A análise do carácter é pecha antiga, e
a França também foi palco de escritores que se debruçaram sobre essa forma moralista
e simultaneamente literária de corrigir os costumes, talvez desabafando
frustrações próprias, de impertinências sofridas no contacto com os homens. Tal
foi La Bruyère, com o seu “Les Caractères”, inspirado nos Caracteres do grego Teofrasto, que, aliás, aquele começa por traduzir, e que é um
modelo de análise, enriquecido de cultura clássica, literária e filosófica. Do
seu livro extraio um passo, do capítulo “Do
Homem”, que talvez se aplique ao Donald
Trump das múltiplas metamorfoses, e simultaneamente é revelador de um jeito
psicanalítico muito curioso do escritor moralista que foi La Bruyère: “É difícil decidir se a irresolução torna o
homem mais infeliz do que desprezível; de igual modo, se há sempre mais
inconveniente em tomar uma má decisão do que em não tomar nenhuma. Um homem
inconstante não é um só homem, são vários: ele multiplica-se tantas vezes quantos
os novos gostos e maneiras diferentes que toma; ele é em cada momento o que não
era e vai ser em breve o que nunca foi: ele sucede-se a si mesmo…”
José Pacheco Pereira faz a sua
análise do homem caprichoso que me parece ser Donald Trump, em ataque pessoal violento, distinto do espírito
clássico de universalidade crítica, que La Bruyère encarna. Mas compreende-se.
A visão política informa hoje o pensamento crítico e JPP tem amplo conhecimento político que o
leva a repudiar Trump, embora
sentindo o efeito atractivo do seu poder “carismático”. Vários comentadores lhe
respondem, o comentador final – Ramalheira
–
repudia a pretensão de se analisar rebuscadamente um homem de outras paragens,
em vez de nos ficarmos pelas nossas, que requerem a nossa especial atenção. Dou-lhe
um pouco de razão, mas Pacheco
Pereira, parecendo ser moralista, já fez tudo o que tinha a fazer por cá,
entregando o país a uma esquerda, por falcatrua, seguidor, embora, ao que
parece, de ditames mais centristas. Nesse capítulo, está em paz, já tudo fez. O
seu papel agora é de mostrar a sua moral qb., por paradoxal que seja, aliada a uma cultura que nos extasia
a todos.
Sim, houve colaboração com os russos.
Sim, houve obstrução à Justiça
O relatório Mueller será sempre um
documento singular para um tratado que precisa de ser escrito nos nossos dias
intitulado “Como Se Destrói uma Democracia por Dentro”.
JOSÉ PACHECO PEREIRA PÚBLICO,
20 de Abril de 2019, 6:26
Já
me queixei disto e vou-me queixar outra vez: eu sou vítima do Trump. Sou
vítima do Trump, porque a política americana desde 2016 é a mais interessante
do mundo, a mais importante de seguir, a mais perigosa do mundo. Aquela em que
melhor se pode perceber o que é o carisma, o que é a política pós-pós-moderna,
a criatividade perversa, a degeneração interior da democracia, os mecanismos
científicos de manipulação das massas na época das “redes sociais”, a
autodestruição de um grande partido nacional pelo medo e pela gula, a tentativa
de governar em autocracia, sem respeito pela separação de poderes, sem limites
do “executivo”, a hipocrisia religiosa dos zelotas face ao poder, o ódio e o
ridículo como instrumentos para rebaixar o adversário, o papel da violência
sugerida e incentivada para destruir os laços sociais de vida em comum, a
arregimentação dos “nossos” contra os “deles”, a relativização absoluta da
verdade, a mentira e o abandono dos factos numa linguagem ficcional de slogans e
propaganda. George Orwell deveria conhecer Trump para escrever um segundo 1984.
Eis o catálogo. Como é que se pode esperar que eu encontre
qualquer forma de interesse nas vicissitudes políticas caseiras, feitas de
palha e nada, este disse, aquele não disse, este fez um inuendo, aquele fez um
contra-inuendo, esta fez um ataque a coisa nenhuma, aquele defendeu-se com uma
mão-cheia de nada e por aí adiante? Não devia, mas não consigo. Chega Trump e o
seu reino do mal e, com a diferença de horas, lá se vai a noite e a madrugada.
