Sobre estas lições de mestre de AB só nos cabe ler e meditar, tão perfeitamente
delineadas se apresentam. Parece que no nosso país há pano para mangas para
estas sínteses analíticas e é por isso que tão bons retratistas têm surgido, no
repisar monocórdico e lúcido da nossa inconsciência nacional, de
subserviências, trafulhices e amiguismos. AB não pretende satirizar mas, com seriedade, todo ele se
rebela numa análise feroz, a pretender correcção. Quem dera que aprendêssemos!
CRÓNICA: Uma lei absurda
Parece então estarmos entendidos: a
direita e o PSD serão especialistas na porta giratória, enquanto o PS e a
esquerda são peritos em nepotismo. Só falta saber quem é mais qualificado em
roubo.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 28 de Abril de 2019,
A
imaginação prodigiosa da raça humana não tem limites. Nas áreas ilegais,
semilegais, quase legais e paralelas parece literatura de ficção. Infelizmente,
não pertence só ao reino da fantasia. Num domínio em particular, no das
ligações entre público e privado, ou entre política e negócios, os expedientes
conhecidos são de uma variedade fascinante. Admita-se que há três grandes
grupos de situações.
Primeiro: roubar, exigir luvas e comissões, arranjar uns primos
que recebem e uns amigos que transferem, ter contas offshore e pagar
por serviços jamais prestados. É um sem fim de dispositivos. Chama-se a isto corrupção e venalidade.
É próprio dos gangsters.
Segundo: colocar os políticos em cargos
importantes nas empresas públicas, nos órgãos reguladores, nas empresas
privadas que fazem negócios com o Governo e nos grupos que beneficiaram do
Estado. Chama-se a isto porta
giratória. É a conhecida promiscuidade.
Terceiro: colocar a família em cargos relevantes nos órgãos
políticos, nas direcções da Administração Pública e nas públicas, assim como
empregar familiares e dependentes ou trocar de parentes (uma espécie de “swap
Job”, “eu emprego os teus, tu empregas os meus”). Chama-se a isto nepotismo. É a famosa República dos Amigos.
Para
a primeira categoria, a solução é conhecida: lei geral e tribunais.
Sabe-se que há depois advogados, meios dilatórios, garantias e a ineficácia
da justiça, mas o método é clássico. Para a segunda, começa a haver
dispositivos legais que criam períodos de nojo para refazer, não uma
virgindade, mas pelo menos uma virtude. Já se tem alguma experiência em
vários países. Os resultados são duvidosos, há sempre maneira de tornear as
proibições. Para a terceira, não se vê facilmente a possibilidade de
aprovar regimes legais. Sobram os códigos éticos e deontológicos, a censura
moral e pública, a informação livre, o bom jornalismo e a declaração de
interesses.
O recente caso das famílias teve larga
repercussão. O Governo e o Partido
Socialista foram justamente acusados de exagero e de nepotismo flagrante na
Administração Pública e até nos órgãos de soberania. O motivo pelo qual se
revelaram estes factos deve ser a proximidade das campanhas eleitorais. Mas a
verdade é que não se trata só de “casos”: os factos são verdadeiros e as
situações aberrantes. O PS ultrapassou os limites da contenção e da
razoabilidade.
O
Governo reagiu mal. Mostrou-se chocado. É habitual. Mas António Costa, em
declaração às televisões, prestou um serviço ao país: garantiu que a direita
era mais culpada, pois entregava-se à promiscuidade entre cargos políticos e
empresas económicas. Ao afirmar que “outros” faziam pior, utilizando a “porta
giratória”, reconheceu que o seu Governo fazia aquilo de que era acusado.
Parece então estarmos entendidos: a direita e o PSD serão especialistas na
porta giratória, enquanto o PS e a esquerda são peritos em nepotismo. Só falta
saber quem é mais qualificado em roubo.
O
Governo e o PS deixaram-se apanhar. Negaram qualquer culpa, mas já se
dispuseram a elaborar uma lei sobre o assunto.
Alguns deputados da oposição aceitaram a ideia. Com surpresa, o Presidente da
República terá dito que é a favor. Parece assim que vamos ter uma lei sobre
nepotismo e graus de parentesco admitidos na Administração Pública, nos
governos e respectivos gabinetes!
Que absurdo será este? Uma lei que
proíba nomeações directas ou indirectas de familiares, pelos próprios e pelos
correligionários? Até que grau? Quanto tempo? Em que área? No mesmo órgão
colegial, no mesmo serviço? Quem é visado nessa hipotética lei? Quem nomeia,
quem pede para nomear ou quem é nomeado? Basta esta incógnita para afastar
qualquer hipótese de lei justa.
Mas há mais. Qual a nomeação visada? Governo, Administração, órgãos de
soberania, candidatos dos partidos, autarquias, empresas públicas,
embaixadores, directores de hospitais e escolas, gabinetes, assessores,
consultores, conselheiros, secretários e adjuntos? Qual o grau de parentesco
admitido ou proibido? Maridos, pais, filhos, netos, irmãos, genros, sobrinhos,
cunhados, primos, cônjuges em união de facto e namorados, em todos os géneros,
masculino, feminino e outros? E os primos: até que grau?
E
se estivermos perante um carrossel: A nomeia B, que nomeia a mulher de C,
que designa o marido de D, que contrata a mulher de A, que recruta E, que
emprega D e o marido de B, que indigitou C, que tem como secretário o marido de
E?
