quarta-feira, 3 de abril de 2019

Saudades de meu bem




Não foi mesmo ali, mas Camões andou por lá, por aqueles mares que Salles da Fonseca navega, do lado de lá, da Ásia. Camões fixou-se algum tempo no lado de cá, na África, no ponto extremo que separa África e Ásia, pelo Golfo de Aden. As mesmas evocações que levam Salles da Fonseca aos Reis Magos, neste visualizar melhor os lugares, hoje mais facilmente “aráveis”, mas para nós apenas “sagrados”, reconhecidos somente em lembrança literária, conduziram-me à Canção IX de Camões, em modo de apresentação do Cabo Guardafui, porta de entrada para o Mar Vermelho, que, no Canto X, 97 assim descreve, mais objectivamente do que na Canção IX:
«O Cabo vê já Arómata chamado,
E agora Guardafú, dos moradores,
Onde começa a boca do afamado
Mar Roxo, que do fundo toma as cores;
Este como limite está lançado
Que divide Ásia de África; e as melhores
Povoações que a parte África tem
Maçuá são, Arquico e Suaquém.»
E assim vamos percorrendo terras que se diluíam, em referência jornalística, quando muito, e que o texto vivo de SF torna mais apreensível. Mas não quero deixar de reviver os espaços próximos onde esteve Camões, e citarei também parte do extraordinário poema “Canção IX”, das suas saudades pátria e amorosa.


HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÂO, 02.04.19
NA TERRA DOS REIS MAGOS
Já faz alguns anos quando, passeando pelo Nordeste brasileiro, cruzei uma localidade que não consegui levar muito a sério por causa do nome que algum pândego lhe fez aprovar: Itapipoca. Bem sei que «ita» significa «pedra» nas línguas tupi-guarani (?) mas a «pipoca» tira-lhe condição para entrar com um mínimo de prosápia na Academia Brasileira de Geografia.
O mesmo se passou agora quando me preparava para arribar a Salalah (صَلَالَة) mas tenho que dar a mão à palmatória pois que ela foi a capital do Sultanato até 1970 quando Qaboos se mudou para Mascate (a hora e meia de avião) com a sua corte e, o mesmo é dizer, com o Governo.
No último recenseamento (2010), tinha cerca de 160 mil residentes mas a guerra no Iémen fechou a fronteira que dista curtos (estrada boa) 170 km e, vai daí, falhou a vocação de grande cidade fronteiriça. Resta uma abertura não garantida na fronteira de Al Mazyunah a relativamente longos (estrada assim-assim, segundo me disseram) 258 km.
Mas o interland salalaiano tem petróleo em abundância e é também a região onde existem as«florestas» de Pittosporum undulatum que produzem o muito valioso incenso. Não nos referiram se também há ouro ou mirra mas fiquei a matutar se os Reis Magos não seriam omanitas. Aceito sugestões alternativas.
É também naquela região que se faz a criação extensiva de camelos de corrida e é na cidade que se localiza a única fábrica de cimento do país. E, claro está, é também lá que funciona a refinaria de petróleo que abastece o consumo interno. Ou seja, a cidade mexe e, não se expandindo em altura, tem avenidas largas e condomínios algo misteriosos com muros atrás dos quais se avistam casas que devem ser boas a sério.
FOTO. Admito que o incenso possa ser um bom negócio mas a «floresta» que nos foi mostrada, dá uma ideia muito sui generis
E como se sabe da geografia económica, um interior desenvolvido implica quase sempre um litoral desenvolvido (o vice-versa não é garantido), a cidade tem no porto marítimo a sua grande motivação.
FOTO: Praia da Salalah - o turismo está a crescer e a costa é aprazível já que o interior…
E tudo isto, sem contar com S. Joaquim que esse, no estado fúnebre em que se encontra, não se importa nem se exporta.
Tudo visto e gozado, zarpámos pela hora de jantar rumo à pirataria.
(continua)
Abril de 2019
Comentários:
 Anónimo  02.04.2019:   Itapipoca - pedra lascada!
 Adriano Lima  02.04.2019: Com estes relatos, fico com a sensação de que se pode circular em segurança por estas e outras paragens do périplo aqui em reportagem. Tirando o episódio já relatado sobre os preventivos snipers contra a pirataria marítima, não parece que o turismo ocidental tenha especiais razões para temer a demanda destes lugares. Pelo menos, por enquanto. Mesmo com o Daesh em colapso ou em estertor de terminal existência, nunca fiar em ecesso, não é Dr. Salles da Fonseca? Sobre este mini apontamento, gostaria que dissesse alguma coisa, desejavelmente tranquilizadora, para eu convencer de vez a minha mulher a acompanhar-me numa possível viagem a estes destinos. Aliás, sugiro ao autor destes belíssimos relatos que não se limite a postá-los. Seria interessante que interagisse com os comentadores, proporcionando um diálogo que só poderia complementar e enriquecer mais ainda este blogue. Eu, da minha parte, já me sinto enriquecido com o que é postado neste blogue, mas nunca será demais explorar o filão.

