Foi este um
comentário que recebi há dias para ser colocado no texto que laboriosamente escrevi,
de 27/2/2011 – uma pequena análise da “Fedra” de Jean Racine. Apressei-me a transcrevê-lo
no meu blog, não me senti nada ofendida com o desprimor do protesto, e espero
que Salles da Fonseca, com a sua excelente análise a respeito da “economia paralela” se não formalize com a utilização do tal comentário para definir o seu. É
claro que me trouxe luzes, e igualmente o seu comentador mais prolixo, Anónimo. Mas é mais fácil entender a
ironia de João
de Deus, de progressiva actualização
e aplicação, e aí está o valor do “rico bago” do poema seguinte, como homenagem
ao heróico esforço, seriamente elucidativo, de Salles da Fonseca, que nos
revela os escaninhos da tal dimensão.
Dinheiro
O
dinheiro é tão bonito, Tão bonito, o
maganão! Tem tanta graça, o maldito, Tem tanto chiste, o ladrão! O falar, fala de um modo. Todo ele, aquele todo... E elas acham-no tão guapo! Velhinha ou moça que veja, Por mais esquiva que seja. Tlim! Papo.
E
a cegueira da justiça Como ele a tira
num ai! Sem lhe tocar com a pinça; E só
dizer-lhe: «Aí vai...» Operação melindrosa, Que não é lá qualquer coisa; Catarata, tome conta! Pois não faz mais do que isto, Diz-me
um juiz que o tem visto: Tlim!
Pronta.
Nessas
espécies de exames Que a gente faz em
rapaz, São milagres aos enxames O que aquele demo faz! Sem saber nem patavina De
gramática latina, Quer-se um rapaz dali fora? Vai ele com tais falinhas, Tais gaifonas, tais coisinhas... Tlim! Ora...
Aquela
fisionomia É lábia que o demo tem! Mas numa secretaria Aí é
que é vê-lo bem! Quando ele de grande gala, Entra o
ministro na sala, Aproveita a ocasião «Conhece este amigo antigo?» Oh,
meu tão antigo amigo! (Tlim!) Pois não!
João
de Deus, in 'Campo de Flores'
HENRIQUE SALLES
DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 18.04.19
Perguntado pelo Senhor Coronel Miranda
Lima sobre como combater a economia paralela (comentário ao meu texto «A
POBREZA E A JUSTIÇA» publicado em 15ABR19), respondi que faria texto específico
em vez de apenas me ficar por comentário-resposta no blog. A isso venho, pois.
Economia
paralela é a que, legalmente não isenta de tributação, na realidade não se
encontra tributada. Por
fuga ao Fisco, está visto.
Vai
desde o cândido biscate até ao tráfico de estupefacientes e outras brutalidades
do género passando pela «bica» sem factura-recibo, do cabeleireiro, do
veterinário…
Ou seja, nem toda a
economia paralela merece tratamento policial.
É por isso que divido
a questão em duas partes que, no meu entendimento, não são miscíveis e que
carecem de tratamentos distintos:
a criminosa – que é do foro policial;
a «cândida», que não merece tratamento policial – que
essa, sim, podemos tentar combater com medidas de política, nomeadamente no
âmbito da fiscalidade.
A. Começo por recordar que
houve medidas legislativas que, por exemplo, ilegalizaram a mais antiga profissão
do mundo e que, ipso facto, a
atiraram num instante para fora da fiscalidade. Foi em 1961 quando houve que
enviar para Angola grandes contingentes militares e que o Governo de então terá
entendido que essas profissionais eram mais necessárias lá do que cá.
Entretanto, apesar de terem passado «só» quase 60 anos, as circunstâncias
sanitárias terem passado pelo stress da
SIDA e de outras doenças sexualmente transmissíveis, a moralidade real ou
fingida dos políticos mantém essa ilegalidade com todos os perigos sanitários
inerentes e óbvio prejuízo da Fazenda Pública.
NOTA À PARTE
[A tributação da
prostituição não passará certamente pelo controlo dos recibos emitidos a favor
do consumidor final com inequívoca identificação fiscal, passará certamente
pela presunção de facturação daquelas profissionais com base na experiência dos
Chefes das Repartições de Finanças – prática esta, presuntiva, muito
experimentada em diversos sectores da actividade económica ao longo da história
recente dos nossos sábios publicanos.]
Quantos mais sectores
excluídos poderiam ser trazidos de volta à esfera da fiscalidade?
B. A carga fiscal - tanto directa quanto indirecta - é um
convite à fuga pois tudo o que «passe por fora», é metido ao bolso sem mais
problemas. Sobretudo quando o cliente final só pode descontar uma ninharia no
respectivo IRS.
