segunda-feira, 29 de abril de 2019

Flexibilidade, eis a virtude


Julgo que o texto de Salles da Fonseca se adapta, eventualmente, a estes tempos flexíveis, não ainda de parúsia, mas pelo menos de descarrilamento, e por isso o utilizo como texto de reflexão, a propósito de um caso a que por cá se deu relevo – uns em modo de defesa, outros em modo de ataque: o da zanga de Ferro Rodrigues, defendendo o seu local de trabalho, contra vexames sofridos ultimamente, defendido aquele por alguns, atacado por outros, mas melhor que ninguém só Jesus Cristo para julgar. A flexibilidade é virtude para uma melhor adaptação, quer em termos de engenharia construtora, quer em termos de ideologia orientadora. Salles da Fonseca ironiza qb a esse respeito, São José Almeida defende o seu herói mais radicalmente, esperemos que Ferro Rodrigues não saia quebrado na refrega. O texto de Salles da Fonseca ensina a confiar. Confiemos, pois.
I – OPINIÃO:  Defender a democracia 45 anos depois
Sugiro mesmo que os políticos portugueses recortem a entrevista e passem a usá-la como mantra diário para a sua vida.
SÃO JOSÉ ALMEIDA PÚBLICO, 27 de Abril de 2019
“Os deputados e os membros dos cargos políticos não podem ser tratados como cães. Ou pior do que cães, porque há cães que são muito bem tratados.” O apelo foi lançado por Eduardo Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, na entrevista que deu ao PÚBLICO, simbolicamente editada a 25 de Abril, e em que assumiu ideias que reafirmou no discurso da sessão solene na Assembleia da República.
Eduardo Ferro Rodrigues não é um político qualquer. Aos 69 anos, é a segunda figura do Estado. Tem um sólido percurso político no MES e depois no PS. Foi ministro. Foi secretário-geral dos socialistas (2002-2004), num momento de transição difícil, em que teve de suceder a António Guterres e ver o partido voltar à oposição. E foi, nesse início do século XX, vítima de uma das mais hediondas campanhas de ataque, com contornos populistas, feitas a um líder partidário em Portugal, ao ver o seu nome envolvido no processo da Casa Pia, até com recurso a fake news, num tempo em que a revolução digital ainda era uma criança e em que as redes sociais não tinham o peso que têm hoje.
É um actor político de primeiro plano e, até pela sua própria experiência, está em situação privilegiada para reflectir sobre o momento que se vive na política portuguesa, 45 anos após a Revolução dos Cravos. Provavelmente por isso, por ter o domínio directo e a vivência, muitas vezes na primeira pessoa, desse percurso democrático em Portugal, Eduardo Ferro Rodrigues levanta uma questão central e essencial para perceber e retratar o momento que se vive hoje. Falo da forma como em Portugal a política entrou em velocidade cruzeiro no mundo do relativismo ético.
Quando os valores éticos parecem ter perdido peso no exercício da política, bem como no funcionamento da sociedade em geral; quando muitos dos que se entregam à função política não a entendem enquanto missão de serviço e dedicação à causa e ao interesse público e mostram estar permeáveis a interesses privados – às vezes até ao seu próprio interesse pessoal, é importante que alguém com o peso político e a capacidade discernimento e de reflexão de Eduardo Ferro Rodrigues venha lembrar aquilo que é vital numa sociedade democrática, ou seja, que a democracia é uma construção política e social baseada no princípio da igualdade de tratamento e que tem como objectivo permitir a governação racional e equilibrada que respeite todos, que respeite o bem comum, que respeite o interesse público.
A entrevista de Eduardo Ferro Rodrigues ao PÚBLICO é uma imensa e sábia lição sobre política e sobre o que é a missão pública dos políticos. É certo que como presidente da Assembleia da República não deixa de frisar que “o facto de haver uma minoria que pode criar problemas comportamentais do ponto de vista democrático não significa que todo um Parlamento possa ficar com a mesma imagem”. E faz questão de salientar que “em todas as sondagens em que se pergunta sobre a imagem do Parlamento, este tem uma imagem positiva, ao contrário da ideia que muitas vezes se tem”. Não deixa, porém, de advertir que “é evidente que os políticos têm de se dar ao respeito”.
Sugiro mesmo que os políticos portugueses recortem a entrevista e passem a usá-la como mantra diário para a sua vida – pela importância do que Eduardo Ferro Rodrigues lembra sobre o relativismo ético que invade a política portuguesa.É evidente que é necessário não dar armas aos populismos. Um certo tipo de atitudes, um exercício do poder com uma certa leveza dá armas ao populismo”, diz o presidente da Assembleia da República sobre o familygate. E acrescenta: “Acho que é mais vulgar acontecer este tipo de coisas em gerações mais novas e que têm uma relação com o poder diferente, que estão mais à vontade na gestão do exercício dos cargos públicos. É preciso ter sempre muito cuidado com esses excessos de à vontade.” Contudo, salvaguarda: “Não quero falar disto das gerações com superioridade moral. São gerações diferentes e têm uma relação com o poder também diferente e têm uma vivência do exercício do poder diferente. (…) Hoje em dia é tudo muito menos exigente. Julga-se, e mal, que a democracia está consolidada e que tudo é possível. Não é.