CANÇÃO IX – Luís de Camões
Junto de um seco, fero e estéril monte,

inútil e despido, calvo, informe,
da natureza em tudo aborrecido,
onde nem ave voa, ou fera dorme,
nem rio claro corre, ou ferve fonte,
nem verde ramo faz doce ruído;
cujo nome, do vulgo introduzido,
é
FÉLIX,
por antífrase, infelice;
o qual a Natureza
situou junto à parte
onde um braço de mar alto reparte
Abássia da arábica aspereza,
onde fundada já foi Berenice,
ficando à parte donde
o Sol que nele ferve se lhe esconde;
nele aparece o Cabo com que a costa
Africana, que vem do Austro correndo,
limite faz, Arómata chamado
(Arómata outro tempo; que, volvendo
os céus, a ruda língua mal composta
dos próprios outro nome lhe tem dado).
Aqui, no mar que quer apressurado
entrar pela garganta deste braço,
me trouxe um tempo e teve
minha fera ventura.
Aqui, nesta remota, áspera e dura
parte do mundo, quis que a vida breve
também de si deixasse um breve espaço,
por que ficasse a vida
pelo mundo em pedaços repartida.
Aqui me achei gastando uns tristes dias,
tristes, forçados, maus e solitários,
trabalhosos, de dor e de ira cheios,
não tendo tão-somente por contrários
a vida, o sal ardente e águas frias,
os ares grossos, férvidos e feios;
mas os meus pensamentos, que são meios
para enganar a própria Natureza,
também vi contra mi,
trazendo-me à memória
algũa já passada e breve glória,
que eu já no mundo vi, quando vivi,
por me dobrar dos males a aspereza,
por me mostrar que havia
no mundo muitas horas de alegria.
Aqui estive eu co estes pensamentos
gastando o tempo e a vida; os quais tão alto
me subiam nas asas que caía
— e vede se seria leve o salto! —
de sonhados e vãos contentamentos
em desesperação de ver um dia.
Aqui o imaginar se convertia
num súbito chorar e nuns suspiros,
que rompiam os ares.
Aqui, a alma cativa,
chagada toda, estava em carne viva,
de dores rodeada e de pesares,
desamparada e descoberta aos tiros
da soberba Fortuna:
soberba, inexorável e importuna.
Não tinha parte donde se deitasse,
nem esperança algũa onde a cabeça
um pouco reclinasse, por descanso.
Todo lhe é dor e causa que padeça,
mas que pereça não, por que passasse
o que quis o Destino nunca manso.
Oh! que este irado mar, gritando, amanso!
Estes ventos da voz importunados,
parece que se enfreiam!
Somente o Céu severo,
as Estrelas e o Fado sempre fero
com meu perpétuo dano se recreiam,
mostrando-se potentes e indignados
contra um corpo terreno,
bicho da terra vil e tão pequeno. (...)
Notas da internet:
Golfo de Áden
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
O golfo de Áden, golfo de Adem ou golfo de Adém é um golfo situado no Mar de Omã, no norte do oceano Índico, entre a Somália, no Chifre da África, e o Iémen, na costa sul da Península Arábica. O seu nome provém da cidade de Áden, na extremidade sul da península. O golfo conecta-se, ao norte, com o Mar Vermelho, através do estreito de Bab-el-Mandeb, com mais de 30 km de largura, e tem o mesmo nome da cidade portuária de Áden, no Iêmen.
Historicamente, o golfo de Áden era conhecido como "golfo de Berbera", em alusão à antiga cidade portuária somali, situada na margem sul do golfo, na atual Somalilândia.[2][3] Todavia o desenvolvimento da cidade de Áden, durante a era colonial, fez com que o nome de "golfo de Áden" prevalecesse sobre a antiga denominação.
Características principais[editar | editar código-fonte]
Este mar marginal foi formado há cerca de 35 milhões de anos, com a separação das placas tectónicas africana e arábica e faz parte do sistema do grande Vale do Rift.
O golfo de Áden é uma via marítima essencial para o petróleo do golfo Pérsico, tornando-o muito importante para a economia mundial. Possui muitas variedades de peixes, corais e outras criaturas marinhas, devido a sua baixa poluição. Os principais portos são Áden  (no Iémen), Berbera e Bosaso (ambos na Somália).
Ele não é considerado seguro, visto que a Somália que lhe é limítrofe, é um país instável, e o Iémene não possui forças de segurança suficientes na região. É uma das principais áreas de pirataria mundial, extremamente perigosa para a navegação. Além disso, vários ataques terroristas foram efectuados no golfo, como o do USS Cole.
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