Julgo que a Catalunha deve estar no
pensamento de todos, mas ninguém se atreve, por enquanto, a sequer alvitrar, excepto JMT com indiferença, parece-me. Mas
agora é que a Catalunha vai ao ar e a Espanha não será mais aquela. Dos mapas.
E da História.
I -OPINIÃO: As eleições espanholas e a
estabilidade
Podemos estar a assistir ao regresso da
política na verdadeira acepção da palavra, na arte de realizar compromissos com
forças que se enquadram num dado campo político – ideológico.
DOMINGOS LOPES
PÚBLICO, 29 DE ABRIL DE 2019, 22:12
Em
Espanha os resultados eleitorais das eleições
legislativas de vinte e oito de abril apresentam um horizonte com uma
nova paisagem política.
Na
verdade, a rotatividade das maiorias absolutas entre o PSOE e o PP finou. Os
eleitores, numa grande afirmação cívica, deram uma maioria relativa ao PSOE e
uma maioria absoluta ao PSOE, ao Podemos e aos partidos representativos das autonomias
e independentistas.
O PP, o Cidadãos e o VOX escolheram
como eixo político colocar o PSOE num cordão sanitário. Falharam redondamente. O campo do PSOE, do Podemos e autonómico reforçou as
suas posições.
É
interessante que muitas das análises se centram na instabilidade gerada com
estes resultados, tentando passar por cima da opção clara dos espanhóis que
rejeitaram entregar a qualquer partido o poder de por si só constituir governo.
Sendo o povo o soberano escolheu e só há que respeitar essa sua soberania.
Parece
claro que as experiências de maiorias absolutas de PP e PSOE conduziram a
Espanha a sucessivos e monumentais escândalos de corrupção que abalaram toda a
sociedade de modo profundo.
Ao
obrigar o PSOE a negociar compromete-o com acordos com outros partidos,
impedindo-o de gerir a vida pública a seu bel-prazer.
A
estabilidade gerada por uma maioria absoluta foi responsabilizada pelos
espanhóis como causa desse clima de um poder quase absoluto com que o PSOE e o
PP arrasaram a Espanha, levando ao descrédito do próprio regime, dado o grau de
envolvimento de ambos em processos de corrupção e incapacidade de gerar
consensos, provavelmente por terem maioria absoluta.
Esta
“estabilidade” foi tacitamente rejeitada pelos espanhóis, criando uma nova
situação. O PSOE vai ter de assumir compromissos com os partidos à sua esquerda
ou à sua direita. A lógica que decorre da queda do governo de Sanchez, os
eixos da campanha eleitoral, apontam para um entendimento à esquerda e com os
autonomistas.
Um
acordo é sempre o resultado de vontades que nele se materializam e podem dar a
possibilidade de levar a cabo a legislatura até ao fim, ou seja, com
estabilidade.
Falta
esperar para ver se o PSOE se compromete desde já com uma saída ou prefere
manter uma certa ambiguidade para tentar reforçar a votação nas eleições para o
parlamento europeu.
A
estabilidade da governação não decorre tout court de uma maioria absoluta, mas de uma política que
responda às grandes aspirações dos espanhóis.
O
exemplo português é claro. O facto de o PS não ter uma maioria (nem relativa)
não impediu de governar os quatro anos e de operar uma certa viragem na
política portuguesa, aliás com sucesso.
Podemos
estar a assistir ao regresso da política na verdadeira acepção da palavra, na
arte de realizar compromissos com forças que se enquadram num dado campo
político – ideológico. O que poderá significar o fim de um rotativismo entre
duas formações para tudo ficar na mesma.
A democracia é a possibilidade de
encontrar saídas reais e diferentes para os impasses que o regime gera.
Apresenta-se uma nova possibilidade no nosso vizinho continental. Há saídas
para assegurar a estabilidade governativa.
II - A pulverização eleitoral
espanhola /premium
OBSERVADOR, 30/4/19
Em
Espanha, como em Portugal, o «centro» transformou-se numa pretensa «linha
vermelha» que nenhum partido quer atravessar com medo de ser acusado de
«direitista» ou de «esquerdista».
Ao
contrário do que se poderia supor, no caso de Portugal e Espanha a
proximidade geográfica presta-se menos à mútua compreensão do que às seculares
confusões geradas pelas rivalidades nacionais e pelas narrativas históricas.