Agora,
é esse documento fabuloso que é o relatório Mueller, pelo menos na parte que foi divulgada, com páginas
cheias de linhas grossas a negro. Por detrás dessas linhas podem ter a certeza
que há muito mais e mais importantes coisas que virão a ser conhecidas. Estamos
mais no princípio do que no fim. Mas vale a pena ler tudo, é mesmo daqueles
documentos que prendem a atenção e a leitura sem parar, muito melhor do que
qualquer ficção política.
Com
a mesma pressa e ligeireza analítica com que nos primeiros dias se desvalorizou
a vitória democrática no Congresso, antes de se perceber que tudo mudara, agora
ficamos umas semanas com a síntese mentirosa do procurador Barr a desvalorizar
o relatório e as salvas de vitória com o mantra de Trump do “no collusion, no
obstruction”, nenhuma das coisas confirmadas pelo relatório nestes termos
propagandísticos. Pelo contrário, houve extensa colaboração com os russos,
aquilo a que hoje se chama “sinergias”, mas não houve provas suficientes para a
acusação de um crime. No entanto, vários colaboradores próximos de Trump vão para a cadeia exactamente
por terem mentido sobre os seus contactos com os russos. Coincidências. É só
esperar que um dia se abra o arquivo do GRU e do FSB, para então as partes
encaixarem entre si. E se Trump lhes escapar, os russos são meninos para fazer
“fugas” selectivamente. Nós sabemos e Trump também sabe.
E
houve obstrução, que Mueller atira para cima do Congresso, sabendo muito bem
que já será o novo Congresso democrático a decidir. O elo fraco da resistência
a Trump é o Partido Democrático, e não é certo o que vai acontecer. Mas
basta ler o relatório para se perceber a continuada tentativa de Trump de
impedir as investigações, e Mueller escreve, preto no branco, que não pode
exonerar o Presidente dessa acusação.
Depois,
há os detalhes, imensos detalhes. Os detalhes são onde habita o Diabo, e aqui é
uma confraria de diabos inteira que fica à solta. O relatório Mueller será sempre, por isso, um
documento singular para um tratado que precisa de ser escrito nos nossos dias
intitulado “Como Se Destrói Uma Democracia por Dentro”. Claro que há muitos precedentes, havia
inconsistências legais, definições do poder executivo ambíguas, contradições,
patologias da democracia americana, que são todas anteriores a Trump. Mas Trump
usou-as todas em seu proveito para instituir uma presidência autocrática,
acolitada por uma espécie de grand guignol, uma administração de gnomos
maldosos, dirigida, moldada, dominada, por uma personagem carismática
completamente amoral, capaz de fazer tudo o que acha que pode fazer sem pensar
duas vezes.
É
um erro considerar que Trump é um epifenómeno que passará depressa, uma
anomalia que o “sistema” engolirá nas próximas eleições. A palavra carisma é
muito mal usada por cá, mas é mesmo isso que Trump é, carismático, um tipo
intuitivo, criador, poiético, que revelou mais do que ninguém as fragilidades
da democracia no século XXI.
Mas
o relatório Mueller faz-lhe muita mossa. Não era preciso ser um génio da análise para se
perceber que vinha aí uma gigantesca pedra feita de detalhes e contexto que
caía em cima de Trump, de Barr, de Pence, de Jared, de Ivanka, dos
“trumpinhos”, de Sarah Sanders, de Kellyanne, e dos propagandistas da Fox News,
Hannity, Tucker, e do partido da vergonha, os republicanos. Eles vivem
na lama, e se calhar gostam dos salpicos, mas a pedra vem a caminho e é grande.
E
a pedra vai-se dissolver aos poucos, com cada detalhe fazendo o seu caminho
“revelador”, viral, moldando a cabeça das pessoas, umas (talvez poucas)
mudando-lhes a opinião, outras mobilizando-as para a necessidade da
“resistência”, e outras, talvez a maioria, dando-lhes consciência do perigo por
que o país está a passar com este homem à frente. Por isso mesmo, Trump tinha
razão quando disse sobre esta investigação: “I’m fucked.” Colunista
COMENTÁRIOS
Jonas Almeida, Stony
Brook NY, Marialva Beira Alta21.04.2019 23:34:
Caro
Pacheco Pereira, acho (simpaticamente) que o "I'm fucked" também
se aplica a si :-) (e a mim, e a nós). Recomendo-lhe vivamente a entrevista
ao camionista no recente documentário do HBO VICE "the future of
work" que me lembrou imenso o seu inesquecível "Os Abandonados".