Claro que não é, nem deve ser tentado esse caminho. A fragilidade da democracia é proporcional à sua força atractiva enquanto promessa de regime político que melhor garante a governação racional em nome do interesse público, do respeito pelo interesse de todos, de forma inclusiva das diversidades. Ora, para isso, os actores políticos têm de começar a dar-se a si mesmos ao respeito, como sublinha Eduardo Ferro Rodrigues.
COMENTÁRIOS
ramalheira63, 28.04.2019: PS e o caso Casa Pia. Acho que não foi fake news um juiz ir à A.R. prender um deputado, o que só possível porque o Parlamento o autorizou. O caso Casa Pia teve depois um desfecho completamente diferente. Gostava eu de saber porquê.
AndradeQB, Porto 27.04.2019: Se os jornalistas são assim tão acríticos, o que se pode esperar da generalidade dos cidadãos? Listar os cargos de alguém, como demonstração de capacidade e seriedade, é de um primarismo inaudito. Numa altura em que começa a ser evidente o que tem sido o carreirismo politico em Portugal, e a constatar-se que os mais sérios há muito que se começaram a afastar, o que é que será de adivinhar de quem por lá sempre se manteve saltando de lugar para lugar, sem nunca ter feito nada que se visse? Se alguma coisa se pode antecipar, é exactamente o oposto das conclusões de São José Almeida. O mais provável é que esse percurso tenha sido construído através da troca de favores e de cumplicidades de grupo.
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira Alta27.04.2019: Eu acho que São José Almeida complica uma coisa bastante simples - as nossas elites políticas cederam a soberania nacional a Bruxelas sem a delicadeza sequer de uma consulta directa. Fizeram-no obviamente em benefício próprio, foi uma forma de venda do que lhes estava confiado. Como lemos esta semana, até para tirar 2 euros do IVA da electricidade têm de pedir luz verde a Bruxelas. Ficam assim as nossas elites convertidas simultaneamente em clientes e ladrões de uma máquina governativa que venderam à socapa - se não fosse essa a ideia porque acha que não fazem consultas directas aos interessados?
Sandra, Lisboa 27.04.2019: Porque quem pergunta o que não deve, ouve aquilo que não quer.
bento guerra, 27.04.2019: Será que a segunda figura do Estado ladra? E isto, quando Portugal é governado por autêntico "governo de Abril".
 HENRIQUE SALLES DA FONSECA    A BEM DA NAÇÃO,  29.04.19
Quod erat demonstrandum -Assim estava em demonstração eis a expressão latina com que os matemáticos concluem as demonstrações e eis o que os engenheiros japoneses fizeram demonstrando que as estruturas flexíveis resistem melhor aos tremores de terra do que as rígidas que, vibrando, não se adaptam, racham e ruem. Por isso começaram por construir em madeira e bambu e nos tempos modernos inventaram sistemas que «encaixam» as vibrações a que aquela instável condição telúrica os sujeita. Isto, tanto na engenharia civil como nas ciências sociais: um modelo social rígido, ao adaptar-se, deixa de ser esse modelo e passa a ser outro, o que politicamente pode ser complicado; um modelo flexível, ao adaptar-se, continua a ser isso mesmo, flexível.
Um modelo social rígido tem, pois, a característica fundamental para se transformar num drama político; um modelo social flexível, ao adaptar-se, demonstra a sua própria essência, a da adaptação; o que para o rígido é questão de morte, para o flexível é razão de vida.
Então, segundo o determinismo histórico de Marx, o capitalismo burguês nasceu a partir das contradições do sistema feudal e a burguesia, ao criar a sua oposição, o operariado, engendrou também o seu futuro extermínio cavando a sua própria cova. Premissa correcta, prognóstico errado como historicamente se viu em 1989.
O modelo social rígido erigido pelos soviéticos na sequência da adopção da doutrina marxista não foi capaz de se adaptar às exigências da vida moderna e ao stress provocado pela «guerra das estrelas», vibrou, rachou e ruiu. Morreu em quase toda a parte, só sobrevive nas ditaduras que desprezam o humanismo e assentam no materialismo benéfico das respectivas nomenklaturas. E, mesmo essas «peças de Museu», têm, elas também, um determinismo histórico que as aguarda - creio que não na gloriosa falácia histórica conclusiva marxista mas sim no entulho social a que conduz os respectivos súbditos. Em compensação, o modelo social flexível adoptado pelo Ocidente já hoje nada tem a ver com o capitalismo que no séc. XIX revoltou Marx, autocriticou-se, corrigiu-se e persiste num modo sempre flexível, alerta, autocrítico: criou e deixou criar instituições de segurança social, tributou, distribuiu, não se autofagiou. Quod erat demonstrandum, modelos rígidos são perniciosos e mesmo perversos tanto em engenharia como na sociedade. E quanto ao determinismo histórico marxista, cada vez mais me convenço de que nem nos tempos escatológicos e muito menos aquando da parúsia.  Abril de 2019


Acrescento os comentários de apreço que o texto de Salles da Fonseca mereceu, os esclarecimentos de Adriano Lima enriquecendo, naturalmente, as questões postas no texto sóbrio e preciso de HSF.

