Há alturas na vida em que sentimos
necessidade de justificarmos os nossos actos, em espécie de “Peregrinação
Interior” no “livre alvedrio”, isento
forro, poderoso” que confere ao Homem – e à Mulher, está visto – a possibilidade
de escolher e tropeçar e retomar e substituir, embora Fernando Pessoa sentisse
dolorosamente – estrondosamente -a inutilidade de tudo isso, no seu “não sou nada à parte isso”, do seu rebuscar poderoso de argúcia. Mas,
enfim, trata-se aqui não de reflexões de alma em apuros de fé ou do sentido
existencial, mas do percurso espiritual, sobretudo político, que leva o Homem (português,
neste caso) a assumir-se, pois que vem do confronto com o mundo – que não tem
que ser forçosamente identificado com o Diabo - que se dá no Humano, ao longo
da sua carreira terreal, por vezes ziguezagueando, outras na consistência de
princípios éticos ditados na infância que se respeitam como valores
inquebráveis. José Manuel
Fernandes já foi socialista, hoje deixou de o ser por discordar dos esquemas
políticos do governo socialista actual, que se aliou à esquerda, na manipulação
consentida do Estado como protector, e não na instigação ao esforço individual
para a criação de cidadãos realmente livres e realmente esforçados. Outros comentadores
assim o disseram, entre os 334 que o seu artigo provocou. Coloco alguns. São
sempre lições de vidas, para mais apontando os autores da sua sabedoria, e como
tal, enriquecedores.
Porque não sou socialista /premium
OBSERVADOR, 28/3/2019
A simples condição de “não socialista”
parece estar tocada pela lepra e merecer um cordão sanitário. É pois
tempo de dizer que não sou socialista porque já fui socialista e sei o que isso
significa.
Não
sou socialista porque já fui socialista. E não sou socialista porque sei o que
isso significa e a ilusão que representa.
Pode
parecer estranho vir afirmá-lo aqui e agora é porque se tenta que esta simples
condição – a de “não socialista” – seja uma espécie de lepra em torno da
qual se deve construir um severo cordão sanitário. E, no entanto, nunca foi
tão necessário romper esta espécie de unanimidade não assumida que é uma das
razões da nossa desesperança.
Não
é fácil. Os alucinados de toda a vida e os idiotas úteis do momento que estão
sempre a postos e, logo que ouvem alguém dizer-se “não socialista” às claras,
sem medo e sem rodriguinhos, saltam a anunciar que chegou a “alt-right”. O que
vai bem com o espírito dos tempos e esta forma de pensar Portugal em que não é
necessário ser sequer do PS nem votar-se no PS para se fazer parte de uma
cultura dominante de inspiração e prática socialista (sendo que no PS nem todos
serão exactamente socialistas).
Por
outras palavras: não venho aqui dizer que não sou socialista apenas porque não
tenho ou tive família no PS (até porque isso seria mentira), antes venho dizer
precisamente o contrário. A primeira razão porque não sou socialista é
porque aprendi a sua doutrina ainda na adolescência, época em que a sua lógica
me enfeitiçou, tempo em que percorri os caminhos da ideologia até aos seus
limites mais absurdos, tudo antes de compreender – felizmente ainda bem cedo –
a mentira da ilusão e ter deixado de tentar justificar todas as tragédias
associadas.
Para
mim tudo começou muito cedo, aos 13, 14 anos, quando o meu pai me deu a ler um
pequeno opúsculo de Léon Blum, o primeiro
socialista a dirigir um governo em França, nos anos da Frente Popular. Nele
se procurava explicar o que era o socialismo e, para além de todas as ideias de
justiça social, pareceu-me de uma lógica inatacável a ideia de que a
economia funcionaria muito melhor existindo planeamento central. Sendo eu então
um miúdo com uma fé quase ilimitada no conhecimento científico, era para mim
claro que assim se evitaria o desperdício e mais facilmente se garantiria que
haveria bens que chegassem para todos. Conhecíamos as necessidades, só havia
que organizar a sua produção e distribuição.
Hoje,
quase 50 anos depois, sorrio da minha ingenuidade. Na verdade tudo no
planeamento central contraria a natureza humana, limita a inovação, estimula a
preguiça e conduz à servidão. Tudo no planeamento central leva, mesmo no mais
eficiente dos regimes, à produção de Trabant’s, enquanto a “caótica”
concorrência vai produzindo Mercedes, Audi’s e e BMW’s.
E
não, não descartem já este exemplo por exagerado, pois sei bem que há uma
enorme, uma gigantesca distância entre o socialismo democrático de Léon Blum –
o ramo a que pertence o nosso PS – e as muitas variantes totalitárias filhas da
Revolução Russa e do leninismo – o tronco de que brotou o PCP mas também o
Bloco de Esquerda. Contudo
não podemos descartar os ensinamentos de décadas de “socialismo real”, sem
economia de mercado, até porque não é preciso acabar com as eleições para
vermos onde nos leva uma economia onde o Estado trata de mandar em tudo – basta
olhar para o que se está a passar na Venezuela.
