terça-feira, 30 de abril de 2019

Copains



Sobre estas lições de mestre de AB só nos cabe ler e meditar, tão perfeitamente delineadas se apresentam. Parece que no nosso país há pano para mangas para estas sínteses analíticas e é por isso que tão bons retratistas têm surgido, no repisar monocórdico e lúcido da nossa inconsciência nacional, de subserviências, trafulhices e amiguismos. AB não pretende satirizar mas, com seriedade, todo ele se rebela numa análise feroz, a pretender correcção. Quem dera que aprendêssemos!
CRÓNICA: Uma lei absurda
Parece então estarmos entendidos: a direita e o PSD serão especialistas na porta giratória, enquanto o PS e a esquerda são peritos em nepotismo. Só falta saber quem é mais qualificado em roubo.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 28 de Abril de 2019,
A imaginação prodigiosa da raça humana não tem limites. Nas áreas ilegais, semilegais, quase legais e paralelas parece literatura de ficção. Infelizmente, não pertence só ao reino da fantasia. Num domínio em particular, no das ligações entre público e privado, ou entre política e negócios, os expedientes conhecidos são de uma variedade fascinante. Admita-se que há três grandes grupos de situações.
Primeiro: roubar, exigir luvas e comissões, arranjar uns primos que recebem e uns amigos que transferem, ter contas offshore e pagar por serviços jamais prestados. É um sem fim de dispositivos. Chama-se a isto corrupção e venalidade. É próprio dos gangsters.
Segundo: colocar os políticos em cargos importantes nas empresas públicas, nos órgãos reguladores, nas empresas privadas que fazem negócios com o Governo e nos grupos que beneficiaram do Estado. Chama-se a isto porta giratória. É a conhecida promiscuidade.
Terceiro: colocar a família em cargos relevantes nos órgãos políticos, nas direcções da Administração Pública e nas públicas, assim como empregar familiares e dependentes ou trocar de parentes (uma espécie de “swap Job”, “eu emprego os teus, tu empregas os meus”). Chama-se a isto nepotismo. É a famosa República dos Amigos.
Para a primeira categoria, a solução é conhecida: lei geral e tribunais. Sabe-se que há depois advogados, meios dilatórios, garantias e a ineficácia da justiça, mas o método é clássico. Para a segunda, começa a haver dispositivos legais que criam períodos de nojo para refazer, não uma virgindade, mas pelo menos uma virtude. Já se tem alguma experiência em vários países. Os resultados são duvidosos, há sempre maneira de tornear as proibições. Para a terceira, não se vê facilmente a possibilidade de aprovar regimes legais. Sobram os códigos éticos e deontológicos, a censura moral e pública, a informação livre, o bom jornalismo e a declaração de interesses.
O recente caso das famílias teve larga repercussão. O Governo e o Partido Socialista foram justamente acusados de exagero e de nepotismo flagrante na Administração Pública e até nos órgãos de soberania. O motivo pelo qual se revelaram estes factos deve ser a proximidade das campanhas eleitorais. Mas a verdade é que não se trata só de “casos”: os factos são verdadeiros e as situações aberrantes. O PS ultrapassou os limites da contenção e da razoabilidade.
O Governo reagiu mal. Mostrou-se chocado. É habitual. Mas António Costa, em declaração às televisões, prestou um serviço ao país: garantiu que a direita era mais culpada, pois entregava-se à promiscuidade entre cargos políticos e empresas económicas. Ao afirmar que “outros” faziam pior, utilizando a “porta giratória”, reconheceu que o seu Governo fazia aquilo de que era acusado. Parece então estarmos entendidos: a direita e o PSD serão especialistas na porta giratória, enquanto o PS e a esquerda são peritos em nepotismo. Só falta saber quem é mais qualificado em roubo.
O Governo e o PS deixaram-se apanhar. Negaram qualquer culpa, mas já se dispuseram a elaborar uma lei sobre o assunto. Alguns deputados da oposição aceitaram a ideia. Com surpresa, o Presidente da República terá dito que é a favor. Parece assim que vamos ter uma lei sobre nepotismo e graus de parentesco admitidos na Administração Pública, nos governos e respectivos gabinetes!
Que absurdo será este? Uma lei que proíba nomeações directas ou indirectas de familiares, pelos próprios e pelos correligionários? Até que grau? Quanto tempo? Em que área? No mesmo órgão colegial, no mesmo serviço? Quem é visado nessa hipotética lei? Quem nomeia, quem pede para nomear ou quem é nomeado? Basta esta incógnita para afastar qualquer hipótese de lei justa. Mas há mais. Qual a nomeação visada? Governo, Administração, órgãos de soberania, candidatos dos partidos, autarquias, empresas públicas, embaixadores, directores de hospitais e escolas, gabinetes, assessores, consultores, conselheiros, secretários e adjuntos? Qual o grau de parentesco admitido ou proibido? Maridos, pais, filhos, netos, irmãos, genros, sobrinhos, cunhados, primos, cônjuges em união de facto e namorados, em todos os géneros, masculino, feminino e outros? E os primos: até que grau?
E se estivermos perante um carrossel: A nomeia B, que nomeia a mulher de C, que designa o marido de D, que contrata a mulher de A, que recruta E, que emprega D e o marido de B, que indigitou C, que tem como secretário o marido de E?