Com efeito, a situação a que Espanha chegou ao termo de eleições que já deviam
ter tido lugar há tempos, mas às quais o partido socialista espanhol (PSOE)
fugira até agora, não é tão diferente da portuguesa como parece. Com excepção,
claro, da pressão cisionista de uma parte significativa, embora provavelmente
minoritária, da opinião pública catalã, que não nos deve porém obnubilar, pois
esta explosão independentista não é apenas local!
Em
Espanha, com um sistema eleitoral baseado no método de Hondt mas bastante menos
proporcional do que as regras aplicadas em Portugal, as coisas estão de tal
modo distorcidas que um deputado custou ao PSOE apenas 60.000 votos em média
enquanto ao Ciudadanos (C’s) custou mais de 72.000 votos e ao Podemos quase
90.000, enquanto o novo partido Vox precisou de 110.000, ou seja, praticamente
o dobro do PSOE: de tal modo que o Vox necessitou de mais de 2,6 milhões de
votos para eleger 24 deputados enquanto os seus inimigos independentistas
precisaram apenas de 1,5 milhões para eleger 22. Em suma, um deputado devia ter custado em média cerca de
85.000 votos mas variou dessa maneira que se está a ver…
As
fortes discrepâncias que se verificam em Espanha resultam das escolhas
consecutivas ao fim da Ditadura, em benefício dos dois grandes partidos que
então se formaram e se apoderaram do espaço público até há pouco tempo; pior do
que isso, criaram-se desigualdades crescentes que acabaram por estilhaçar o
leque partidário em mais de uma dúzia de partidos com representação
parlamentar. Quando o
partido mais votado tem menos de 29% dos votos e 123 deputados, e os quatro
partidos seguintes têm, juntos, o dobro dos votos mas apenas 189 deputados, a
única coisa que uma pessoa séria pode fazer é procurar aquilo que o antigo
presidente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, chama o «centro radical».
O
que vem a ser isso? Basicamente, seria a cooperação entre todos os partidos que
rejeitam as ideologias extremas, sejam de direita ou de esquerda, as quais
sempre se multiplicam com este tipo de fragmentação, acabando por reduzir os
partidos políticos, não a agentes da governação conjunta, como seria de
desejar, mas sim a redutos cada vez mais pequenos de famílias ideológicas que
lutam entre si pelos despojos do Estado nacional ou comunitário! Irão então os
partidos procurar identificar aquele «centro radical»? Não!
Em
Espanha, como em Portugal e como sucede cada vez mais onde prevalece a
fragmentação eleitoral, o «centro» transformou-se numa pretensa «linha
vermelha» que nenhum partido quer atravessar com medo de ser acusado de
«direitista» ou de «esquerdista». No caso de ontem, já que nenhum partido está
perto da maioria parlamentar, o natural seria a aliança dos dois partidos que a
própria geografia parlamentar coloca no centro do hemiciclo: o PSOE vencedor
precisa de 53 deputados para atingir essa maioria e Ciudadanos – à sua direita
no parlamento – tem os suficientes para isso, perfazendo 180. Para cada lado,
segundo a geografia eleitoral, ficariam 90 deputados à direita e 80 à esquerda,
incluindo populistas, nacionalista e cisionistas. Mas não, repito.
O
PSOE diz preferir governar sozinho piscando o olho à esquerda ou à direita,
conforme as necessidades, mas na realidade está a preparar-se para se unir à
presumível esquerda, exceptuando em princípio os cisionistas catalães. Isso
dar-lhe-á os 42 populistas do Podemos e mais alguns deputados até chegar,
penosamente, a 175 votos que ainda não fazem uma maioria para passar a
legislação e que só por oportunismo é que o Podemos poderá – estou a jogar com
as palavras – engolir.