É
por isso que é necessário ir mais longe e mais fundo e compreender que quando
Friedrich Hayek escreveu O Caminho para a Servidão,
em 1944, uma das suas teses centrais é que o comunismo só se diferencia do
socialismo por uma questão de grau. No fundo a ideia de planificar a
economia acaba sempre num esforço para “planificar a sociedade” que limita as
liberdades. Muito vilipendiado, ainda hoje proscrito em muitos centros
ditos “do saber”, o livro foi lido mal saiu por um rival intelectual de Hayek,
que lhe enviou de imediato um cartão a dizer que se encontrava “moral e
filosoficamente profundamente comovido e agradado”. Estas palavras são de John Maynard Keynes, que tinha aproveitado a viagem
transatlântica a caminho da conferência de Bretton Woods para ler o livro.
Conto
esta pequena história porque Keynes sempre se definiu como um liberal,
sempre se opôs às diferentes formas de socialismo e se advogou formas de
intervenção do Estado na economia foi para salvar o capitalismo, não para o
“superar”. É por isso que ao mesmo tempo que arquitectou formas de combater
a Grande Depressão e defendeu políticas que estimulariam a criação de emprego e
o combate à pobreza, e considerasse excessivo um certo nível de
desigualdades de rendimento, considerava, sem complexos, “que existem
justificações sociais e psicológicas para significativas diferenças de
rendimento e de riqueza”.
Uma
avaliação como esta não deriva de qualquer egoísmo pessoal ou de se ter o
coração duro, antes de uma avaliação da natureza humana. Assim como dos
sentimentos humanos, sobre os quais de resto Adam Smith escreveu longa e
sabiamente antes de se dedicar à riqueza das nações. É por isso que o
planeamento central não funciona e todos os fundamentos económicos do
socialismo estão errados. É também por isso que não existe um sentido na
História, a tal “seta do progresso” que levará à “superação” do capitalismo em
que os socialistas também acreditam, mesmo quando não dispensam os prazeres
“burgueses”.
O
planeamento central não funciona porque não se planeia o que não se conhece.
Pode-se fazer um plano quinquenal para a RTP, mas é impossível saber quando ou
onde vai aparecer um Netflix. A inovação implica risco, implica falhanços,
implica concorrência, implica empresas estabelecidas que vão à falência (a
chamada destruição criativa), implica estar empregado, ficar desempregado e
voltar a estar empregado, implica lutar e ter ambição, lutar por ser rico mas
também poder ficar pobre. Sob a asa de um Estado que tudo providencia isso não
acontece. Mesmo sob o peso de Estado que tudo regulamenta tudo é mais difícil.
O socialismo pode dar-nos hoje a ilusão de mais segurança, mas garante-nos no
futuro apenas mais pobreza.
Um
Estado que tudo controla, ou que de todos desconfia, é um Estado que limita as
liberdades. É um
Estado que mais tarde ou mais cedo faz de todos os cidadãos dependentes de um
qualquer serviço público ou de uma qualquer prestação estatal, logo é um Estado
de cidadãos tendencialmente submissos e temerosos. É cada vez mais a nossa
condição, e é essa nossa condição que limita as nossas escolhas: o socialismo
faz política assustando a cidadania. É o nosso caminho da servidão.
Os
socialistas não desconhecem as limitações da natureza humana, e por isso sempre
sonharam com alguma forma de “homem novo”, um desiderato prosseguido à bruta
pelos totalitarismos do século XX, uma missão hoje assumida pelos fanáticos de
todos os politicamente correctos, sempre empenhados em obras de engenharia
social que só respeitam a sua ideia de liberdade, não a liberdade de todos. E
quando nos falam de “conquistas” ou “retrocessos” civilizacionais estamos
muitas vezes de novo confrontados com o seu mito historicista de que a História
flui apenas num sentido e, sobretudo, de que são eles os conhecedores desse
sentido e os nossos guias, mesmo que à força.
Muitos
dos que se dizem socialistas não se identificarão com o retrato que acabei de
fazer, e isso não me surpreende. Viverão mais num “estado de espírito” sem se
aperceberem de que as ideias têm genealogia, têm história e, sobretudo, têm
consequências. E não as conhecerão como eu as conheci: por dentro, sem
ambiguidades e em diferentes aproximações.
