quinta-feira, 25 de abril de 2019

Há festa aqui, onde a Terra se acaba



A referência à 1ª Guerra, no texto de Raymond Aron que Salles da Fonseca transcreve, como sendo causa da instabilidade na França – e no mundo, afinal – lembrou-me o papel antibelicista, de movimentação febril, da personagem Jacques Thibault, herói na sua evolução de rebeldia contínua, numa família burguesa, junto de um pai rígido, um irmão – Antoine – humano e livre de preconceito, numa sociedade de amizade e de paixão, representada pelos dois irmãos – Daniel e Jenny Fontanin, mas também antagónica, do mundo adulto, que Mme de Fontanin, a mãe daqueles, de religião protestante expressava. «Les Thibault», um romance-fresco ou “roman fleuve”, de Roger Martin du Gard, que fez as delícias da minha adolescência, embora sobretudo nos três primeiros volumes da ficção romanesca e o seu Epílogo, os três volumes de “L’ÉTÉ 1914”, lidos mais distraidamente, a ficção substituída pela narrativa histórica acerca das movimentações e conceitos de pacifismo que traduziam certamente os pontos de vista de Martin du Gard, como do seu contemporâneo Raymond Aron. O comentário excelente de Adriano Lima esclarece politicamente esse pensamento pessimista sobre a França e da sua crise, que Salles da Fonseca expõe no seu artigo de chamada de atenção preocupada. Apesar de tudo, França é França, farol que não morrerá, mau grado os coletes coloridos e outras alarvidades a que assistimos hoje. Mas a TV5 traz-me programas de uma elegância e expressividade que julgo que tal pormenor de realização cultural, jamais permitirá o apagar das luzes que a França nos transmite. Oxalá E. Macron saiba segurar o seu barco, mau grado os percalços arruaceiros dos egoísmos gerais a que as ideias libertárias dos socialismos, existencialismos, hedonismos etc. vão gerando de anarquia grosseira – em conceito moralista, que, afinal de contas, bem podemos manifestar, na igualdade democrática concedida por este 25 de Abril, cada vez mais celebrado com o estridor de uma saudade imperecível, como “aquela triste e leda madrugada” do nosso Camões. Mas longe vá o agoiro. Amanhã os nossos "coletes" voltam à carga, em liberdade, reforçados por este "serão" de Abril , no 1º Canal.

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 25.04.19

DA PERTURBAÇÃO FRANCESA
Corroborando o que escrevi no último parágrafo do pequeno texto intitulado “Da Francofonia – a fronteira de Waterloo”, publicado em 21 de Abril de 2019, considero que a Nação Francesa anda perturbada.
Deixei subentender que haveria de me lançar na busca das razões – mais profundas ou mais superficiais, não especifiquei – dessa perturbação.
Não esperava, contudo, ter em Raymond Aron (cujas «Memórias» continuo a saborear) um auxiliar inesperado na identificação de uma circunstância que ignorava totalmente. Vem na pág. 62 da edição que venho lendo [i] e dali respigo o que chamou a minha atenção:
«Que outra guerra foi mais prolongada, cruel e estéril do que a de 1914-18? As paixões que a tinham legitimado, os jovens que tinham vinte anos em 1925 [ii], já não partilhavam delas, até lhes custava imaginá-las. A maioria de nós vivera esta guerra de longe, sem sofrer. Os próprios que a  tinham feito, ou os órfãos, detestavam-na sobretudo por não considerarem que as recompensas da vitória justificassem os sacrifícios. A revolta passava por um antimilitarismo que a filosofia de Alain [iii] transfigurava. Este antimilitarismo contribuiu, de qualquer maneira, para a desmoralização do Exército.
Estes sentimentos levaram ao comunismo, à vontade revolucionária ou à política de reconciliação com a Alemanha (hostilidade à ocupação da bacia do Ruhr, redução das indemnizações, seguidas no início dos anos 30 da evacuação antecipada da Renânia), ou ainda à recusa do serviço militar, ora sob a forma de objecção de consciência, ora como a de Alain (recusa de galões), ora como a do anarquismo.
Faz Aron entretanto uma meditação sobre as perspectivas do pacifismo do crente, do filósofo e do revolucionário mas creio mais pragmático meditarmos nós, aqui e agora, se a recusa dessa parte significativa da Nação Francesa em continuar a suportar sacrifícios não seria, antes do mais, a antecipação do «TUDO, JÁ!» que o pós-modernismo nos dá actualmente, no desapego de qualquer ética do dever perante o bem comum ou, mais remotamente, um revivalismo da ética platónica do prazer.»
E se, mais prosaicamente, apelidarmos essa atitude de pura irresponsabilidade, de cruel egoísmo, de ruptura de todo o sentimento nacionalista e de abandono da Pátria à sorte que o acaso lhe traga?
Meditemos…
Mas creio que será sobretudo aos nossos amigos franceses que competirá meditar mais profundamente do que o faço, eu que estou bem longe, onde a terra acaba e o mar começa.
Abril de 2019
Henrique Salles da Fonseca
[i] - GUERRA & PAZ, 1ª edição, Fevereiro de 2018
[ii] - Caso do próprio Aron que nascera em 1905
[iii] - Émile-Auguste Chartier

