domingo, 21 de abril de 2019

Amêndoas da Páscoa



Que guardo, com gosto, no meu blog, neste domingo de Páscoa de 2019. Dois textos de opinião, de cunho diarístico. Tantos são os casos da nossa lana caprina que se sucedem dia após dia, que difícil se torna, quando se tem perspicácia, tendência investigadora e mordacidade q.b. enveredar por outro meio que não seja o do conta-gotas, imprimindo simultaneamente leveza e seriedade nos seus comentários críticos. Talvez VPV seja mais contundente e sem meias medidas, AG mais sarcástico e destrutivo. Ambos lutando, naturalmente, por um país mais sério. Mas são tantos os nossos disparates, a começar pelo exibicionismo sem emenda do PR que só nos resta ir descambando, creio que com o prazer dos promotores das greves. Apesar de tudo, nem sempre concordo com as tiradas de VPV, e uma delas é a notícia de 14 de Abril, considerando uma má notícia a da unidade espanhola. Não acho que seja uma má notícia, mas uma nobre notícia. Só li alguns comentadores – (chuchadores) de A. G., entre as quase duas centenas, mas desisti.
OPINIÃO          Diário
Quando é que o senhor Presidente da República se acalma?
VASCO PULIDO VALENTE
PÚBLICO, 20 de Abril de 2019, 6:35
14 de Abril: Más notícias de Espanha. Parece que o PSOE está a fazer uma campanha com a ideia central do “aprofundamento” do socialismo. E parece que o PP e o Vox se apresentam como defensores da unidade de Espanha. É o retrato em redondo, como compete a uma sociedade igualitária e democrática, do alinhamento da guerra civil em 1936.
15 de Abril: Para mim, Notre-Dame estará sempre associada a duas cenas. Primeira, a preto e branco, à missa que o Governo de Reynaud, com Pétain e de Gaulle, mandou rezar a Santa Genoveva e a Joana d’Arc quando os alemães estavam a 100 quilómetros de Paris. Na segunda, de 1945, sem imagem, de Gaulle avança imperturbável pela nave enquanto um grupo de colaboracionistas dispara contra ele do alto das galerias. Reparo agora que tudo isto é uma boa metáfora da morte e ressurreição.
16 de Abril: O Estado e quarenta anos de democracia educaram os portugueses. A esta educação geral (9.º ou 12.º ano) a vida acrescentou uma especialização. Por isso, sucede que aparecem às vezes 800 motoristas de matérias perigosas que ganham 630 euros de salário base e que podem, se fizerem greve, paralisar o país. O que é muito bem feito para o país.
17 de Abril: A dra. Manuela Ferreira Leite, antiga presidente do PSD e expoente, com Rui Rio, do centro-esquerda salazarista, descobriu uma conspiração na greve dos motoristas de matérias perigosas. Para ela, “nada é inocente” naquele sindicato. É preciso que se investigue as suas origens e o seu financiamento. A dra. Manuela vê por detrás de enganosas aparências uma conspiração de extrema-direita. Não dizem agora as “populações” que as greves deviam ser proibidas? Se não tivesse assistido às cenas da Assembleia da República e às considerações do sr. Pedro Duarte na televisão, não acreditava. Assim acredito outra vez na Bruxa da Montanha. O que não quer dizer que a falta de um plano de contingência para uma situação tão séria não me deixe estupefacto. O Prof. Adriano Moreira tem razão: o Estado português é “exíguo”. “Exíguo” e fraco. Tão fraco que 800 motoristas de matérias perigosas, no justo exercício de um direito constitucional, o conseguem pôr em risco.
18 de Abril O Prof. Marcelo Rebelo de Sousa não resiste a meter o nariz em tudo o que puxa à corda sentimental, mas foge a qualquer questão de substância. Lavou as mãos dos motoristas com duas frases, porque eram uma “matéria perigosa”. Já o desastre da Madeira serviu para ele se expandir em toda a sua magnificência: fez declarações, mandou telegramas, ofereceu o seu Falcon, até se ofereceu a ele próprio para ir solenemente presenciar a catástrofe e depois, num gesto dramático, desistiu a favor dos feridos. Quando é que o senhor Presidente da República se acalma?
Por causa da greve dos motoristas de matérias perigosas, floresceram por aí vários teóricos do sindicalismo. Pena. Esse foi o primeiro grande erro de Marx: tratar a classe operária como ela era em 1840 e como Engels a descreveu em “As condições da classe operária em Inglaterra”, indiferenciada e una. Mas logo do princípio, ainda em vida de Marx, já os ferroviários demonstravam a falácia dessa visão. A economia crescia e, crescendo, aumentava em complexidade e, pela mesma medida, as classes trabalhadoras aumentavam em heterogeneidade. E alguns grupos de trabalhadores em posições estratégicas ficavam com um poder especial sobre a sociedade. Os governos das grandes potências foram forçados a perceber isto, durante a I e a II Guerra. Tiveram de negociar humildemente com os seus inferiores, para ter artilharia e aviões.
