Em zunzuns de sobressalto, que os tempo foram
adensando. São do blog “A BIGORNA” de David Martelo, que se apoia em leituras atestando o seu rigor. Agradeço
a João Sena por mo ter enviado. Outras histórias contém que gostaria de
transcrever, não fossem tão longas, como a da Guerra do Peloponeso, relatada por Tucídides, e a da Campanha
da Sicília por Garibaldi.
O
MANDATO PRESIDENCIAL DE CRAVEIRO LOPES 1951-1958
Os
anos do mandato presidencial de Craveiro Lopes correspondem a uma nítida
separação de águas entre os apoiantes do regime. Como expoente máximo da
corrente mais liberal destaca-se o nome de Marcello Caetano. Com o decorrer do tempo, cria-se a ideia de que o
próprio Craveiro Lopes alinha com este grupo, o qual preconiza uma progressiva
reforma do Estado Novo. A esta ânsia de evolução opõem-se os mais fiéis
servidores do ditador, com Santos Costa na primeira linha. Com esta
tendência estão também os monárquicos mais conservadores, liderados por Mário
de Figueiredo e Costa Leite. A imagem de seriedade de Craveiro Lopes começou
por impressionar favoravelmente a generalidade dos notáveis do Estado Novo, a
começar pelo próprio Salazar. A forma como o novo Presidente representara o
Estado Português, em diversas visitas ao estrangeiro, havia merecido elogiosas
referências na imprensa dos vários países visitados. No entanto, a pouco e
pouco, a imagem de Craveiro Lopes começou a ser corroída pelos ultras do
regime. Segundo conta Marcello Caetano, nos princípios de 1957... ...já
era muito forte a oposição a Craveiro Lopes nos meios políticos do regime
português. Eu notara que Salazar andava impressionado com isso. Cercavam-no
muitas pessoas afectas ao partido monárquico, entre elas várias senhoras.
Salazar nessa época cultivava mais do que nunca as amizades femininas. Tinha-as
de todas as idades, recebia as suas visitas, e nas horas de descanso, à noite,
falava longamente com as amigas pelo telefone. Ocupava-se, com requintes de
atenção, dos problemas delas, acompanhava a sua vida familiar, ouvia-lhes
contar as histórias da sociedade e as anedotas mais recentes, dava-lhes
conselhos e escutava-lhes as opiniões. E as senhoras e meninas da sociedade não
gostavam de Craveiro Lopes...1 No
tocante a Santos Costa, Craveiro Lopes não tardou a manifestar-lhe a sua clara
antipatia, chegando mesmo a sugerir a Salazar a sua substituição. Ainda segundo Caetano, Santos Costa pagava-lhe na
mesma moeda. Ignorava-o sempre que podia nas cerimónias militares, não o
convidando a assistir, e nas conversas em que era pródigo sem se preocupar com
o que dizia crivava o Presidente de sarcasmos.2 No meio de uma aparente tranquilidade, agudiza-se progressivamente
a questão dos territórios do Estado da Índia. Apesar de prosseguir a
modernização do Exército, com vista à integração de unidades na estrutura
militar da OTAN, o ambiente em torno do ministro Abranches Pinto não é o
mais favorável. Em Abril de 1954, aconselhado por Santos Costa, Salazar
«despacha» Abranches Pinto para embaixador em Pretória – aplicando, assim, a
astuciosa técnica do «pontapé pela escada acima». Para a vaga deixada pelo
novo embaixador, era nomeado, interinamente e em acumulação de funções, o
próprio Santos Costa. A «interinidade», no entanto, prolongar-se-ia de 12 de
Abril de 1954 a 14 de Agosto de 1958, período durante o qual o fiel servidor de
Salazar acumularia as pastas da Defesa e do Exército. A 20 de Julho de
1954, a União Indiana dá mais um sinal de querer resolver a questão dos
territórios portugueses através da coacção. Nesse dia, o governador de
Damão é impedido, pela primeira vez, de se deslocar aos enclaves de Dadrá e
Nagar-Aveli. Além disso, tropas indianas tomam posições ostensivamente em torno
dos enclaves e acabam por consumar a ocupação dos mesmos. (1 CAETANO, Marcello, Minhas memórias de Salazar, pp.
