construção política e social baseada no princípio da igualdade de tratamento e
que tem como objectivo permitir a governação racional e equilibrada que
respeite todos, que respeite o bem comum, que respeite o interesse público.
A entrevista de Eduardo Ferro
Rodrigues ao PÚBLICO é uma imensa e sábia lição sobre política e sobre o que é
a missão pública dos políticos. É certo que como presidente da Assembleia da
República não deixa de frisar que “o facto de haver uma minoria que pode criar
problemas comportamentais do ponto de vista democrático não significa que todo
um Parlamento possa ficar com a mesma imagem”. E faz questão de salientar que
“em todas as sondagens em que se pergunta sobre a imagem do Parlamento, este
tem uma imagem positiva, ao contrário da ideia que muitas vezes se tem”. Não
deixa, porém, de advertir que “é evidente que os políticos têm de se dar ao
respeito”.
Sugiro
mesmo que os políticos portugueses recortem a entrevista e passem a usá-la como
mantra diário para a sua vida – pela importância do que Eduardo Ferro Rodrigues
lembra sobre o relativismo ético que invade a política portuguesa. “É evidente que é necessário não dar armas aos
populismos. Um certo tipo de atitudes, um exercício do poder com uma certa
leveza dá armas ao populismo”, diz o
presidente da Assembleia da República sobre o familygate.
E acrescenta: “Acho que é mais vulgar acontecer este tipo de coisas em
gerações mais novas e que têm uma relação com o poder diferente, que estão mais
à vontade na gestão do exercício dos cargos públicos. É preciso ter sempre
muito cuidado com esses excessos de à vontade.” Contudo, salvaguarda: “Não
quero falar disto das gerações com superioridade moral. São gerações diferentes
e têm uma relação com o poder também diferente e têm uma vivência do exercício
do poder diferente. (…) Hoje em dia é tudo muito menos exigente. Julga-se, e
mal, que a democracia está consolidada e que tudo é possível. Não é.”
Claro
que não é, nem deve ser tentado esse caminho. A fragilidade da democracia é proporcional à sua força
atractiva enquanto promessa
de regime político que melhor garante a governação racional em nome do
interesse público, do respeito pelo interesse de todos, de forma inclusiva das
diversidades. Ora, para isso, os actores políticos têm de começar a dar-se a si
mesmos ao respeito, como sublinha Eduardo Ferro Rodrigues.
COMENTÁRIOS
ramalheira63,
28.04.2019: PS e o caso
Casa Pia. Acho que não foi fake news um juiz ir à A.R. prender um deputado, o
que só possível porque o Parlamento o autorizou. O caso Casa Pia teve depois um
desfecho completamente diferente. Gostava eu de saber porquê.
AndradeQB, Porto 27.04.2019: Se os jornalistas são assim tão acríticos, o que se
pode esperar da generalidade dos cidadãos? Listar os cargos de alguém, como
demonstração de capacidade e seriedade, é de um primarismo inaudito. Numa
altura em que começa a ser evidente o que tem sido o carreirismo politico em
Portugal, e a constatar-se que os mais sérios há muito que se começaram a
afastar, o que é que será de adivinhar de quem por lá sempre se manteve
saltando de lugar para lugar, sem nunca ter feito nada que se visse? Se alguma
coisa se pode antecipar, é exactamente o oposto das conclusões de São José
Almeida. O mais provável é que esse percurso tenha sido construído através da
troca de favores e de cumplicidades de grupo.
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva
Beira Alta27.04.2019: Eu acho que
São José Almeida complica uma coisa bastante simples - as nossas elites
políticas cederam a soberania nacional a Bruxelas sem a delicadeza sequer de
uma consulta directa. Fizeram-no obviamente em benefício próprio, foi uma forma
de venda do que lhes estava confiado. Como lemos esta semana, até para tirar 2
euros do IVA da electricidade têm de pedir luz verde a Bruxelas. Ficam assim as
nossas elites convertidas simultaneamente em clientes e ladrões de uma máquina
governativa que venderam à socapa - se não fosse essa a ideia porque acha que
não fazem consultas directas aos interessados?
Sandra, Lisboa 27.04.2019: Porque quem pergunta o que não deve, ouve aquilo que
não quer.
bento guerra, 27.04.2019: Será que a segunda figura do Estado ladra? E isto, quando
Portugal é governado por autêntico "governo de Abril".
HENRIQUE SALLES DA FONSECA A BEM DA NAÇÃO, 29.04.19
Quod
erat demonstrandum -Assim estava em demonstração – eis a expressão latina com que
os matemáticos concluem as demonstrações e eis o que os engenheiros japoneses
fizeram demonstrando que as estruturas flexíveis resistem melhor aos tremores
de terra do que as rígidas que, vibrando, não se adaptam, racham e ruem. Por
isso começaram por construir em madeira e bambu e nos tempos modernos
inventaram sistemas que «encaixam» as vibrações a que aquela instável condição
telúrica os sujeita. Isto, tanto na engenharia civil como nas ciências sociais: um
modelo social rígido, ao adaptar-se, deixa de ser esse modelo e passa a ser
outro, o que politicamente pode ser complicado; um modelo flexível, ao
adaptar-se, continua a ser isso mesmo, flexível.
Um
modelo social rígido tem, pois, a característica fundamental para se transformar num drama político; um modelo social flexível,
ao adaptar-se, demonstra a sua própria essência, a da
adaptação; o que para o rígido é questão de morte, para o flexível é razão de
vida.
Então, segundo o determinismo
histórico de Marx, o capitalismo burguês nasceu a partir das contradições
do sistema feudal e a burguesia, ao criar a sua oposição, o operariado, engendrou
também o seu futuro extermínio cavando a sua própria cova. Premissa correcta, prognóstico errado como historicamente se viu
em 1989.