Por
isso não devem ficar surpreendidos, só para dar um exemplo, com o actual estado
do debate sobre a Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde. Um socialista
defenderá mesmo aquilo que o actual PS parece estar a defender, a máxima
estatização dos serviços de saúde, a mínima liberdade para os utentes e para os
médicos, todos idealmente encaminhados para os seus hospitais e consultórios
pelos “planeadores centrais”. Um não socialista preocupar-se-ia
sobretudo em garantir que toda a população tinha acesso a bons cuidados de
saúde, com o menor custo possível para o contribuinte, sendo-lhe indiferente se
o prestador era o Estado, o sector social ou um operador privado, acreditando
que tendo os utentes mais liberdade, mais responsabilidade nas suas escolhas e
havendo mais concorrência, o resultado final seria melhor.
Há,
por fim, uma perversão muitas vezes associada ao socialismo que também faz com
que não seja socialista – é a
facilidade com que confundem Estado com Governo e Governo com Partido. No
leninismo isso foi teorizado: era o partido “vanguarda da classe operária”,
detentor da verdade e conhecedor do “sentido da história”, que devia exercer a
“ditadura do proletariado”. Nas democracias liberais não é assim, mas a
verdade é que os socialistas, por acreditarem nessa coisa abstracta que é o
Estado, e entenderem que ele deve ter um comando, que é o governo, têm por
regra a maior das resistências aos mecanismos de limitação do poder executivo.
O nosso PS nisso dá cartas, pois da constante tensão com o poder judicial ao
desmantelamento dos órgãos de regulação independentes – o escândalo mais
recente é o cerco ao Banco de Portugal –, tudo tem feito para concentrar mais
poder nas mãos do Executivo. Fê-lo com Sócrates e reincide com António Costa.
Não
há aqui nada de estranho: um não socialista como eu quer naturalmente mandar
menos e dar mais liberdade a todos; um socialista acredita num dirigismo que
também naturalmente contraria dar mais graus de liberdade.
Olhando
agora para trás, para as quatro décadas e meia que já levamos de democracia, e
lendo-as à luz destes critérios, é fácil perceber que estivemos quase sempre
mergulhados numa cultura política e de Governo socialista, mesmo quando não
eram os socialistas de nome que estavam no Governo.
Mais
uma razão para me sentir não socialista.
COMENTÁRIOS:
João Lopes: Excelente artigo de José Manuel Fernandes: coragem, inteligência e
honestidade. É verdade: «Um Estado que tudo controla, ou que de todos
desconfia, é um Estado que limita as liberdades. É um Estado que mais tarde ou
mais cedo faz de todos os cidadãos dependentes de um qualquer serviço público
ou de uma qualquer prestação estatal, logo é um Estado de cidadãos
tendencialmente submissos e temerosos». Vive-se este ambiente político em
Portugal...
António Sousa Branco: Nunca fui socialista. Relativamente cedo, quando pus de lado os livros aos
quadradinhos e comecei a ter alguma consciência social e política, choquei de
frente com George Orwell, o Triunfo dos Porcos e 1984. Em casa, já tinha ouvido
falar da invasão da Hungria e da Checoslováquia, nem precisei de chegar a
Soljenitsin e ao seu Arquipélago de Gulag.
O tal Homem Novo com
que os socialistas sonhavam e alguns ainda sonham, desde que não se atrevesse a
contestar os ditames da Nomenklatura, nunca foi o meu género.
Mesmo quando limaram
alguns dos radicalismo marxistas, o socialismo, dito democrático, continuou a
conferir ao Estado um peso excessivo que “sufoca” a sociedade, cada vez mais
controlada, interferindo e castrando a liberdade e criatividade individuais.
Fernando Prata: Não podia
estar mais de acordo consigo. De certa forma, tive um percurso político
idêntico e compreendo-o perfeitamente. Uma razão porque o PSD e o CDS não sobem
nas sondagens, tem precisamente a ver com a maneira de pensar do povo, da qual
este governo é um belíssimo exemplo. O nosso povo, no qual me incluo, tem
extrema aversão ao risco. O lema é: antes pobre toda a vida do que lutar por um
nível de vida que podia ser um dos mais elevados da Europa.
Fernando SILVA (>chronos doispontozero): Os resultados económicos depois de 2015 são piores do
que poderiam ser graças a uma economia interna mais ajustada pelo governo
Passos Coelho e a uma conjuntura externa extremamente favorável. Deste modo
desperdiçaram-se 4 anos durante os quais deviam ter sifo feitas reformas
estruturais e devia ter sido promovido um maior crescimento económico. Vamos
certamente pagar caro quando a conjuntura se tornar menos favorável. "O
ambiente de entendimento politico e a saudável bonomia social" é uma
mistificação inventada e alimentada pela propaganda do governo e pela
cumplicidade da comunicação social. Basta dizer que durante o governo da
"geringonça", apesar da aliança com o PCP e o BE, tem havido muitas
mais greves do que durante o governo Passos Coelho.
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