sexta-feira, 12 de abril de 2019

Os meninos do Huambo



Faz Rui Ramos um excelente retrato do nosso país pequenino, em que um governo foi extorquido à força, em tempo próprio, ante a passividade astuta e inepta de todos, e para melhor se fortalecer, se rodeia do seu staff fechado, de amigos e familiares que se apoiam entre si, naturalmente, e se valorizam em grupo – economicamente falando, e é essa a consequência mais visível, na escola de autopromoção e de autoprotecção sem provas dadas de competência, meninos à roda da fogueira que aprenderam a erguer a sua bandeira libertária de preconceito, preferindo acusar a reconhecer, em força explosiva de atropelo, por um pelotiqueiro manipulando as suas marionetas, em destreza não escondida detrás do pano, mas sobranceiramente, no desprezo pelo povo inepto, a quem vai apaziguando com as côdeas da sua combinação aliada – outro casamento que reforça condignamente o status de endogamia de que em vão se murmura.
Bem-hajam estas cabeças argutamente críticas, como a de Rui Ramos, capaz de construir a sua tese de repúdio e crítica com base numa argumentação lógica e arrojada. São estes que nos fazem ainda ter esperança, apesar do “buraco negro” cada vez mais desvendado em que vai mergulhando o nosso país pequenino, pequenino.

Manual de evasão governamental /premium
OBSERVADOR, 9/4/2019
A estagnação da economia e a estatização da sociedade tinham de dar nisto, numa política reduzida a um círculo fechado de amigos e de parentes. Mas em vez de enfrentarmos isso, ataquemos Cavaco Silva.
Imaginem que, pela primeira vez na história, um conselho de ministros português reúne pai e filha, e marido e mulher. A imprensa repara, o país nota, e até o mundo civilizado dá por isso. “Endogamia” passa a ser um lugar-comum do comentário político. Não se sabe bem o que está mal, mas algo está mal. Que fazer, quando já não chega fingir que não há problema? Três coisas, que o governo nos ensinou nos últimos dias.
Em primeiro lugar, fazer de conta que foi sempre assim, que não há nada para dizer do facto de um país da UE com 10 milhões de habitantes ser governado por pais e filhos e maridos e mulheres. Para confirmar essa normalidade, nada melhor do que uma velha história de chefes de gabinete e de secretárias do tempo de Cavaco Silva, de há trinta anos: vejam como eles também nomeavam as mulheres. Como se fosse mesmo um precedente, ou como se um precedente dissipasse a questão. De repente, o facto inédito de uma parte dos ministros serem familiares próximos uns dos outros, como nunca acontecera num governo português desde o século XVIII repito: como nunca acontecera num governo português desde o século XVIII – está esquecido, e em vez deste governo e destes ministros, é Portugal, são todos os partidos, todos os portugueses que estão vagamente em causa. Assim se faz noite e todos os gatos voltam a ser tranquilamente pardos.
Em segundo lugar, esperar que fale alguém a quem a esquerda odeia e uma parte da direita não estima. Nessas condições, há quase só o professor Cavaco Silva.antigo presidente falou, e a partir daí foi fácil ao governo tirar os seus dependentes e activistas da confusão envergonhada em que jaziam, para os lançar na excitação de mais uma correria anti-cavaquista. Subitamente, parecia que estávamos outra vez em 1994, que ainda buzinavam na ponte e as gravuras não sabiam nadar. Tivemos até direito a esta pequena preciosidadeMarques Mendes, na televisão, a bater no peito, “olhando para trás”, por causa da endogamia nos gabinetes do cavaquismo. Como se esse fosse o problema em 2019. A ministra é filha do ministro? Que interessa isso, se em 1985 a ministra era filha da secretária geral do ministério? Durante uns tempos, a culpa foi de Passos; agora parece que voltou a ser de Cavaco.
Em terceiro lugar, esperar por uma ideia salvadora do presidente da república, como esta: fazer mais uma lei, ou alterar uma lei existente. Para quê? Para impedir parentes de se sentarem ao mesmo tempo à volta da mesa do conselho de ministros, ou apenas para não haver primos nomeados chefes de gabinete? Não se percebe bem. Mas o interesse da ideia é duplo. Primeiro, chama a atenção para que nenhuma lei foi violada, isto é, que a polícia judiciária não está a recolher provas e que os juízes não vão constituir arguidos. Depois, desvia a discussão para o “processo legislativo”. De repente, as questões são: quem vai propor? Quem vai aprovar? E vai ser antes ou depois das eleições? Etc. Entretanto, o pai e a filha, o marido e a mulher continuam ministros, já só para espanto da imprensa espanhola, que, ainda por cima, nem consegue ser exacta nas complexas genealogias da política portuguesa.
E pronto, está feito. Falemos agora dos passes. Ou falemos ainda, se quiserem, de “ética”. Do que não interessa falar é da questão propriamente política, isto é, do que esta história desvenda sobre o tipo de poder que existe em Portugal. De facto, nada tem de surpreendente: a estagnação da economia e a estatização da sociedade tinham de dar nisto, numa política reduzida a um círculo fechado de amigos e de parentes, como nas autocracias do Terceiro Mundo. Mas pedir a um regime e a uma sociedade que encarem de frente a sua própria degradação é talvez pedir demais. Em vez disso, ataquemos Cavaco Silva. É mais conveniente e tem um certo encanto nostálgico.

COMENTÁRIOS:
José Cabral: Concordo com o conteúdo da crónica, embora me interesse pouco se o compadrio envolve família de primeiro, quinto ou de grau nenhum. O compadrio é que está errado e os políticos vão-no consolidando como uma das maiores conquistas da Democracia e assim continuará até que um político decente dê dois murros na mesa e diga: Vamos lá a acabar com a brincadeira! Decepcionou-me e discordo diametralmente da opinião evasivo-conciliadora do Presidente da República: lei clarificadora; diálogos; consensos!? O excesso de leis empanturra e é impossível de digerir; intoxica e dissipa responsabilidades; não previne doença nenhuma, antes agrava o estado geral do organismo.  
Maria Madeira: Artigo muito assertivo e actual, como é habitual.
Joao MA: excelente artigo.


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