Esta hipótese de lei viola direitos
fundamentais, é discriminatória e traduz uma ideia despótica da vida em
colectivo. Acredita que uma lei evita o nepotismo e a cunha. Não é prática nem
realista. Submete ao poder dos partidos e do Estado o que deve depender dos
cidadãos, da moral aceite, dos códigos de ética formais ou informais, da
decência da sociedade, da informação pública e da clareza dos procedimentos
políticos.Esta lei é
mais um destes produtos que proíbe comportamentos de tal maneira destemperada
que cria os “contra venenos”, isto é, as maneiras ao alcance dos corruptos e
dos “nepotes” para que possam prosseguir a sua vida sem serem incomodados e com
a aparência de terem feito o que era necessário para assegurar a honestidade.
O que se passou, por exemplo, com o estatuto dos advogados e deputados, é boa
ilustração deste velho costume que consiste nesta verdade simples: os ratos
legisladores são os que mais bem conhecem os buracos das leis que eles fizeram.Pode parecer inocente, mas a verdade é que os melhores
mecanismos para tratar do nepotismo são conhecidos. A informação, a
imprensa livre, o jornalismo competente e a isenção dos meios de comunicação. O
debate público permanente. A opinião pública. O voto. Finalmente, a moral e os
códigos de ética comuns e aceites.
Se os cidadãos não se importam com o
nepotismo, se até agradecem desde que sejam eles os beneficiados, se fazem as
vistas grossas às nomeações políticas, se entendem que quem ganha eleições tem
o direito de empregar quem lhe apetecer, se aceitam que certos cargos exigem
pessoas de confiança e que a máxima confiança se obtém com os graus de
parentesco, então muito bem, vivamos numa sociedade de nepotismo e de famílias
ocultas, de consanguinidade política e de dinastias familiares partidárias. Se
é isso que os Portugueses querem, é isso que devem ter. Mas tudo leva a crer
que não é isso que querem. E que talvez acabem por querer o contrário.
COMENTÁRIOS
Carlos Brígida, Alges 29.04.2019: Muito bom. Excelente. Do melhor que António Barreto já
aqui publicou. Responder
P Galvao, Lisboa 29.04.2019: Também deveríamos ficar incomodados com o nepotismo
existente no mercado laboral, onde os apelidos se repetem em áreas tão diversas
como o jornalismo, a gestão de empresas, a banca, o comércio e a prestação de
serviços. Como dizia um governante de outros tempos, o 25 de Abril mudou muita
coisa por forma a garantir que nada mudava (para os donos disto tudo). Responder
OldVic, Música do dia: "La vida
breve" (Emiliano Pardo Tristán) Liberdade para a
Venezuela! 29.04.2019: “Se os cidadãos
não se importam com o nepotismo…..,. Se é isso que os Portugueses querem, é
isso que devem ter. Mas tudo leva a crer que não é isso que querem. E que
talvez acabem por querer o contrário”:
gostaria imenso de poder concordar sem reservas com o tom esperançoso das suas
2 últimas frases. No entanto, o que a minha pequena experiência pessoal
e a nossa história de séculos me diz é que o sistema político que temos é a “Só
podemos ler e meditarnata” do nosso “leite”. “Se os cidadãos não se importam
com o nepotismo, se até agradecem desde que sejam eles os beneficiados…”: acho
que acaba de pôr o dedo na ferida.
Jose, 29.04.2019: Os cidadãos portugueses em geral usam o poder que
alcançam no Estado ou fora dele em benefício próprio, amigos e familiares de
confiança para aumentar e consolidar o poder alcançado. PS, PSD, CDS são quem
ao longo de mais de 40 anos colocou, coloca e colocará correligionários, amigos
e familiares no topo do poder das empresas e instituições privadas e públicas.
Esses partidos perdem votos desde que há eleições, mas recolhem nas urnas mais
de 80% dos votos válidos. Esse poder e o modo como é exercido está consonante
com os desejos expressos pela generalidade dos portugueses. A excepção é óbvia.
PCP, BE, PEV, PAN não têm dirigentes de topo na TAP, CGD, Santa Casa da
Misericórdia, BPN, GALP, ERC, SNS, etc. Talvez estejam aí os portugueses em quem
António Barreto vê mãos livres e limpas. Responder
OldVic, Música do dia: "La vida
breve" (Emiliano Pardo Tristán) Liberdade para a Venezuela!29.04.2019 : O PC e satélites têm "provas dadas" no
PREC e no sindicalismo "CGTP", já para não falar do apoio a regimes
obscenos. Há muitas formas de poder e de favorecimento para além das que
implicam cargos de governo e empresariais.
mpro, Ovar 28.04.2019 20:03: A imaginação prodigiosa de António Barreto não tem
limites, ou então a falta de seriedade é monumental. A esquerda não é o PS. Por
muito que custe a A.B., há milhões de pessoas representadas por partidos de
esquerda na AR, que se sentem livres destes epítetos, coisa que mais uma vez
A.B., não consegue. Responder
Helena Duarte, 28.04.2019: É por estes artigos que eu subscrevo o Público. Por
favor continue. Obrigada. Responder
JORGE COSTA,: Terras do
Norte... 28.04.2019 10:02: Excelente
artigo que deveria receber a atenção de todos. Objectivo e que expõe a nu a
actualidade deste nosso rectângulo à beira-mar plantado! Parabéns!!
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