Os motoristas de matérias perigosas são apenas os últimos em Portugal a demonstrar a ficção de uma classe operária homogénea, agindo em conjunto e destinada a governar o mundo.
Colunista
COMENTÁRIOS
ana cristina, Lisboa et Orbi: alguém que pensa e quando escreve o que pensa, provoca calafrios em boa parte dos seus leitores. boa, Vasco. o meu eterno agradecimento por provocar calafrios no meio desta onda de conversa para boi dormir.
Colete Amarelo: Temos muita sorte em ler os artigos do VPV . São textos com signficação em diferentes níveis que merecem ser lidos e relidos. Obrigado.
OldVic, Música do dia: "Bandoleiro" (Ney Matogrosso), Liberdade para a Venezuela! 09:38: O que não quer dizer que a falta de um plano de contingência para uma situação tão séria não me deixe estupefacto. O Prof. Adriano Moreira tem razão: o Estado português é ‘exíguo’. ‘Exíguo’ e fraco. Tão fraco que 800 motoristas de matérias perigosas, no justo exercício de um direito constitucional, o conseguem pôr em risco”: exíguo em termos de competência, já que em termos de custo é cada vez mais vasto (carga fiscal recorde).
cisteina, Porto 10:21: Repetitivo ad nauseam, este comentador abusivo da boa-fé dos leitores, chega-nos o que VPV escreveu, dispensa acólitos.
Crónica de uma greve (literalmente) anunciada /premium
ALBERTO GONÇALVES              OBSERVADOR, 19/4/2019
A greve mostrou por uns dias o que é habitar a Venezuela. O nosso “espaço público”, da saloiice do poder à subserviência dos “media”, mostra-o constantemente. E é ridículo perder tempo a lamentá-lo.
Domingo. Tal como o governo, passei o fim de semana – e as semanas anteriores – a ignorar o anúncio de greve de 600 ou 800 camionistas de “materiais perigosos”. Tal como o governo, julguei que os materiais perigosos se referiam a adeptos da bola, devoluções do último cd de Fernando Tordo ou jihadistas refugiados. Tal como ao governo, não me pareceram produtos cuja falta eu lamentasse excessivamente.
Segunda-feira. Aumentaram de frequência as notícias sobre a greve, que afinal se prende com a distribuição de combustíveis. O governo continuou indiferente. Eu também. O governo porque faz da inépcia um modo de vida. Eu porque, sempre que assino meia dúzia de linhas em prol do automóvel, apanho com a indignação dos fervorosos adeptos das ciclovias, dos veículos eléctricos e sobretudo dos transportes públicos, a acreditar nas televisões o meio favorito de ministros e autarcas – além disso, gozam de descontos e, garantem-me, são imensamente práticos.
Terça-feira. Tomei café numa bomba de gasolina em pleno funcionamento e nem me ocorreu abastecer. A que propósito? As recorrentes reacções ao meu apreço por carros criaram-me a impressão de que apenas uma ínfima minoria dos meus compatriotas apreciaria deslocar-se dessa anacrónica maneira. Seriam, à minha imagem e semelhança, criaturas poluentes e ultrapassadas, paradoxalmente por bicicletas partilhadas, calhambeques híbridos e “metros” de superfície que se movem a 20 km/h. Por isto ou por aquilo, convenci-me de que estas eram as formas de locomoção da população em peso, consciente dos “desafios da mobilidade” e convertida à necessidade ambiental de demorar hora e meia entre Matosinhos e Campanhã.
Quarta-feira de manhã. Acordei com a revelação de que os meus compatriotas são, com todo o respeito, uns hipócritas sem remédio. Tanta lengalenga alusiva aos horrores dos combustíveis fósseis e, à primeira (ou segunda, ou, vá lá, à décima sétima) suspeita de que os combustíveis fósseis podem escassear, lançam-se aos trambolhões nos respectivos postos, a fim de atestar o carrinho, que bom jeitinho lhes dá. Hipócritas e ponderados, já que, para evitar cortes no fornecimento de um produto, não há melhor do que correr aos magotes a adquiri-lo. Tal como o governo, aqui comecei a preocupar-me. O governo, que sempre jurou não ter nada a ver com o problema, passou a tentar resolver o problema, sinal claro de que o problema não se resolveria tão cedo e que, com sorte, arriscava agravar-se. Nos intervalos das “selfies” em velórios e baptizados, o prof. Marcelo disse umas frases no seu estilo próprio, mas, francamente, não prestei atenção e, à excepção do comentador Marques Mendes, duvido que haja no planeta criatura que preste.