Esta hipótese de lei viola direitos fundamentais, é discriminatória e traduz uma ideia despótica da vida em colectivo. Acredita que uma lei evita o nepotismo e a cunha. Não é prática nem realista. Submete ao poder dos partidos e do Estado o que deve depender dos cidadãos, da moral aceite, dos códigos de ética formais ou informais, da decência da sociedade, da informação pública e da clareza dos procedimentos políticos.Esta lei é mais um destes produtos que proíbe comportamentos de tal maneira destemperada que cria os “contra venenos”, isto é, as maneiras ao alcance dos corruptos e dos “nepotes” para que possam prosseguir a sua vida sem serem incomodados e com a aparência de terem feito o que era necessário para assegurar a honestidade. O que se passou, por exemplo, com o estatuto dos advogados e deputados, é boa ilustração deste velho costume que consiste nesta verdade simples: os ratos legisladores são os que mais bem conhecem os buracos das leis que eles fizeram.Pode parecer inocente, mas a verdade é que os melhores mecanismos para tratar do nepotismo são conhecidos. A informação, a imprensa livre, o jornalismo competente e a isenção dos meios de comunicação. O debate público permanente. A opinião pública. O voto. Finalmente, a moral e os códigos de ética comuns e aceites.
Se os cidadãos não se importam com o nepotismo, se até agradecem desde que sejam eles os beneficiados, se fazem as vistas grossas às nomeações políticas, se entendem que quem ganha eleições tem o direito de empregar quem lhe apetecer, se aceitam que certos cargos exigem pessoas de confiança e que a máxima confiança se obtém com os graus de parentesco, então muito bem, vivamos numa sociedade de nepotismo e de famílias ocultas, de consanguinidade política e de dinastias familiares partidárias. Se é isso que os Portugueses querem, é isso que devem ter. Mas tudo leva a crer que não é isso que querem. E que talvez acabem por querer o contrário.
COMENTÁRIOS
Carlos Brígida, Alges 29.04.2019: Muito bom. Excelente. Do melhor que António Barreto já aqui publicou. Responder
P Galvao, Lisboa 29.04.2019: Também deveríamos ficar incomodados com o nepotismo existente no mercado laboral, onde os apelidos se repetem em áreas tão diversas como o jornalismo, a gestão de empresas, a banca, o comércio e a prestação de serviços. Como dizia um governante de outros tempos, o 25 de Abril mudou muita coisa por forma a garantir que nada mudava (para os donos disto tudo). Responder
OldVic, Música do dia: "La vida breve" (Emiliano Pardo Tristán) Liberdade para a Venezuela! 29.04.2019: Se os cidadãos não se importam com o nepotismo…..,. Se é isso que os Portugueses querem, é isso que devem ter. Mas tudo leva a crer que não é isso que querem. E que talvez acabem por querer o contrário”: gostaria imenso de poder concordar sem reservas com o tom esperançoso das suas 2 últimas frases. No entanto, o que a minha pequena experiência pessoal e a nossa história de séculos me diz é que o sistema político que temos é a “Só podemos ler e meditarnata” do nosso “leite”. “Se os cidadãos não se importam com o nepotismo, se até agradecem desde que sejam eles os beneficiados…”: acho que acaba de pôr o dedo na ferida.
Jose, 29.04.2019: Os cidadãos portugueses em geral usam o poder que alcançam no Estado ou fora dele em benefício próprio, amigos e familiares de confiança para aumentar e consolidar o poder alcançado. PS, PSD, CDS são quem ao longo de mais de 40 anos colocou, coloca e colocará correligionários, amigos e familiares no topo do poder das empresas e instituições privadas e públicas. Esses partidos perdem votos desde que há eleições, mas recolhem nas urnas mais de 80% dos votos válidos. Esse poder e o modo como é exercido está consonante com os desejos expressos pela generalidade dos portugueses. A excepção é óbvia. PCP, BE, PEV, PAN não têm dirigentes de topo na TAP, CGD, Santa Casa da Misericórdia, BPN, GALP, ERC, SNS, etc. Talvez estejam aí os portugueses em quem António Barreto vê mãos livres e limpas. Responder
OldVic, Música do dia: "La vida breve" (Emiliano Pardo Tristán) Liberdade para a Venezuela!29.04.2019 : O PC e satélites têm "provas dadas" no PREC e no sindicalismo "CGTP", já para não falar do apoio a regimes obscenos. Há muitas formas de poder e de favorecimento para além das que implicam cargos de governo e empresariais.
mpro, Ovar 28.04.2019 20:03: A imaginação prodigiosa de António Barreto não tem limites, ou então a falta de seriedade é monumental. A esquerda não é o PS. Por muito que custe a A.B., há milhões de pessoas representadas por partidos de esquerda na AR, que se sentem livres destes epítetos, coisa que mais uma vez A.B., não consegue. Responder
Helena Duarte, 28.04.2019: É por estes artigos que eu subscrevo o Público. Por favor continue. Obrigada. Responder
JORGE COSTA,: Terras do Norte... 28.04.2019 10:02: Excelente artigo que deveria receber a atenção de todos. Objectivo e que expõe a nu a actualidade deste nosso rectângulo à beira-mar plantado! Parabéns!!

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