É o que faz sentir Pacheco Pereira com o seu texto crítico do movimento feminista
“Metoo” instalado já há vários anos, condenatório dos abusos sexuais, inicialmente
em defesa das mulheres negras, e seguidamente generalizado às mulheres brancas
que desataram a confessar os seus próprios casos de vítimas de violações, que
parece hoje um prato forte dos programas da visibilidade mediática, embora tais
confissões disfarcem por vezes as figuras e as vozes. Creio que sim, que o
machismo é condenável, mas a relevância que se dá hoje ao assunto – que poderia
ser tratado menos espectacularmente, nos locais próprios e com legislação
específica, condenatória dos vícios e desses abusos – também não é de molde a
criar uma sociedade muito respeitável, tanto mais que tais confissões das
mulheres servirão muitas vezes de forma habilidosa de extorquir dinheiro, como,
de resto, é o caso dos divórcios que se prezem. Mas José
Pacheco Pereira é
mentalmente sério e lúcido, e condena racionalmente, com os argumentos
próprios, uma tal sociedade de espalhafato e desvergonha. Concordo com ele,
neste capítulo.
Por que é que o #MeToo e suas variantes
são reaccionários e puritanos
O facto de ser crítico do #MeToo não me
coloca entre os que desvalorizam a questão do machismo, mas todos olharão para
a recusa do #MeToo como desclassificando a preocupação com o machismo, diga o
que disser.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 6 de Abril de 2019
Para
se ver o estado em que as coisas estão, começa por se considerar que um artigo
desta natureza não deveria, ou não poderia, ser escrito por um homem. Logo à
cabeça, diga-se o que se disser, a leitura preconceituosa do artigo é moldada,
antes de tudo, pelo género de quem o escreve. Há, de imediato, um espontâneo
processo de intenção, que dita que, seja o que for que eu escrever, o facto de
não concordar com a solução do #MeToo tira valor ao facto de entender que há
um problema perverso nas relações homem-mulher nesta sociedade. O facto
de ser crítico do #MeToo não me coloca entre os que desvalorizam a questão do
machismo, mas todos olharão para a recusa do #MeToo como desclassificando
a preocupação com o machismo, diga o que disser. É como um branco a escrever
sobre o racismo – como não é negro nem cigano, não sabe do que fala, nem sente
“na pele” o racismo.
Um
dos aspectos da falência da racionalidade, nos dias de hoje, é a ideia de que o
direito à palavra pertence naturalmente à parte mais fraca e de que, num debate público, os homens e mulheres não
são julgados pelos argumentos racionais, pelo logos, mas pelo pathos,
da experiência vivida e intransmissível por cima do género. Que eu saiba, “no
sentir na pele”, a “pele” não pensa, mas sim a cabeça. Este tipo de anátemas e
reducionismos no debate público é cada vez mais comum e empobrecem-no muito.
Não
tenho dúvidas de que há uma prática estabelecida de abuso das mulheres por
parte dos homens, numa cultura machista, e que tal não deve ser menosprezado e
deve ser combatido. E não é das mulheres sobre os homens, é dos homens sobre as
mulheres. As mulheres são as vítimas de incontáveis actos de abuso, uns mais
graves do que outros, mas praticados sempre no âmbito de uma cultura
dominantemente machista. Não é um comportamento pontual e conjuntural, está no
âmago da cultura da sociedade em que vivemos, dos EUA à Suécia, de França a
Portugal.
Se
há seta do progresso, ela compreende a desmachização das sociedades
contemporâneas, um processo lento, difícil, que deve sempre mais às mulheres do
que aos homens. Daí que o arranque do movimento do #MeToo tenha sido
fundamental para revelar a extensão do problema, as suas formas mais
disfarçadas, e instituir um mecanismo de prevenção pelo medo. Os homens que
abusavam têm agora a consciência de que podem pagar um preço bem caro por esse
abuso. Isto foi o melhor do movimento inicial do #MeToo. Só que, depois, a
coisa descambou.
Hoje,
movimentos como o #MeToo e outras variantes mais ou menos radicalizadas, mais
ou menos feministas, não são uma resposta, são uma parte do problema, a parte
do problema que emigrou de um lado para o outro, da cultura machista para uma
nova variante de cultura puritana, socialmente reaccionária. Essa cultura agressiva está muito longe do
movimento inicial e gera um terreno muito ambíguo que, no limite, pode sempre
criminalizar a sedução, gerar uma gramática das relações afectivas muito rígida
e burocrática, criando um extenso rol de regras, que só falta colocar no papel
numa espécie de contrato de consentimento, cuja validade pode durar uns
segundos, porque o “sim” de há segundos pode dar origem a um “não” a seguir.
Ninguém se relaciona afectivamente assim na prática, mas pode ser perseguido
assim com a maior facilidade.
Depois,
o #MeToo, hoje, é um movimento claramente hostil à heterossexualidade, outra
coisa que também não se pode dizer no pensamento policiado dos dias de hoje.
