Que guardo, com gosto, no meu blog,
neste domingo de Páscoa de 2019. Dois textos de opinião, de cunho diarístico. Tantos
são os casos da nossa lana caprina que se sucedem dia após dia, que difícil se
torna, quando se tem perspicácia, tendência investigadora e mordacidade q.b.
enveredar por outro meio que não seja o do conta-gotas, imprimindo
simultaneamente leveza e seriedade nos seus comentários críticos. Talvez VPV
seja mais contundente e sem meias medidas, AG
mais sarcástico e destrutivo. Ambos lutando, naturalmente, por um país mais
sério. Mas são tantos os nossos disparates, a começar pelo exibicionismo sem
emenda do PR que só nos resta ir descambando, creio que com o prazer dos
promotores das greves. Apesar de tudo, nem sempre concordo com as tiradas de
VPV, e uma delas é a notícia de 14 de Abril, considerando uma má notícia a da unidade espanhola. Não acho que seja uma má notícia, mas uma nobre notícia. Só
li alguns comentadores – (chuchadores) de A. G., entre as quase duas centenas, mas desisti.
OPINIÃO Diário
Quando é que o senhor Presidente da
República se acalma?
VASCO PULIDO VALENTE
PÚBLICO, 20 de Abril de 2019, 6:35
14 de Abril: Más notícias de Espanha. Parece que o PSOE está a
fazer uma campanha com a ideia central do “aprofundamento” do socialismo. E parece que
o PP e o Vox se apresentam como defensores da unidade de Espanha. É
o retrato em redondo, como compete a uma sociedade igualitária e democrática,
do alinhamento da guerra civil em 1936.
15 de Abril: Para mim, Notre-Dame estará sempre associada a duas
cenas. Primeira, a preto e branco, à missa que o Governo de Reynaud, com
Pétain e de Gaulle, mandou rezar a Santa Genoveva e a Joana d’Arc quando os
alemães estavam a 100 quilómetros de Paris. Na segunda, de 1945, sem
imagem, de Gaulle avança imperturbável pela nave enquanto um grupo de
colaboracionistas dispara contra ele do alto das galerias. Reparo agora que tudo isto é uma boa metáfora da
morte e ressurreição.
16 de Abril: O Estado e quarenta anos de democracia educaram os
portugueses. A esta educação geral (9.º ou 12.º ano) a vida acrescentou uma
especialização. Por isso, sucede que aparecem às vezes 800 motoristas de matérias perigosas que ganham 630
euros de salário base e que podem, se fizerem greve, paralisar o país. O que é muito bem feito para o país.
17 de Abril: A dra. Manuela Ferreira Leite, antiga presidente do
PSD e expoente, com Rui Rio, do centro-esquerda salazarista, descobriu uma
conspiração na greve dos motoristas de matérias perigosas. Para ela, “nada é
inocente” naquele sindicato. É preciso que se investigue as suas origens e o
seu financiamento. A dra. Manuela vê por detrás de enganosas aparências uma
conspiração de extrema-direita. Não dizem agora as “populações” que as
greves deviam ser proibidas? Se não tivesse assistido às cenas da Assembleia da
República e às considerações do sr. Pedro Duarte na televisão, não acreditava.
Assim acredito outra vez na Bruxa da Montanha. O que não quer dizer que a falta de um plano de
contingência para uma situação tão séria não me deixe estupefacto. O Prof.
Adriano Moreira tem razão: o Estado português é “exíguo”. “Exíguo” e fraco. Tão
fraco que 800 motoristas de matérias perigosas, no justo exercício de um
direito constitucional, o conseguem pôr em risco.
18 de Abril O Prof. Marcelo Rebelo de Sousa não
resiste a meter o nariz em tudo o que puxa à corda sentimental, mas foge a qualquer
questão de substância. Lavou as mãos dos motoristas com duas frases, porque
eram uma “matéria perigosa”. Já o desastre da Madeira serviu para ele se
expandir em toda a sua magnificência: fez declarações, mandou telegramas,
ofereceu o seu Falcon, até se ofereceu a ele próprio para ir solenemente
presenciar a catástrofe e depois, num gesto dramático, desistiu a favor dos
feridos. Quando é que o senhor Presidente da República se acalma?
Por
causa da greve dos motoristas de matérias perigosas, floresceram por aí vários
teóricos do sindicalismo. Pena. Esse foi o primeiro grande erro de Marx:
tratar a classe operária como ela era em 1840 e como Engels a descreveu em “As
condições da classe operária em Inglaterra”, indiferenciada e una. Mas logo do
princípio, ainda em vida de Marx, já os ferroviários demonstravam a falácia
dessa visão. A economia crescia e, crescendo, aumentava em complexidade e, pela
mesma medida, as classes trabalhadoras aumentavam em heterogeneidade. E alguns
grupos de trabalhadores em posições estratégicas ficavam com um poder especial
sobre a sociedade. Os governos das grandes potências foram forçados a perceber
isto, durante a I e a II Guerra. Tiveram de negociar humildemente com os seus
inferiores, para ter artilharia e aviões.