O
modelo social rígido erigido pelos soviéticos na sequência da adopção da
doutrina marxista não foi capaz de se adaptar às exigências da vida moderna e
ao stress provocado pela «guerra das estrelas», vibrou, rachou e ruiu. Morreu em quase toda a
parte, só sobrevive nas ditaduras que desprezam o humanismo e assentam no
materialismo benéfico das respectivas
nomenklaturas. E, mesmo essas «peças de Museu», têm, elas também, um
determinismo histórico que as aguarda - creio que não na gloriosa falácia
histórica conclusiva marxista mas sim no entulho social a que conduz os
respectivos súbditos. Em
compensação, o modelo social flexível
adoptado pelo Ocidente já hoje nada tem a ver com o capitalismo que no séc. XIX
revoltou Marx, autocriticou-se, corrigiu-se e persiste num modo sempre
flexível, alerta, autocrítico: criou e deixou criar instituições de segurança
social, tributou, distribuiu, não se autofagiou. Quod erat demonstrandum, modelos rígidos são perniciosos e mesmo perversos tanto em
engenharia como na sociedade. E
quanto ao determinismo histórico marxista, cada vez mais me convenço de que nem
nos tempos escatológicos e muito menos aquando da parúsia. Abril de 2019
Acrescento os comentários de apreço que
o texto de Salles da Fonseca mereceu, os
esclarecimentos de Adriano Lima
enriquecendo, naturalmente, as questões postas no texto sóbrio e preciso de HSF.
6 COMENTÁRIOS
Henrique Salles da Fonseca 29.04.2019 09:08:
Caro Henrique, Penso que a chamada “gaiola” pombalina, em madeira, (o edifício
na Mouzinho da Silveira onde viu nascer o Banco BIC tinha-a) procurava ter o
efeito da madeira e do bambu da tua crónica. Sobre o outro tema do teu escrito,
estou a ler uma extensa biografia de Gorbachev, escrita por William Taubman,
que permite entender bem como se chegou a 1989… Abraço e boa semana. Carlos Traguelho
Anónimo 29.04.2019 13:57: Lembro dos tempos em que andei metido a
"toureiro". Quem não flexibilizava... dançava pelo ar! Com uma boa
marrada!
Adriano Lima 29.04.2019 15:29: Por via de regra, o Dr. Salles da Fonseca nos
presenteia com excelentes e importantes prosas. Desta vez, não é apenas
soberba a prosa deste texto como bem escolhidas as figuras literárias e,
sobretudo, a metáfora relacionada com as construções de engenharia. É absolutamente
irrebatível o raciocínio exposto, assim como a conclusão a que
chegou. É a evidência pura dos factos que o diz, sustentada em sólida
argumentação, não o preconceito ideológico ou o sectarismo partidário.
Aliás, na actualidade nenhum intelectual digno do nome diria o contrário do
que é aqui afirmado e demonstrado porque se o fizesse perdia crédito. Claro
que me refiro a cientistas políticos, filósofos ou sociólogos que agem
unicamente por amor à ciência. Não aos intelectuais (poucos) que ainda militam
em partidos comunistas, que o fazem certamente para cumprir uma qualquer
promessa escatológica e não por uma clarividência interior pautada pela
racionalidade. A religião é um sistema de normas e valores humanos
que tem por base a crença numa ordem sobre-humana. Na modernidade, surgiram
outras formas de religião que se baseiam em leis naturais, como é o caso do
comunismo mas também do liberalismo, do comunismo e do capitalismo. Porém, são
formadas por normas e princípios de uma rigidez e imobilismo tais que se pode
dizer que constituem autênticos dogmas, exactamente como os que regem o
cristianismo, o islamismo e o judaísmo.
Sendo assim, não são passíveis de adaptação ou flexibilidade, e é por esta
razão que entendo não deverem chamar-se “ideologias ou doutrinas”, como
prefeririam os seus mentores, mas sim “religiões”. Poder-se-á dizer que o
capitalismo obedece a um figurino algo diferente, desde que não suprima as
liberdades, mas penso que será só na aparência porque, tal como os tempos
actuais estão a demonstrar, ele encontra sempre formas de se impor e
sobreviver, limitando ou condicionando as liberdades ou opções das pessoas ou
das sociedades. No entanto, o comunismo é a “religião” que melhor se
encaixa na catalogação atrás feita, porque ou prossegue a sua via ruma ao
colapso, como aconteceu na Rússia, ou transforma-se em algo diferente mas
acabando por desaparecer na mesma uma vez perdida a sua identidade original. Fosse uma
ideologia, produto racional das ciências sociais, jamais poderia reger-se pelo
dogmático, dado que aquelas ciências baseiam-se naquilo que é objectivamente a
natureza humana, com a sua complexidade e o grau de ductilidade, evolucionismo
ou adaptabilidade que a caracteriza. Está
mais que demonstrado, como é aqui relembrado no texto do Dr. Salles da Fonseca,
que a condição primordial em que se basearam Marx e Lenine para
conceberem o comunismo – a existência do proletariado – e idealizaram a sua
longevidade ou imortalidade, foi um clamoroso erro de interpretação da
História. O que, aliás, não
tardaria a comprovar-se, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, com
o crescente aburguesamento da classe operária, a partir do momento em que
evoluiu significativa e progressivamente o seu nível de vida. Felicito-o
por esta preciosa peça do seu pensamento intelectual.
Henrique Salles da
Fonseca 29.04.2019 19:13: Henrique vocês
são muito eruditos e navegadores por mares nunca dantes navegados.Gosto muito
das vossas missivas.Beijinhos e ainda havemos de navegar pelos vossos céus um
dia todos juntos. Analuisa
PBN
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