Quem são os maus e em que contexto são eles os maus? Quase sempre, homens numa
relação heterossexual. Embora
todos saibamos que há abusos em relações homossexuais com a mesma mecânica e
quase a mesma forma entre homens e homens e mulheres e mulheres, a grande
ofensiva é no contexto heterossexual. Pode dizer-se que tal é natural,
devido à prevalência maioritária desse tipo de relações, mas há um julgamento
de perigosidade maior sobre as relações heterossexuais do que sobre as relações
homossexuais, como se o abuso residisse preferencialmente nas primeiras.
Depois,
e isto é um problema crescente, casos graves, mesmo crimes de violação, são
tratados do mesmo modo do que comportamentos impróprios ou ambíguos na sua
forma. Comportamentos que eram socialmente aceitáveis, nos dois lados, homens e
mulheres, ou seja, que não eram “sentidos” como sendo de abuso, hoje são
retrospectivamente apontados como sendo abusivos. Este processo gera um
efeito de trivialização do abuso, que o torna na acusação mais comum para
destruir vidas e carreiras. O facto de, em muitos casos, haver razão nas
acusações não pode fazer esquecer a facilidade em acusar sem provas que
sejam mais do que impressões, quase sempre a posteriori.
Movimentos
radicais, como algumas sequelas feministas do #Me Too, na prática, o que fazem
é criminalizar a sexualidade, reduzi-la a um contrato codificado de normas e
regras, num movimento que resulta num puritanismo moderno, ou numa
subvalorização do sexo cuja relação com o abuso habitual torna impuro. O sexo é o lugar do abuso, a sede do abuso, e só
burocratas o podem fazer deitados em cima de um código de costumes. Em teoria,
porque nada disto acontece na prática, e nem as mais radicais feministas fazem
sexo assim. Dá bons slogans feministas nos cartazes das manifestações, mas
são completamente irrealistas. Pelo contrário, acentuam o policiamento de
corpos e cabeças, e isso é bem real.
Colunista
COMENTÁRIOS
Nortuguês: AlémCREL 08.04.2019 19:25: Muito bem, JPP!
Um assunto a aprofundar. Espero mais desenvolvimento.
Manuel, Seixal 07.04.2019 11:43: Concordo com o
cronista, pois o metoo, entrou no campo político. Tal como a inquisição, já não
procura defender vitimas, procura destruir, humilhar quem quer que não comungue
da sua doutrina: "os homens heterossexuais são todos machistas, violadores,
uns porcos. As mulheres, os homossexuais são incapazes de violência sexual, de
manipular, de usar o sexo para subir na vida..."
Tiago Vasconcelos, Amsterdam07.04.2019
14:23: Obviamente
que qualquer pessoa com dois dedos de testa receia a introdução de legislação
radical que servirá para ser aproveitada por gente vingativa ou oportunista.
Beep Beep,
Lisbon, Portugal - Burnley, Lancashire 07.04.2019
20:25: Exemplo de “legislação radical” pf? É que a actual, ou
pelo menos a interpretação de certos Netos de Moura, desprotege radicalmente
muita gente.
Vieira, 07.04.2019 02:55: O Pacheco Pereira de braço dado com os misóginos, com
os fascistas e com os indigentes da conversa de café. Não é de espantar pois
que já o vimos a bajular o admirador do regime fascista e colaboracionista da
PIDE Cavaco por um lugar na ribalta. É isso que o move, o ressentimento contra
aqueles que não lhe reconhecem a grandeza intelectual que ele julga ter. É a
psicologia estúpido!
Tiago Vasconcelos, Amsterdam, 07.04.2019
06:02: Mais
uma diatribe com laivos de lunaticidade pela pena de um dos bolcheviques de
serviço, reconhecido admirador de ditaduras socialistas do presente e do
passado. Para os lunáticos da esquerda radical -- do qual o
bolchevique acima é apenas um dos casos mais clínicos -- tudo o que vier da
direita é "fascista"... Enfim, um tique vulgar nos membros da matilha
autoritária da qual faz parte.
José Manuel Martins, Évora 07.04.2019
02:3: bom,
o pacheco descobriu que também há abusos de mulheres: mas só, apenas,
unicamente, exclusivamente, tão-só, meramente - de mulheres para mulheres.
Mistérios. De facto, assiste-se hoje a uma dominante ideológica que consiste na
estrita inversão especular do princípio WASP patriarcal. E uma imagem em
espelho é uma imagem do mesmo. Esqueceu-se porém Pacheco, que anda cego, de
outra coisa: é que pode à vontade e à fartanzana falar e perorar de racismo,
xenofobia, homossexualidade e todos os outros temas fracturantes da 'revolução
imperceptível' de uma esquerda que soube compreender o calcanhar de Aquiles
pequeno-freudiano da pequena-burguesia, da classe média mundial - pode
pontificar à vontade sobre todos esses temas proibidos... se for 'de esquerda'
(policial). É o passaporte e o carimbo.
Zé Goes, Lisboa 07.04.2019 00:55: Pacheco Pereira a
analisar excelentemente sobre a verdadeira natureza do #metoo e outros
movimentos promotores do pensamento policiado.
Célio Carreira, 06.04.2019 23:54: Concordo na
totalidade com o pensamento do JPP sobre este assunto e faço minhas as suas
palavras. Não preciso de acrescentar mais nada.
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