Os
motoristas de matérias perigosas são apenas os últimos em Portugal a demonstrar
a ficção de uma classe operária homogénea, agindo em conjunto e destinada a
governar o mundo.
Colunista
COMENTÁRIOS
ana cristina, Lisboa et Orbi: alguém que pensa e quando escreve o que pensa,
provoca calafrios em boa parte dos seus leitores. boa, Vasco. o meu eterno
agradecimento por provocar calafrios no meio desta onda de conversa para boi
dormir.
Colete Amarelo: Temos muita
sorte em ler os artigos do VPV . São textos com signficação em diferentes
níveis que merecem ser lidos e relidos. Obrigado.
OldVic, Música do dia:
"Bandoleiro" (Ney Matogrosso), Liberdade para a Venezuela! 09:38:
“O que não quer dizer que a falta de um plano de contingência
para uma situação tão séria não me deixe estupefacto. O Prof. Adriano Moreira
tem razão: o Estado português é ‘exíguo’. ‘Exíguo’ e fraco. Tão fraco que 800
motoristas de matérias perigosas, no justo exercício de um direito
constitucional, o conseguem pôr em risco”: exíguo em termos de competência, já
que em termos de custo é cada vez mais vasto (carga fiscal recorde).
cisteina, Porto 10:21: Repetitivo ad
nauseam, este comentador abusivo da boa-fé dos leitores, chega-nos o que VPV
escreveu, dispensa acólitos.
II - COMBUSTÍVEL:
Crónica de uma greve (literalmente)
anunciada /premium
A greve mostrou por uns dias o que é
habitar a Venezuela. O nosso “espaço público”, da saloiice do poder à
subserviência dos “media”, mostra-o constantemente. E é ridículo perder tempo a
lamentá-lo.
Domingo. Tal como o governo, passei o fim de semana – e
as semanas anteriores – a ignorar o anúncio de greve de 600 ou 800 camionistas
de “materiais perigosos”. Tal como o governo, julguei que os materiais
perigosos se referiam a adeptos da bola, devoluções do último cd de Fernando
Tordo ou jihadistas refugiados. Tal como ao governo, não me pareceram
produtos cuja falta eu lamentasse excessivamente.
Segunda-feira. Aumentaram de frequência as notícias sobre a
greve, que afinal se prende com a distribuição de combustíveis. O governo
continuou indiferente. Eu também. O governo porque faz da inépcia um modo de
vida. Eu porque, sempre que assino meia dúzia de linhas em prol do automóvel,
apanho com a indignação dos fervorosos adeptos das ciclovias, dos veículos
eléctricos e sobretudo dos transportes públicos, a acreditar nas televisões o
meio favorito de ministros e autarcas – além disso, gozam de descontos e,
garantem-me, são imensamente práticos.
Terça-feira. Tomei café numa bomba de gasolina em pleno
funcionamento e nem me ocorreu abastecer. A que propósito? As recorrentes
reacções ao meu apreço por carros criaram-me a impressão de que apenas uma
ínfima minoria dos meus compatriotas apreciaria deslocar-se dessa anacrónica
maneira. Seriam, à minha imagem e semelhança, criaturas poluentes e
ultrapassadas, paradoxalmente por bicicletas partilhadas, calhambeques híbridos
e “metros” de superfície que se movem a 20 km/h. Por isto ou por aquilo,
convenci-me de que estas eram as formas de locomoção da população em peso,
consciente dos “desafios da mobilidade” e convertida à necessidade ambiental de
demorar hora e meia entre Matosinhos e Campanhã.
Quarta-feira de
manhã. Acordei com a revelação de que os meus
compatriotas são, com todo o respeito, uns hipócritas sem remédio. Tanta
lengalenga alusiva aos horrores dos combustíveis fósseis e, à primeira (ou
segunda, ou, vá lá, à décima sétima) suspeita de que os combustíveis fósseis
podem escassear, lançam-se aos trambolhões nos respectivos postos, a fim de
atestar o carrinho, que bom jeitinho lhes dá. Hipócritas e ponderados, já que,
para evitar cortes no fornecimento de um produto, não há melhor do que correr
aos magotes a adquiri-lo. Tal como o governo, aqui comecei a preocupar-me. O
governo, que sempre jurou não ter nada a ver com o problema, passou a tentar
resolver o problema, sinal claro de que o problema não se resolveria tão cedo e
que, com sorte, arriscava agravar-se. Nos intervalos das “selfies” em velórios
e baptizados, o prof. Marcelo disse umas frases no seu estilo próprio, mas,
francamente, não prestei atenção e, à excepção do comentador Marques Mendes,
duvido que haja no planeta criatura que preste.
