sexta-feira, 19 de abril de 2019

O país é muito ingrato



Os comentários sobre Cavaco raiam a demência e a total falta de classe de um povo mesquinho e palrador, que abocanha a mão que lhe estendeu o osso, ingrato em relação aos benefícios que dele recebeu em devida altura. Num dos programas “Gente que não sabe estar” de Ricardo Araújo Pereira, que, ao que parece, sabe, pois provoca risos alvares com as suas mistificações por sórdidas que sejam tantas vezes, senti vergonha pelo ódio que traduziu a sua réplica de Cavaco, pondo um creme dentífrico na boca para simular, abjectamente, baba a escorrer, enquanto lhe imitava a voz abafada de velho gagá em discurso de uma chalaça reles. Não, não gostei. Lembro-me de que Cavaco modernizou o país com o dinheiro de Bruxelas, e que o meu vencimento de então cresceu como nunca e isso foi bom, apesar da inflação. Admirei-lhe a coragem e gostava dos seus discursos sensatos. João Miguel Tavares revela nobreza ao apreciar-lhe as intervenções positivas hoje, quando podia mostrar-se indiferente ao que se vai passando de tanto mal no seu país de aventureirismo por mares desconhecidos, sempre, em vez de se estudar à mesa e se trabalhar mais racionalmente. Tavares elogia-o no que lhe parece certo, mas frontalmente ataca-o no que está errado – neste caso, uma mentira em que aquele pateticamente se deixou apanhar.
Quando se tem a função de formar governo e se exige paridade na escolha dos “géneros”, natural é que nos socorramos de figuras que conhecemos como competentes e nos podem apoiar e isso fez Cavaco também. Escusava de ter mentido, realmente ao referir, imprudentemente a sua isenção. Mas a maioria dos portugueses esquece esses primeiros anos de Cavaco Silva e odeia-o e troça-o por, corajosamente - julgo – embora com as debilidades da velhice – risíveis, ao que parece - se intrometer no que já não lhe diz respeito mas que ele supõe que sim, orgulhosamente só.
OPINIÃO
Pela boca morreu Cavaco
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 6 de Abril de 2019, 6:27
Eu não sou daqueles que acham que os antigos Presidentes da República devam estar condenados a vaguear como múmias pelo espaço público, muito recatados e em prudente silêncio, para não se salpicarem com a espuma dos dias, nem perturbarem a paz da pátria. Acho óptimo que falem quando lhes apetece, e Cavaco nem sequer tem falado mal: esteve bem quando protestou contra a não-recondução de Joana Marques Vidal à frente da Procuradoria-Geral da República; e esteve novamente bem na intervenção que fez esta semana, lembrando duas coisas: 1) que o dinheiro que o Estado perdeu com a descida do IVA na restauração e com o regresso às 35 horas foi dinheiro que depois lhe faltou para investir no Sistema Nacional de Saúde; 2) que a grande questão que deveria dominar o debate público em Portugal, e preocupar genuinamente a classe política, é esta: por que razão o país “está a cair para a lanterna vermelha” da Europa, mostrando-se incapaz de alcançar os níveis de crescimento de outros países intervencionados pela troika.
Tudo isto está certíssimo, e o país (a parte lúcida, pelo menos) agradece-lhe que seja lembrado. Só que depois há invariavelmente um momento infeliz, em que Cavaco dá um passo maior do que a perna – e está quase sempre relacionado com o puxar dos galões do passado, e com aquela mania absurda de alimentar a soberba do homem impoluto, em relação ao qual é preciso nascer duas vezes para alcançar tamanha honestidade. Isso já lhe correu mal várias vezes, mas Cavaco insiste, e por isso disse, a propósito do Familygate: “Fui verificar a composição dos meus três governos durante os dez anos em que fui primeiro-ministro e não detectei lá – espero não me ter enganado – nenhuma ligação familiar.”