2 COMENTÁRIOS
Adriano Lima  25.04.2019  12:50: Estou completamente de acordo com a observação conclusiva do autor apoiando-se no pensamento de Raymond Aron. Fala-se ou pensa-se no eixo franco-alemão para a liderança superior dos destinos da União Europeia mas, por outro lado, questiona-se a legitimidade de semelhante propósito ou de o ter como um desígnio histórico inelutável. E com razão, porque a liderança da União Europeia deveria basear-se no respeito estrito aos mecanismos de representação democrática e não depender da preponderância deste ou daquele dos seus membros, embora a capacidade económica tenda a ser um factor desvirtuante da linearidade da igualdade democrática.
Mas basta olhar para o perfil dos dois anteriores presidentes franceses – Sarkosy e Hollande – para logo se duvidar da própria capacidade de a França poder ombrear com a Alemanha na gestão política da partilha dual dessa liderança.
O actual presidente dá sinais diferentes e é uma confortante promessa de futuro. Mas, por estranho que pareça, logo ele é precisamente o objecto de uma sanha reivindicativa e destruidora que não se verificou com os seus antecessores, que mais razão terão dado para a contestação social. Na verdade, a personalidade humana e política de Macron foi, e é, encarada como uma lufada de ar fresco quando, ao menos, se perspectiva a conveniência de uma paridade entre os dois principais membros da União. Ou existirá uma agenda secreta urdida para tolher o passo a Macron, sabe-se lá por que forças sem rosto que instrumentalizam os distúrbios sociais em França? Ou será apenas uma evidência “dessa atitude de pura irresponsabilidade, de cruel egoísmo, de ruptura de todo o sentimento nacionalista e de abandono da Pátria à sorte que o acaso lhe traga”, como escreve o Dr. Salles da Fonseca? Estou mais inclinado para a segunda explicação. Para tal, socorro-me da história, como o faz Aron. Louva-se Revolução Francesa pelo seu significado histórico e pelos ideais políticos que exportou, mas é impossível não esquecer os excessos e as violências assassinas contra a pessoa humana e as populações e os radicalismos e destemperos entre as várias facções na disputa do poder, pondo em causa os ideais do Iluminismo e a racionalidade dos princípios em que ela se baseou. Depois, não tardou que um poder autocrático encerrasse o capítulo da Revolução para logo a seguir pôr a Europa a ferro e fogo. Tudo em França, nada semelhante aconteceu em outros países europeus. Na verdade, o povo francês é um laboratório sociológico que se tem de visitar e analisar com atenção, porque o futuro colectivo da União Europeia o exige. Contrariamente ao que alguns pensarão, sinto-me mais descansado com os alemães.

 Henrique Salles da Fonseca  25.04.2019  12:58: Primo Henrique, adorei o texto.  Só tenho um comentário, que de resto já mencionei antes: escreve uma história “a sério”, garanto-te que a compro. Germano Jose Pinto Ribeiro de Salles

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