Quarta-feira de tarde. Após longa hesitação e moderada preguiça, parti finalmente em busca de gasóleo, mistela que, em Janeiro, o ministro do Ambiente previu abolida em “quatro ou cinco anos”. Aparentemente, queria dizer meses: nos raros postos abertos, a venda limitava-se à gasolina, além de tabaco e vitualhas. Esgotadas as lojas óbvias, atirei-me em busca das obscuras. Com a ajuda do GPS e de indomável coragem, descobri bombas em lugares ermos. Infelizmente, outros descobriram-nas primeiro. A saga ameaçava terminar sem glória quando, em território ausente dos mapas, encontrei um estabelecimento com gasóleo, ou uma promessa do dito. Embora estivesse “no casco” (cito), o funcionário sugeriu que eu esperasse na fila. A fila era de dois carros. Esperei um instante, ou o tempo suficiente para que um sujeito se plantasse junto à minha porta aos gritos: “Não vai meter gasoil! Não vai meter gasoil!” Baixei o vidro e respondi com serenidade: “Hã?” O sujeito repetia: “Não vai meter gasoil!” Olhei em redor à cata de um tradutor e percebi que a fila não era de dois carros: era de uns trinta, e que o condutor de um deles ficara irado face ao desplante com que os ignorei. Presumi que o “casco” e a minha paciência não resistiriam a tamanha procura e arranquei de regresso a casa. Principiei a odisseia com autonomia para 60 km. À chegada, mal dava para 20.
Quarta-feira à noite. Por motivos óbvios, permaneci no remanso do lar, a aprender os meandros da situação. Aprendi, por exemplo, que, avesso a interferir em questões do foro privado, o governo interferira para decretar racionamento e “serviços mínimos”. Aprendi que os mesmos se restringiam a Lisboa e ao Porto, na acertada suposição de que o interior se fornece em Espanha, aliás o que só os maluquinhos não fazem há anos. Aprendi que esta greve em particular é um acto vil, na medida em que não desfruta do aval da CGTP e contesta o progresso com que a esquerda nos abençoou. Aprendi que a autarquia lisboeta disponibilizou bicicletas ao povo, sob o divertido argumento de que “estas têm o depósito cheio”. Aprendi que é infinita a resignação do povo perante a prepotência. Aprendi, com a dona Catarina do BE, que a culpa disto é da “troika”. Aprendi que, em simultâneo aos cérebros que se torce a ver se dão mais, há cérebros que já nascem torcidos. E aprendi que o prof. Marcelo voltou a emitir frases, ainda que com ele a aprendizagem seja ilusória.
Quinta-feira. De manhã, a greve acabou, graças a um governo que não podia fazer fosse o que fosse para que a greve acabasse ou para prevenir os seus efeitos. À hora de almoço, naturalmente, as bombas permaneciam vazias. De tarde havia “gasoil”, a euro e meio o litro. Ajoelhei e agradeci ao dr. Costa.
Sexta-feira. O “spin”, designação “fina” de propaganda, arrancou em grande. Avençados disfarçados de opinadores condenaram a greve. Sociólogos disfarçados de avençados condenaram o “aproveitamento político” da greve. E o DN, uma filial disfarçada de zombie, chamou à “capa” (que não tem), um artigo (que não se lê), assinado por uma “jornalista” (que não se enxerga). A manchete? “O advogado de Maserati que dirige os camionistas”. Por esquecimento, não mencionaram o Fiat Punto do advogado que dirige o DN.
Epílogo. E é assim. A greve mostrou por uns dias o que é habitar a Venezuela. O nosso “espaço público”, da saloiice do poder à subserviência dos “media”, mostra-o constantemente. É ridículo perder tempo a lamentar o buraco a que chegamos se podemos aproveitar para temer o buraco a que haveremos de chegar. De carro ou bicicleta, não vai demorar muito.
Notas de rodapé
1. Na Madeira, o acidente com um autocarro levou o vice-presidente da região a esclarecer, com certo enfado, que o turismo local não seria afectado por aqueles 29 alemães mortos. Claro que não: a população alemã é de largos milhões, pelo que ainda sobraram muitos. E então ingleses, americanos, espanhóis e franceses sobraram todos. Enquanto isso, o presidente madeirense, que não emitiu um pio a propósito, foi dado em parte incerta num vago “estrangeiro”, e depois no Dubai. Fez bem. Por um lado, evitou dizer disparates. Por outro, apesar de lhe imitar a estratégia, não se deixou fotografar em calções como o dr. Costa durante os incêndios. Um estadista que ninguém vê: por mim, trocava já 300 estarolas do “continente” pelo dr. Albuquerque. Quanto aos madeirenses, esses ingratos, suspeito que em Setembro trocarão o dr. Albuquerque por quem calhar.
2. Não sendo sequer remotamente cristão, tive pena do que aconteceu a Notre-Dame. E tive ainda mais pena de que os escombros não tivessem desabado em cima dos que, de uma maneira ou de outra, celebraram a tragédia.
3. Greta Thunberg, a criança sueca que inspirou milhares de crianças a marchar contra o capitalismo de telemóvel em punho, apelou no Parlamento Europeu a que “salvem [quem?] o mundo como salvaram [salvaram?] Notre-Dame”. Presumo que as idades mentais da audiência e da oradora sejam equivalentes. Já os jornalistas que chamam “activista” a Greta são bastante mais jovens.


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