Agora sobre a Democracia americana acho, como americano, que lhe escapa esta
se basear nas imensas incongruências e genialidades políticas ao nível do
estado para baixo. A federação é uma república, os estados, counties,
townships são democracias. Platão detestava a Pnyx. Trump não é maior ameaça
à Democracia do que as elites nordestinas à volta de Clinton - são a mesma
gente. O futuro do trabalho precisa de gente diferente e para lá chegar
qualquer palhaço serve.
desconfio
que o seu "problema" é ter-se apaixonado pelas américas no sentido
lato de novos horizontes de experimentação e excessos ocidentais fora do alcance
do racionalismo continental. Das duas filhas do iluminismo o racionalismo está
moribundo e o empirismo não é para si suficientemente universalista nas ilhas
britânicas nem na península escandinava ou nos vales helvéticos. Digamos que o
empirismo joga aí à defesa e JPP prefere vê-la com as asas abertas de uma águia
romana. Se as nações são narrativas colectivas vale bem a pena procurar em que
recôndito mais profundo encontrará as americanas. É difícil não ter de
mergulhar na terra de Mark Twain, William Faulkner e Tennessee Williams. Um
mergulho no mesmo individualismo com que os veteranos do Peleponeso e Maratona
seguravam a Pnyx.
Para
ser completamente claro: falta-lhe, desconfio, talvez conhecer o Sul que
receia, e o passado, a terra onde "The past is never dead. It's not even
past" - está obviamente convidado, aqui família, filhos e 16 anos de vida
no Tennessee, Carolina do Sul, Texas e Alabama. Como notam os historiadores,
a Democracia precisa do nacionalismo, e vice-versa. Para a ditadura qualquer
colonialismo serve.
nelsonfari, Portela-Loures 22.04.2019
11:22: Muito bem,
Jonas. Para falar é preciso conhecer. Xeque-Mate. 10 a zero. O rei está morto.
José Sousa, 20.04.2019 22:09: Sendo Trump um produto da democracia americana, que
chegou ao fim das eleições para defrontar a Clinton, e venceu-a, este tipo
de artigo não traz nada de novo. O importante é saber como as
democracias e republicanos vão atrair melhores candidatos. Mais preparados,
mais íntegros, mais independentes, sábios e com mais carisma. Olhando para as
actuais alternativas, é fácil deduzir que Trump vai ser reeleito. E isto é que
é o verdadeiro drama. Os democratas viraram-se para os mais radicais e suas
agendas de defesa de unicórnios, microcausas e dividir para reinar. Gente com
quem não se consegue dialogar, trocar ideias e opiniões. E os Republicanos
paralisados sem saber o que fazer com Trump. Os eleitores simplesmente já não
toleram os velhos políticos e sua agenda de generalidades.
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira
Alta 22.04.2019 00:19: Caro José, é
muito cedo para a sua conclusão da reeleição. No resto dou-lhe inteiramente razão
e felicito-o pela perspicácia. Há candidatos fundamentalmente novos, muito
mais diferentes de Clinton do que Clinton era de Trump. O debate público
está mesmo no início, temos de os ouvir com atenção primeiro. Se se quiser
preparar sugiro que comece por Kamala Harris, a voz de uma costa Oeste
talvez a dar o passo que lhe cabe com a migração do centro de gravidade
tecnológica para Oeste. Repare que é a oeste que vemos as experiências mais
maduras de rendimentos mínimos, serviços sociais universais, e, talvez o mais
importante, de Democracia directa. Na Califórnia é parte da sua constituição da
república ("California Republic" é o nome do estado) desde 1911.
Tiago
Vasconcelos, Amsterdam 20.04.2019 21:11:O Pacheco Pereira está, como já nos tem habituado, a
ver mal o filme. O Trump é, realmente, um efeito, não uma causa. E é um
efeito sobretudo da lunaticidade de uma esquerda radical norte-americana cujo
justiceirismo social, policiamento demente da linguagem, e crença pueril na
bondade intrínseca da imigração ilegal logrou contaminar as redacções dos
grandes media, os departamentos de "humanidades" das universidades, e
até os departamentos de recursos humanos nas grande corporações. Se o
Pacheco Pereira estivesse realmente bem informado, saberia que há décadas que
não havia tão pouca liberdade de expressão nos EUA. E que tal falta de
liberdade nada (repito, nada) tem a ver com Trump.