Nesta questão, há duas
soluções (fora os arranjos e combinações que a imaginação sugira):
ou se reduz a tributação directa do vendedor;
ou se permite que o cliente final possa deduzir no IRS
a tributação indirecta suportada (de preferência toda
ou, então, muito mais do que actualmente é permitido) nas compras de bens e serviços que faça.
Então,
bastaria que se pudesse descontar esse tipo de despesas no IRS para que os
recibos passassem a existir, o IVA a ser cobrado e o volume de negócios
sectorial declarado a aproximar-se da dimensão real.
Afinal, até parece que é verdade serem os Governos
que, com estas proibições, promovem a evasão fiscal e enviam inteiros sectores
de actividade para fora da economia oficial. Fazem-no apenas por nabice, claro
está, porque nas Escolas aprenderam doutrinas da Fiscalidade que já não existe.
É com base nestas
realidades que nasce a tese que diz que se todos
pudermos descontar todas as despesas no IRS, as receitas públicas aumentam. E
como não poderia deixar de ser, também existe a antítese que afirma que os
novos descontos no IRS ultrapassariam o aumento das receitas pelo que o encaixe
público seria menor. Sim?
A partir daqui,
recorro a um texto que escrevi quando a taxa normal do IVA era 21%.
O actual método de
cálculo da matéria colectável – tanto para efeitos de IRS como de IRC – apenas
permite o desconto de algumas despesas.
Imaginemos o seguinte
cenário:
Matéria tributável no
IRS = 100
Despesas dedutíveis
(30%) = 30
Matéria
colectável
= 70
Taxa
aplicável
= 30%
COLECTA
= 21
Admitamos
agora que sobre metade da matéria colectável (35), o Contribuinte, ao não pedir
recibo, permite que nessas transacções o lado da oferta se evada fiscalmente.
Ou seja, no nosso modelo, a evasão fiscal assume a dimensão de 35 pelo que só
65 se enquadram na economia oficial: os 30 já “agarrados” pela dedutibilidade
das despesas no lado da procura mais os 35 do lado da oferta que não passaram à
clandestinidade apesar de corresponderem a despesas não dedutíveis.
Nestas circunstâncias,
do lado da oferta, o mesmo modelo será como segue:
Matéria tributável no
IRC = 65
Despesas dedutíveis
(30%) = 19,5
Matéria
colectável
= 45,5
Taxa
aplicável
= 30%
COLECTA
= 13,65
COLECTA TOTAL (IRS +
IRC) = 34,65
IVA, à taxa de 21%
(sobre 65) = 13,65
IVA s/ 100 do lado da
procura a 21% = 21
RECEITA PÚBLICA
TOTAL
= 69,3
Imaginemos agora que o
Governo fazia aprovar um novo método de cálculo do IRS permitindo o desconto de
mais despesas, agora para 50% em vez dos 30% do exemplo anterior. Introduzindo
apenas essa variação no modelo do lado da procura, sucederá o que segue:
Matéria tributável no
IRS = 100
Despesas dedutíveis
(50%) = 50
Matéria
colectável
= 50
Taxa
aplicável
= 30%
COLECTA
= 15
Continuemos a admitir
que sobre metade das despesas não dedutíveis (25) pela procura, o lado da
oferta nessas transacções se evada fiscalmente. Assim sendo, a evasão fiscal
assume a dimensão de 25 e ao universo tributável inicial (65), há agora que
juntar aqueles que abandonaram a clandestinidade (25) para constituírem um novo
universo tributável do lado da oferta já com a dimensão de 90 num total de 100.
Matéria tributável no
IRC = 90
Despesas dedutíveis
(30%) = 27
Matéria
colectável
= 63
Taxa
aplicável
= 30%
COLECTA
= 18,9
COLECTA TOTAL (IRS +
IRC) = 33,9
IVA, à taxa de 21%
(sobre 90) = 18,9
IVA s/ 100 do lado da
procura a 21% = 21
RECEITA PÚBLICA
TOTAL
= 73,8
E assim
sucessivamente até à exaustão da economia paralela «cândida» para o que bastará
os Governos permitirem que a procura – apenas os singulares para efeitos de
simplificação do modelo – deduzam todas as despesas na declaração anual de
rendimentos para efeitos de cálculo da matéria colectável.
RESUMO
Descontos no IRS
|
||||
Colecta
|
30
|
50
|
Δ%
|
|
IRS
|
21
|
15
|
-28,6
|
|
IRC
|
13,65
|
18,9
|
38,5
|
|
IVA
|
34,65
|
39,9
|
15,15
|
|
TOTAL
|
69,3
|
73,8
|
25,05
|
Neste exemplo apenas
permiti que os singulares deduzissem mais despesas aos seus rendimentos
declarados e nada fiz quanto aos colectivos. Se procedermos de igual modo
quanto a estes, poderemos trazer de volta à economia oficial as tais empresas
«maquisardes» (resistentes) que não suportam a actual carga fiscal e o Fisco
passaria a obter receitas de fontes em que actualmente não mete o nariz.
