Faz Rui Ramos um excelente retrato do
nosso país pequenino, em que um governo foi extorquido à força, em tempo
próprio, ante a passividade astuta e inepta de todos, e para melhor se
fortalecer, se rodeia do seu staff fechado, de amigos e familiares que se apoiam
entre si, naturalmente, e se valorizam em grupo – economicamente falando, e é
essa a consequência mais visível, na escola de autopromoção e de autoprotecção
sem provas dadas de competência, meninos à roda da fogueira que aprenderam a
erguer a sua bandeira libertária de preconceito, preferindo acusar a
reconhecer, em força explosiva de atropelo, por um pelotiqueiro manipulando as
suas marionetas, em destreza não escondida detrás do pano, mas sobranceiramente,
no desprezo pelo povo inepto, a quem vai apaziguando com as côdeas da sua combinação
aliada – outro casamento que reforça condignamente o status de endogamia de que
em vão se murmura.
Bem-hajam estas cabeças argutamente
críticas, como a de Rui Ramos, capaz de
construir a sua tese de repúdio e crítica com base numa argumentação lógica e
arrojada. São estes que nos fazem ainda ter esperança, apesar do “buraco negro”
cada vez mais desvendado em que vai mergulhando o nosso país pequenino,
pequenino.
Manual
de evasão governamental /premium
OBSERVADOR, 9/4/2019
A estagnação da economia e a estatização da sociedade tinham de dar
nisto, numa política reduzida a um círculo fechado de amigos e de parentes. Mas
em vez de enfrentarmos isso, ataquemos Cavaco Silva.
Imaginem
que, pela primeira vez na história, um conselho de ministros português reúne
pai e filha, e marido e mulher. A imprensa repara, o país nota, e até o mundo
civilizado dá por isso. “Endogamia” passa a ser um lugar-comum do comentário
político. Não se sabe bem o que está mal, mas algo está mal. Que fazer, quando
já não chega fingir que não há problema? Três coisas, que o governo nos ensinou
nos últimos dias.
Em
primeiro lugar, fazer
de conta que foi sempre assim, que não
há nada para dizer do facto de um país da UE com 10 milhões de habitantes ser
governado por pais e filhos e maridos e mulheres. Para confirmar essa normalidade, nada melhor do que
uma velha história de chefes de
gabinete e de secretárias do tempo de Cavaco Silva, de há trinta
anos: vejam como eles também nomeavam as mulheres. Como se fosse mesmo
um precedente, ou como se um precedente dissipasse a questão. De repente, o facto inédito de uma parte dos
ministros serem familiares próximos uns dos outros, como
nunca acontecera num governo português desde o século XVIII –
repito: como nunca acontecera num governo português desde o século XVIII – está
esquecido, e em vez deste governo e destes ministros, é
Portugal, são todos os partidos, todos os portugueses que estão vagamente em
causa. Assim se faz noite e todos os gatos voltam a ser tranquilamente pardos.
Em
segundo lugar, esperar
que fale alguém a quem a esquerda odeia e uma parte da direita não estima. Nessas
condições, há quase só o professor Cavaco Silva.
O antigo
presidente falou, e a partir daí foi fácil ao governo tirar os seus
dependentes e activistas da confusão envergonhada em que jaziam, para os lançar
na excitação de mais uma correria anti-cavaquista. Subitamente, parecia
que estávamos outra vez em 1994, que ainda buzinavam na ponte e as gravuras não
sabiam nadar. Tivemos até direito a esta pequena preciosidade: Marques Mendes, na televisão, a bater no peito,
“olhando para trás”, por causa da endogamia nos gabinetes do cavaquismo. Como
se esse fosse o problema em 2019. A
ministra é filha do ministro? Que interessa isso, se em 1985 a ministra era filha da secretária geral do ministério?
Durante uns tempos, a culpa foi de Passos; agora parece que voltou a ser de
Cavaco.
Em terceiro lugar, esperar por uma ideia salvadora do
presidente da república, como
esta: fazer mais uma lei, ou alterar
uma lei existente. Para quê? Para impedir parentes de se sentarem ao
mesmo tempo à volta da mesa do conselho de ministros, ou apenas para não haver
primos nomeados chefes de gabinete? Não se percebe bem. Mas o interesse da
ideia é duplo. Primeiro, chama a atenção para que nenhuma lei foi violada, isto
é, que a polícia judiciária não está a recolher provas e que os juízes não vão
constituir arguidos. Depois, desvia a discussão para o “processo legislativo”.
De repente, as questões são: quem vai propor? Quem vai aprovar? E vai ser antes
ou depois das eleições? Etc. Entretanto, o pai e a filha, o marido e a mulher
continuam ministros, já só para espanto da imprensa espanhola, que, ainda por
cima, nem consegue ser exacta nas complexas genealogias da
política portuguesa.
E pronto, está feito. Falemos agora dos passes. Ou falemos ainda, se quiserem, de
“ética”. Do que não interessa falar é da
questão propriamente política, isto é, do que esta história
desvenda sobre o tipo de poder que existe em Portugal. De facto, nada tem de surpreendente: a estagnação
da economia e a estatização da sociedade tinham de dar nisto, numa política
reduzida a um círculo fechado de amigos e de parentes, como nas autocracias do
Terceiro Mundo. Mas pedir
a um regime e a uma sociedade que encarem de frente a sua própria degradação é
talvez pedir demais. Em vez disso, ataquemos Cavaco Silva. É mais conveniente e
tem um certo encanto nostálgico.
COMENTÁRIOS:
José Cabral: Concordo
com o conteúdo da crónica, embora me interesse pouco se o compadrio envolve
família de primeiro, quinto ou de grau nenhum. O compadrio é que está errado e
os políticos vão-no consolidando como uma das maiores conquistas da Democracia
e assim continuará até que um político decente dê dois murros na mesa e diga:
Vamos lá a acabar com a brincadeira! Decepcionou-me e discordo
diametralmente da opinião evasivo-conciliadora do Presidente da República: lei
clarificadora; diálogos; consensos!? O excesso de leis empanturra e é
impossível de digerir; intoxica e dissipa responsabilidades; não previne doença
nenhuma, antes agrava o estado geral do organismo.
Maria Madeira: Artigo muito assertivo e actual, como é habitual.
Joao MA: excelente artigo.
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