Quando
vigoram, simultaneamente, a fragmentação partidária e a ideologia da Esquerda
vs Direita está encontrada a receita para a paralisia das políticas
económico-financeiras e das políticas públicas, desde o envelhecimento, a saúde
e a segurança social até ao atoleiro em que caiu na maioria dos países a escola
da pré-primária à pós-graduada. Não é para outra coisa que se preparam,
infelizmente, os partidos saídos das eleições de ontem em Espanha. Entre nós,
onde as eleições legislativas já estão ao virar da porta, o actual partido
central – o PS – prepara-se para imitar o PSOE (ou este imitar aquele) e tentar
governar sozinho enquanto dá uma mão à esquerda e outra à direita, conforme já
anunciou que irá fazer – nada mais, nada menos – no caso da chamada Lei de
Bases da Saúde. O oportunismo eleitoral actualmente dominante faz-me lembrar
uma imagem televisiva em que o actual primeiro-ministro português, pouco antes
das eleições de 2015, confessava ao jornalista que lhe perguntara se iria
aliar-se ao PSD: «Ainda se o líder fosse Rui Rio»…
III - OPINIÃO: Espanha, Vox e os benefícios
dos extremismos
E se os chamados “extremismos” não
fossem necessariamente um ataque à democracia, mas antes uma válvula de escape
dos próprios sistemas democráticos?
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 30 de Abril de 2019
Praticamente
não há alma que hoje em dia não suspire ou lacrimeje pelo estado deplorável a
que chegou a democracia mundial, com o crescimento generalizado daquilo a que
se chama “os extremismos”. E logo de seguida vem a lista que todos conhecemos,
com Trump à cabeça,
seguido de Bolsonaro, e depois Órban,
Salvini, Farage, a antiga Frente
Nacional ou o Vox, e, à esquerda, Tsipras ou o Podemos.
Longe de mim querer impedir o queixume, no qual também participo amiúde, mas
gostaria de propor uma interpretação alternativa: e se os chamados
“extremismos”, tanto à esquerda como à direita, não fossem necessariamente um
ataque à democracia, mas antes uma válvula de escape dos próprios sistemas
democráticos, que vai permitindo integrar na sua dinâmica o cada vez mais
elevado número de descontentes das sociedades ocidentais?
Se
esta minha hipótese valer, então “os extremismos” não são necessariamente
uma prova da decadência da democracia no mundo ocidental, mas antes uma prova
da sua resiliência, e da sua capacidade de sobreviver às suas próprias
convulsões. A minha tese é esta: se os Estados Unidos e o Brasil
ultrapassarem a retórica caceteira de Donald Trump e Jair Bolsonaro; se a
democracia grega sobreviver aos delírios do Syriza; se a Itália aguentar as
investidas de Matteo Salvini; se o Vox ou o Podemos forem integrados pelo
sistema político espanhol; se toda esta gente, enfim, for sendo substituída,
superada ou simplesmente assimilada em eleições democráticas, então não há
grandes razões para chorar pela democracia que se perdeu – pela simples razão
de que não se perdeu coisíssima nenhuma.
Significa isto que deveremos tolerar
sem suspiros, nem protestos, toda a espécie de radicalismos? Não, não significa nada disso. Aliás, eu não
me consigo imaginar a viver sem poder dizer mal do Bloco, do PCP ou do André
Ventura. Contudo, existe uma grande diferença entre discordar com veemência de
um determinado programa eleitoral ou do discurso demagógico de uma qualquer
figura, e questionar a sua legitimidade democrática, ou tratar as pessoas que
aderem a essa mensagem como “deploráveis”, para
utilizar o vocabulário clintoniano. Essa é a diferença que vai da
discordância à diabolização. A primeira é muito útil. A segunda não serve para
nada.
Quando
olhamos para as eleições espanholas e vemos a votação do Vox, é
difícil conceber que a Espanha tenha sido subitamente invadida por 10% de
franquistas amantes da ditadura, quando muitos deles são jovens que nasceram já
neste milénio. O problema é outro, é identitário, nacionalista e
contaminado pela
tentativa de independência da Catalunha, como é evidente. Existem,
com certeza, linhas vermelhas que devem ser traçadas, mas elas não estão nas
opiniões políticas quanto aos touros, à identidade de género ou ao papel dos
imigrantes – estão na preservação das instituições democráticas e nos pesos e
contrapesos de um regime.
Se
um qualquer partido, ou um qualquer político, tiver a tentação de mexer nos
alicerces do regime democrático – por exemplo, fortalecendo o poder executivo
ou limitando a acção dos tribunais –, aí está a pôr em causa o Estado de
Direito, e deve ser combatido por todos os meios. Fora disso, do amor à
Venezuela à recusa do imigrante, todas as opiniões devem ser democraticamente
admitidas, por muito repugnantes que nos pareçam. A democracia assim o exige. A
democracia precisa de opiniões tontas, para que os tontos nunca deixem de ser
democratas.
Jornalista
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