524-525. 2 Ibidem, p. 528.) 2 Com a passagem dos dias, aumenta a tensão junto das
fronteiras entre os territórios portugueses e a União Indiana. A 5 de Agosto, o ministro de Estado do governo
britânico, Selwyn Lloyd, informa o governo português, através do nosso
embaixador em Londres, de que o «empreendimento de operações militares pela
Inglaterra estava fora de questão».3 Se dúvidas houvesse sobre a disponibilidade da
Grã-Bretanha para se bater pelas colónias portuguesas, essas dúvidas estavam
desfeitas. Principiava a desenhar-se o cenário de isolamento internacional no
qual iria desenrolar-se a derradeira fase do Império. A admissão de Portugal na
Organização das Nações Unidas (ONU), a 14 de Dezembro de 1955, vai possibilitar
ao nosso país uma manobra diplomática que constituirá, durante largo tempo, um
travão às aspirações da União Indiana: perante o Tribunal Internacional de
Justiça, na Haia, é apresentada uma petição do governo português, na qual se
pede a confirmação do direito de acesso aos enclaves ocupados pelas tropas de
Nova-Deli. Prevendo-se um demorado processo jurídico, Portugal coloca a União
Indiana na incómoda posição de ter de esperar pelo veredicto de Haia, ou,
cometer grave violação do direito internacional. O expediente do governo
português permitirá, efectivamente, um ganho de tempo de cerca de seis anos.
Entretanto, o ingresso de Portugal na ONU permite que esta organização
interrogue o governo português acerca da existência ou não de territórios não
autónomos sob administração portuguesa, conforme descritos no artigo 73º da
Carta das Nações Unidas. A resposta de Lisboa é claramente negativa. Com esta
posição – que haveria de ser repetida, sem cessar, nos dezoito anos
subsequentes –, materializavam-se as condições de direito para o isolamento
político de Portugal, e, inevitavelmente, para a eclosão de conflitos armados
contra a soberania portuguesa. Em
Janeiro de 1956, o então Subsecretário do Exército, Sá Viana Rebelo, é
designado para Governador-Geral de Angola. Para o seu lugar no governo é
nomeado, então, o coronel Almeida Fernandes. É através do novo Subsecretário
que entra no ministério do Exército uma nova sensibilidade no tocante aos
problemas de defesa do Ultramar. De facto, estava o Exército de tal modo
fascinado pela integração na estrutura militar da OTAN, que tudo o resto era
perfeitamente secundário. Havia, efectivamente, planos de transferência de
tropas entre as parcelas portuguesas no mundo, mas apenas de África, para
reforço do Teatro de Operações europeu. A evolução da situação internacional
impunha, pelo contrário, que se previsse o reforço dos territórios ultramarinos
com forças expedicionárias metropolitanas. Almeida Fernandes, sendo
Subsecretário de um ministro do Exército (Santos Costa) que também era ministro
da Defesa, dispôs de uma liberdade de acção de que, provavelmente, não disporia
no caso de o ministro não acumular duas pastas. Essa circunstância favoreceu a
sua própria iniciativa, daí resultando a elaboração de cuidadosos estudos
direccionados para a implementação de reformas que se tornavam cada vez mais
urgentes. Entretanto, a estrela de Craveiro Lopes continuava a empalidecer
nos meios mais duros do regime. Reportando-se ao início de 1956, Franco
Nogueira dá-nos, desta questão, um significativo apontamento: Salazar mantém as
suas visitas dominicais, pela manhã, a Craveiro Lopes. Admira o ambiente
doméstico do Presidente: respira dignidade, honestidade, devoção à coisa
pública: e Berta Craveiro Lopes é uma excelsa mulher, pronta a todos os