Que ele se enganou já toda a gente sabia, mas a dimensão do engano foi crescendo à medida que os jornais foram investigando o passado dos governos de Cavaco. Após o trabalho do site Polígrafo, parece que estacionámos (até ver) nos 15 familiares. Nem sequer faltou a recuperação de uma capa antiga do semanário O Independente, com o título “A mulher do próximo”, onde se podia ler, em Fevereiro de 1992: “Discretamente, sem ninguém ver, eles decidiram usar o governo para dar emprego às respectivas senhoras. A mulher de Fernando Nogueira foi parar ao Ministério da Saúde. A de Dias Loureiro está na Cultura. Sofia Marques Mendes deu entrada na Agricultura. A senhora de Arlindo Cunha trabalha com Couto dos Santos. E a lista não acaba mais! É a história completa de como não há família que se perca neste governo.” O amor à família, como se vê, é antigo, e transversal aos partidos.
Assim sendo, temos que juntar à falta de vergonha dos socialistas a hipocrisia dos sociais-democratas, entre os quais Luís Marques Mendes, que anda na SIC a falar excelentemente destes temas, e que ainda há pouco tentou ser muito transparente ao abordar a situação da sua irmã e do seu pai, mas que, por azar, se esqueceu de referir a sua mulher – e custa a acreditar que não se recordasse da sua nomeação nos anos 90. Portanto, estou com Marcelo, que finalmente entendeu que há aqui um problema: “Quando a ética não chega, é preciso mudar a lei”. E se até o próprio António Costa (que também entendeu que há aqui um problema – iupi!) pediu isso mesmo no Parlamento, ao menos que se aproveite esta triste confusão para extrair daqui alguma coisa de útil para o país. É arranjar uma lei séria e bem feita, e acabar com o regabofe doméstico de uma vez por todas.
COMENTÁRIOS
Gustavo Garcia, 08.04.2019 10:07: Então Cavaco esteve bem ao dizer: "[...]o dinheiro que o Estado perdeu com a descida do IVA na restauração e com o regresso às 35 horas foi dinheiro que depois lhe faltou para investir no Sistema Nacional de Saúde[...]", é? Por que é que esta malta de direita só vê os gastos do Estado por um lado? Então e o dinheiro que o Estado perdeu com o "Fundo de Apoio à Gestão Incompetente de Bancos", FAGIB? Os €4.4 mil milhões enterrados no Novo Banco não chegariam para financiar o pessoal necessário no SNS com as 35 horas? Dariam, com certeza. Ao que parece estamos a falar de € 30 milhões. Dariam até para compensar a perda com a descida do IVA, uns míseros €180 milhões. Entre as duas coisas, vá uns €250 milhões? São 0,6%, repito 0,6%, do que foi enterrado num só banco. Tenha vergonha, Cavaco!
Lapso nas contas. São 6%. AInda assim, nem de perto as 35 horas ou a descida do IVA saem tão caras como o financiamento a bancos mal geridos.
RUI MACHADO DE FRIAS, BUCELAS 06.04.2019 23:41: Um país de faladores...! O problema põe-se de outra forma : Então um cidadão não tem o direito de ascender a um cargo público, como qualquer outro, só porque tem um familiar na alta roda da política ? E o critério do profissionalismo e da competência, não conta ? Ou só para lá vão os indivíduos que nem se comprometem, sequer, ser justos, honrados, cumpridores e competentes ? E é disto que faz falta ao país ! O resto, é aquilo de que estamos fartos ...
jose maria pacheco. Lisboa 06.04.2019 19:42: Caro JMT, não deixa de ser interessante que o PS tenha ido buscar o regabofe dos último anos do Cavaquismo para desculpar da pouca vergonha que agora tem tido. O mal, de facto, é o mesmo, embalados com os resultados da 1ª legislatura e com os 50,6% nas legislativas de 91, o PSD julgou-se DDT, tal como hoje acontece com o PS. O eleitorado, no entanto, não foi da mesma opinião e, em 1995, o PSD perdeu 17% de votos e 47 deputados e o PS subiu quase 15%. Se fosse ao PS reflectia nesse resultado e é por aí que devemos ir: Total transparência (e aí o papel da imprensa é fundamental, como foi no final do Cacaquismo) e deixar o eleitorado tirar conclusões, porque não há legislação que consiga cobrir todas as possíveis incompatibilidades, das mulheres, filhos, irmãos e outros parentes de César.

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