6 COMENTÁRIOS
 Henrique Salles da Fonseca  29.04.2019  09:08: Caro Henrique, Penso que a chamada “gaiola” pombalina, em madeira, (o edifício na Mouzinho da Silveira onde viu nascer o Banco BIC tinha-a) procurava ter o efeito da madeira e do bambu da tua crónica. Sobre o outro tema do teu escrito, estou a ler uma extensa biografia de Gorbachev, escrita por William Taubman, que permite entender bem como se chegou a 1989… Abraço e boa semana. Carlos Traguelho
Henrique Salles da Fonseca  29.04.2019  09:09: «Quod erat demonstrandum» Um abraço  José Montalvão
 Anónimo  29.04.2019  13:57: Lembro dos tempos em que andei metido a "toureiro". Quem não flexibilizava... dançava pelo ar! Com uma boa marrada!
Adriano Lima  29.04.2019  15:29: Por via de regra, o Dr. Salles da Fonseca nos presenteia com excelentes e importantes prosas. Desta vez, não é apenas soberba a prosa deste texto como bem escolhidas as figuras literárias e, sobretudo, a metáfora relacionada com as construções de engenharia. É absolutamente irrebatível o raciocínio exposto, assim como a conclusão a que chegou. É a evidência pura dos factos que o diz, sustentada em sólida argumentação, não o preconceito ideológico ou o sectarismo partidário. Aliás, na actualidade nenhum intelectual digno do nome diria o contrário do que é aqui afirmado e demonstrado porque se o fizesse perdia crédito. Claro que me refiro a cientistas políticos, filósofos ou sociólogos que agem unicamente por amor à ciência. Não aos intelectuais (poucos) que ainda militam em partidos comunistas, que o fazem certamente para cumprir uma qualquer promessa escatológica e não por uma clarividência interior pautada pela racionalidade. A religião é um sistema de normas e valores humanos que tem por base a crença numa ordem sobre-humana. Na modernidade, surgiram outras formas de religião que se baseiam em leis naturais, como é o caso do comunismo mas também do liberalismo, do comunismo e do capitalismo. Porém, são formadas por normas e princípios de uma rigidez e imobilismo tais que se pode dizer que constituem autênticos dogmas, exactamente como os que regem o cristianismo, o islamismo e o judaísmo. Sendo assim, não são passíveis de adaptação ou flexibilidade, e é por esta razão que entendo não deverem chamar-se “ideologias ou doutrinas”, como prefeririam os seus mentores, mas sim “religiões”. Poder-se-á dizer que o capitalismo obedece a um figurino algo diferente, desde que não suprima as liberdades, mas penso que será só na aparência porque, tal como os tempos actuais estão a demonstrar, ele encontra sempre formas de se impor e sobreviver, limitando ou condicionando as liberdades ou opções das pessoas ou das sociedades. No entanto, o comunismo é a “religião” que melhor se encaixa na catalogação atrás feita, porque ou prossegue a sua via ruma ao colapso, como aconteceu na Rússia, ou transforma-se em algo diferente mas acabando por desaparecer na mesma uma vez perdida a sua identidade original. Fosse uma ideologia, produto racional das ciências sociais, jamais poderia reger-se pelo dogmático, dado que aquelas ciências baseiam-se naquilo que é objectivamente a natureza humana, com a sua complexidade e o grau de ductilidade, evolucionismo ou adaptabilidade que a caracteriza. Está mais que demonstrado, como é aqui relembrado no texto do Dr. Salles da Fonseca, que a condição primordial em que se basearam Marx e Lenine para conceberem o comunismo – a existência do proletariado – e idealizaram a sua longevidade ou imortalidade, foi um clamoroso erro de interpretação da História. O que, aliás, não tardaria a comprovar-se, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, com o crescente aburguesamento da classe operária, a partir do momento em que evoluiu significativa e progressivamente o seu nível de vida. Felicito-o por esta preciosa peça do seu pensamento intelectual.
Henrique Salles da Fonseca  29.04.2019  17:33: Obrigado, Senhor Coronel! Continuemos...
 Henrique Salles da Fonseca  29.04.2019  19:13: Henrique vocês são muito eruditos e navegadores por mares nunca dantes navegados.Gosto muito das vossas missivas.Beijinhos e ainda havemos de navegar pelos vossos céus um dia todos juntos. Analuisa PBN



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