Quarta-feira de
tarde. Após
longa hesitação e moderada preguiça, parti finalmente em busca de gasóleo,
mistela que, em Janeiro, o ministro do Ambiente previu abolida em “quatro ou
cinco anos”. Aparentemente, queria dizer meses: nos raros postos
abertos, a venda limitava-se à gasolina, além de tabaco e vitualhas. Esgotadas
as lojas óbvias, atirei-me em busca das obscuras. Com a ajuda do GPS e de
indomável coragem, descobri bombas em lugares ermos. Infelizmente, outros
descobriram-nas primeiro. A saga ameaçava terminar sem glória quando, em
território ausente dos mapas, encontrei um estabelecimento com gasóleo, ou uma
promessa do dito. Embora estivesse “no casco” (cito), o funcionário sugeriu que
eu esperasse na fila. A fila era de dois carros. Esperei um instante, ou o
tempo suficiente para que um sujeito se plantasse junto à minha porta aos
gritos: “Não vai meter gasoil! Não vai meter gasoil!” Baixei o vidro e respondi
com serenidade: “Hã?” O sujeito repetia: “Não vai meter gasoil!” Olhei em redor
à cata de um tradutor e percebi que a fila não era de dois carros: era de uns
trinta, e que o condutor de um deles ficara irado face ao desplante com que os
ignorei. Presumi que o “casco” e a minha paciência não resistiriam a tamanha
procura e arranquei de regresso a casa. Principiei a odisseia com autonomia
para 60 km. À chegada, mal dava para 20.
Quarta-feira à
noite. Por
motivos óbvios, permaneci no remanso do lar, a aprender os meandros da
situação. Aprendi, por exemplo, que, avesso a interferir em questões do foro
privado, o governo interferira para decretar racionamento e “serviços mínimos”.
Aprendi que os mesmos se restringiam a Lisboa e ao Porto, na acertada
suposição de que o interior se fornece em Espanha, aliás o que só os
maluquinhos não fazem há anos. Aprendi que esta greve em particular é um
acto vil, na medida em que não desfruta do aval da CGTP e contesta o progresso
com que a esquerda nos abençoou. Aprendi que a autarquia lisboeta
disponibilizou bicicletas ao povo, sob o divertido argumento de que “estas têm
o depósito cheio”. Aprendi que é infinita a resignação do povo perante a
prepotência. Aprendi, com a dona Catarina do BE, que a culpa disto é da
“troika”. Aprendi que, em simultâneo aos cérebros que se torce a ver se dão
mais, há cérebros que já nascem torcidos. E aprendi que o prof. Marcelo voltou a
emitir frases, ainda que com ele a aprendizagem seja ilusória.
Quinta-feira. De
manhã, a greve acabou, graças a um governo
que não podia fazer fosse o que fosse para que a greve acabasse ou para
prevenir os seus efeitos. À hora de almoço, naturalmente, as bombas permaneciam
vazias. De tarde havia “gasoil”, a euro e meio o litro. Ajoelhei e agradeci
ao dr. Costa.
Sexta-feira. O “spin”, designação “fina” de propaganda,
arrancou em grande. Avençados disfarçados de opinadores condenaram a greve.
Sociólogos disfarçados de avençados condenaram o “aproveitamento político” da
greve. E o DN, uma filial disfarçada de zombie, chamou à “capa” (que não tem),
um artigo (que não se lê), assinado por uma “jornalista” (que não se enxerga).
A manchete? “O advogado de Maserati que dirige os camionistas”. Por
esquecimento, não mencionaram o Fiat Punto do advogado que dirige o DN.
Epílogo. E é
assim. A greve mostrou por uns dias o que é habitar a Venezuela. O nosso
“espaço público”, da saloiice do poder à subserviência dos “media”, mostra-o
constantemente. É ridículo perder tempo a lamentar o buraco a que
chegamos se podemos aproveitar para temer o buraco a que haveremos de chegar.
De carro ou bicicleta, não vai demorar muito.
Notas de rodapé
1. Na
Madeira, o acidente com um autocarro levou o vice-presidente da região a
esclarecer, com certo enfado, que o turismo local não seria afectado por
aqueles 29 alemães mortos. Claro que não: a população alemã é de largos
milhões, pelo que ainda sobraram muitos. E então ingleses, americanos,
espanhóis e franceses sobraram todos. Enquanto isso, o presidente
madeirense, que não emitiu um pio a propósito, foi dado em parte incerta num
vago “estrangeiro”, e depois no Dubai. Fez bem. Por um lado, evitou dizer
disparates. Por outro, apesar de lhe imitar a estratégia, não se deixou
fotografar em calções como o dr. Costa durante os incêndios. Um estadista
que ninguém vê: por mim, trocava já 300 estarolas do “continente” pelo dr.
Albuquerque. Quanto aos madeirenses, esses ingratos, suspeito que em Setembro
trocarão o dr. Albuquerque por quem calhar.
2.
Não sendo sequer remotamente cristão, tive pena do que aconteceu a
Notre-Dame. E tive ainda mais pena de que os escombros não tivessem desabado em
cima dos que, de uma maneira ou de outra, celebraram a tragédia.
3. Greta
Thunberg, a criança sueca que inspirou milhares de crianças a marchar contra o
capitalismo de telemóvel em punho, apelou no Parlamento Europeu a que “salvem
[quem?] o mundo como salvaram [salvaram?] Notre-Dame”. Presumo que as idades
mentais da audiência e da oradora sejam equivalentes. Já os jornalistas que
chamam “activista” a Greta são bastante mais jovens.
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