sacrifícios em nome do dever. No tratamento dos negócios do Estado, o
Presidente demonstra a maior boa vontade e interesse, desejo de acertar,
cuidado pelo pormenor, escravidão perante as exigências do cargo; mas é cada
vez maior a sua rigidez, o seu formalismo protocolar; e as suas limitações
naturais de inteligência e cultura cada vez mais se chocam com as subtilezas de
Salazar.. (4 3 NOGUEIRA,
Franco, Salazar, Vol. IV, p. 355. 4 Ibidem, p. 410). 3 A não-reeleição de Craveiro Lopes No plano estritamente político, seria uma questão
aparentemente sem nada de conspirativo que iria determinar a não-reeleição de
Craveiro Lopes. Preocupado com o estado de saúde de Salazar e com as constantes
manifestações deste no sentido de abandonar o governo, o Presidente aproveita
uma visita de Mário de Figueiredo ao palácio de Belém para abordar a questão da
sucessão do Presidente do Conselho. Segundo o relato que Craveiro Lopes fez
posteriormente a Marcello Caetano, e que este registou no seu diário, a
conversa teria decorrido nos seguintes termos: Perguntei-lhe como achava a
saúde do Dr. Salazar. Ele respondeu que achava bem. Acrescentei então que, de
facto, naquela altura também me parecia em boa forma, mas que durante bastante
tempo andara abatido, a queixar-se repetidamente, ora do coração, ora do
fígado, ora de dores de cabeça, manifestando a cada passo a intenção e o desejo
de se retirar do Governo. Dizia-lhe que não pensasse nisso, mas a repetição
fazia-me temer a eventualidade de, um dia, o Dr. Salazar me aparecer a
concretizar esse desejo em termos tais que me fosse impossível dizer que não.
Na verdade, com que autoridade se poderia impedir um homem como o Dr. Salazar
de se retirar quando a doença e a fadiga lhe impusessem repouso? Seria uma
crueldade dizer-lhe que não, obrigando-o a permanecer contra sua vontade num
posto de sacrifício. Nesta altura notei que o Mário de Figueiredo começava a
corar como se uma grande emoção o afligisse. Mas continuei. O Chefe do Estado
deve estar preparado para todas as hipóteses, mesmo as piores. Tenho pensado,
por isso, nessa hipótese da saída do Dr. Salazar da Presidência do Conselho, em
vida dele e não por morte, como dantes me habituara a considerar. E admito que
essa saída, em pleno prestígio, facilitaria talvez a evolução dos
acontecimentos na medida em que permitisse ser ele próprio a apoiar o sucessor
escolhido com o seu acordo. Aqui o Mário de Figueiredo interrompeu-me
abruptamente, num estado de grande excitação, para dizer que a saída de Salazar
da Presidência do Conselho seria o fim da sua influência e, em breve, o fim de
tudo quanto ele edificara e da evolução que ele projectara. Ninguém mais lhe
daria importância! Repliquei que isso não seria assim. O Dr. Salazar, onde quer
que estivesse, continuaria a ser o chefe político, como tal sempre consultado e
sempre ouvido. A sua influência manter-se-ia enorme. E quanto à sua saída ser o
fim de tudo, era justamente o que me parecia devermos evitar. Felizmente já
dispúnhamos de pessoas capazes de lhe suceder... Mário de Figueiredo, sempre
excitado, teve então esta frase: – No dia em que, por qualquer razão, Salazar
deixar o Governo, há uma única solução a adoptar: – restituir o Poder ao
Exército. Aqui está o que foi, nas suas linhas gerais, a conversa a que não dei
importância de maior. Só, quando recebi o seu aviso tornei a pensar nela e na
frase final, reveladora do pendor do Dr. Mário de Figueiredo para a solução Santos
Costa. Soube a seguir que o Mário se reunira com este num jantar para lhe
contar aquilo em que via um acto conspiratório da minha parte. E depois desse