Fica assim demonstrado
que o acréscimo da dedução à
colecta é, por si próprio, um incentivador da receita pública.
CONCLUSÃO: A economia paralela de génese criminosa é do foro
policial mas a «cândida» pode e deve ser reduzida por diversas medidas de
política, nomeadamente as de índole fiscal.
Abril de 2019
Henrique Salles da Fonseca
Anónimo 18.04.2019 09:13: Como fazer uma prostituta ou um barbeiro pagarem IR.
Parece um tanto absurdo, mas há um método simples: taxa anual por cálculo... e
esperar que que não atingem essa meta reclamem!De outro modo, como diz, alguma
vez uma prostituta ou um barbeiro vão passar N.Fiscal ao cliente: Gostava de
ver.
Henrique Salles da
Fonseca 18.04.2019 17:27:O meu barbeiro passa factura-recibo com o meu nº de
Contribuinte, o que me permite descontar o respectivo IVA; a prostituta não me
presta serviços, não sei.
Anónimo 18.04.2019 16:33: Como em tudo, ou quase, nesta vida, a realidade,
felizmente, é um pouco mais complicada. E a realidade começa por nos mostrar
que há duas "economias paralelas": (i) a de pequenos números
(ou "de rua"); (ii) a de grandes números (ou "de
gabinete"). A "de rua" não consegue prosperar sem notas
de banco (CM/circulação monetária, mais exactamente). A "de
gabinete", em tempos, também dependia exclusivamente da CM (as célebres
"malas de dinheiro"), mas, recentemente, prefere as
transferências bancárias por Bancos na periferia do sistema financeiro
internacional. Para acabar com a "economia paralela de rua",
basta reduzir, simultaneamente, o volume da CM e o Valor Facial das notas em
circulação (notas de € 500, mesmo de € 200, são uma tentação, uma via rápida e
uma solução expedita para trabalhar na sombra). Para conter a
"economia paralela de gabinete" (conter, não acabar, que nunca
acabará porque o prémio é enorme), os Bancos Sistémicamente Importantes a nível
Global, sobretudo, as suas subsidiárias e filiais em sistemas bancários
periféricos, teriam de ser mais vigilantes, menos complacentes - e teriam de se
conformar com resultados bem mais modestos (o que não é fácil de aceitar,
convenhamos). No plano fiscal, as "economias paralelas" só
são visíveis se os contratos que movimentam dinheiro forem visíveis. Por isso, o IRS é praticamente cego ao
dinheiro por elas movimentado, mas há indicadores que as assinalam com bastante
precisão: por exemplo, o consumo de Energia Eléctrica, de Gás e de outros
combustíveis. É, porém, a tributação indirecta (sobretudo, o IVA, mas também os
impostos sobre o património) que, por um lado, melhor capta as "economias
paralelas" e, por outro, mais as provoca. Um Governo empenhado em combater eficazmente a
"economia paralela de rua" começaria por reduzir a CM (o que é
difícil numa Zona Monetária, reconheço, para mais com grandes fluxos
turísticos) - incentivando os pagamentos em moeda escritural (através de
Cartões de Pagamento, que os cheques caíram em desuso para não mais voltar).
Incentivar, significa: incentivar os comerciantes (a oferta, as entidades
liquidatárias dos impostos indirectos). E incentivar os comerciantes, talvez
atribuindo às receitas obtidas através da utilização de cartões de pagamento um
coeficiente ponderador menor que 1 (por exemplo, 0.95) para efeitos de
apuramento da matéria colectável em IRS/IRC. O que nem colocaria apreciáveis
entraves à Administração Fiscal, que bem poderia limitar-se a trabalhar sobre
as listagens que as Entidades Gestoras de Cartões de Pagamento (EGCP) lhe entregassem
periodicamente. E aí estaria o Big Brother de armas e bagagens, dirão
muitos. Mas se é isto que a Administração Fiscal, entre nós, já faz! É claro
que, para uma solução assim ser factível, as EGCP não poderiam sujeitar os
comerciantes às comissões por vezes escandalosas que actualmente cobram. Mas
tudo dependeria, em última análise, da vontade do Governo e do Banco de
Portugal em dotarem a economia de um sistema (ou infra-estrutura) de pagamentos
segura e eficiente - e quanto a isto já não estou tão confiante.
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