jantar, o Ministro da Defesa resolveu convocar a reunião dos Altos Comandos em
cujo decurso pôs a questão em termos velados mas que, assim mesmo, tomei como
verdadeira injúria ao Chefe do Estado. Logo que soube fiquei indignado, como se
calcula. E no primeiro domingo que se seguiu, ao receber o Dr. Salazar,
referi-me ao facto, perguntando se a ofensa feita à minha honra podia ficar
impune. O Chefe do Governo procurou acalmar-me e diminuir a importância do
caso, mas nunca me conformei com a sua inacção neste assunto...5 (5
CAETANO, Marcello, Minhas memórias de Salazar, pp. 538-539.) 4 Esta versão da conversa seria, posteriormente,
confirmada pelo relato que o próprio Salazar fez a Marcello Caetano, o qual
concluía do seguinte modo: Convivi com o general Craveiro Lopes durante sete
anos, conversando com ele todas as semanas. Até se dar essa intrigalhada falávamos
muito à vontade e perguntava-me amiúde informações do trabalho dos Ministros,
interessando-se pelo que faziam, se estava contente com eles, etc.. A partir
de Agosto de 57 passou a ser cauteloso, evitando certos assuntos e
prevenindo-me que procedia assim por ser forçado a vigiar mais aquilo que dizia.
Mas creio que o conheço bem. Não tem inteligência suficiente para me iludir
mantendo-se constantemente dentro de uma construção habilidosa que não
correspondesse à verdade dos seus pensamentos e sentimentos. Para que me
mantivesse todo esse tempo enganado era preciso que fosse um génio de
dissimulação...» – Um génio de estupidez, também» replicou Caetano. «Porque
depois de conseguir iludi-lo a si tão perfeitamente, ia escolher para se
desmascarar um dos maiores amigos que o senhor tem e amigo do maior inimigo
[Santos Costa] dele próprio. Tudo é tão extraordinário que eu não percebo nada
– ou temo perceber demais...» – É uma história absurda; tem razão», diria
Salazar. «Nunca acreditei no que para aí puseram a correr. Mas quem procedeu
pessimamente, e eu já lho disse, foi o Mário. Seja como for, criou-se um
ambiente terrível ao Presidente Craveiro Lopes...6 Santos
Costa, entretanto, não se coíbe de explorar o incidente da conversa entre
Craveiro Lopes e Mário de Figueiredo, levando o assunto, inclusivamente, a uma
reunião de Altos Comandos. O tratamento a que a questão foi sujeita nessa
reunião acabaria por chegar aos ouvidos do Presidente, o qual, em carta para
Salazar, datada de 4 de Setembro de 1957, se lamentava: Em seguimento da nossa
conversa de Domingo, venho confirmar o que disse a V. Ex.ª sobre o que se
passou na reunião de Altos Comandos, realizada na tarde de 20 do mês findo.
Tenho como certo que o Ministro da Defesa afirmou que se tornava necessário
tomar medidas no sentido de obstar a que o Presidente do Conselho fosse
compelido a deixar o Governo. [...] Conclui-se que o Ministro da Defesa,
procedendo contrariamente às instruções que V. Ex.ª lhe havia dado, agravou o
Chefe do Estado colocando-o, perante os oficiais generais, e até dos
Comandantes das Unidades, que tomaram conhecimento da sua descabida afirmação,
em situação que não prestigia a função que exerce e atinge a sua dignidade.7 Apesar de todos os esclarecimentos, Craveiro Lopes
não logrou obter de Salazar a demissão de Santos Costa. Possivelmente seguindo
a sua máxima de que «em política, o que parece, é», Salazar ia-se preparando
para a hipótese da não-recandidatura do Presidente. David Martelo – 1999 ( 6- Ibidem, p.
540. 7-Eleições presidenciais 1951 e
correspondência entre Oliveira Salazar e Craveiro Lopes, p. 189.
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