Joao, Portugal 20.04.2019 22:53: Voltei a ler o comentário ... está quase tudo
sintetizado aí (eu por acaso gosto do Pacheco e de como escreve, mas isso é
outro assunto), desde o policiamento demente da linguagem à crença pueril da
bondade da imigração ilegal... certeiro.
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira
Alta 22.04.2019 01:07: bem eu vivo aqui,
obviamente frequento ambientes académicos e "liberais" (e os outros
tb) e não noto nenhuma diminuição da liberdade de expressão. Há é gente que
perde argumentos com futuro e se entretém com os politicamente correctos da
moda. As elites à esquerda estão tão perdidas como as à direita. É tudo. Cada
um verdadeiramente diz o que quer na rua, não há artigos 13 no horizonte, e até
a recuperação da net neutrality já tem bill a caminho do congresso.
Espectro, Matosinhos 20.04.2019 17:28:
Trump
é - sempre o foi - um indivíduo completamente amoral. Claro que a
"moral" é um conceito que tem tantos conteúdos, quase, como seres
humanos há, à face da Terra. Contudo, para conseguirmos viver em sociedade, há um
denominador comum que não deve ser ultrapassado. Acontece que Trump
ultrapassa tudo isso pelo lado que a cada momento mais lhe convier. Numa
palavra: É um canalha, à boa maneira dos cowboys. Subscrevo, portanto, ponto
por ponto, todas as acusações de Pacheco Pereira. LOL
Eme R, Bruxelles 20.04.2019 17:26: Obviamente, numa verdadeira democracia e num estado de
direito, Trump já teria sido “impeached” e estaria provavelmente preso. Além de
incompetente, acima da lei (até agora) e amoral. JPP tem toda a razão, quanto a
mim, excepto em relação a Trump ser carismático. Embora tudo o que diga (e
faça) seja aquilo que (aqueles que pensa ser) os seus eleitores querem ouvir,
suscitando a sua admiração, ele carece no entanto de qualquer magnetismo
pessoal. Antes pelo contrário, é repugnante.
PdellaF, Terra 20.04.2019 20:01: É carismático na medida que, apesar de grotesco,
ganhou as eleições e tem uma alta taxa de aprovação entre o eleitorado dos EUA,
que é o que interessa aqui.
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva
Beira Alta 22.04.2019 00:40: Eme,
o impeachment é um julgamento político, não um julgamento criminal. O congresso
(que é o governo) e o senado, além de terem de o querer, teriam de ter uma
alternativa que soubessem ter o apoio dos cidadãos americanos. Mais fácil
esperar por 2020, estamos a pouco mais de 1 ano. As "amizades" com a
Russia preocupam muito menos do que as amizades com a Arábia Saudita.
Interferência em eleições era uma especialidade americana, agora os outros
também sabem fazer. Não me parece motivo de impeachment. Até ver Trump não fez
nada que chegasse, nem remotamente, aos calcanhares de gente presidentes como
Andrew Johnson e a democracia americana saíu reforçada da prova. A retracção da
América dos palcos geoestratégicos parece deixar-vos mais em pânico do que aos
americanos. Isso sim, é intrigante.
Fernando Costa, Lisboa 20.04.2019
16:25: Não tem
nada a ver com Trump, mas sim com a personalidade de JPP e similares: já
repararam, que a malta de extrema esquerda, ou aquela que por lá passou (JPP),
tem muito esta mania discursiva de afirmar os factos veementemente dizendo SIM,
isto e aquilo, SIM aquilo e aqueloutro. Normalmente são sempre duas afirmações
seguidas. Deve ser um tique intimidatório, que na verdade resulta com muita
gente...
José Cruz Magalhaes, Lisboa 20.04.2019
15:30: A presidência
de Trump não pode ser dissociada de tudo o que JPP assinala neste artigo. A
questão será sempre a de saber se a fragilidade das democracias reside mais na
cedência aos presidencialismos que se estribam no espectáculo do afrontamento
contínuo ,ou na fragilidade da construção de um controlo credível de
parlamentos e senados.
ramalheira63: Se esta malta
se preocupasse mais com o que se passa em Portugal e deixasse o que se passa
nos US para os americanos resolverem, entre outros casos, e se fossem honestos
nas suas preocupações sobre Portugal, os portugueses ficariam muito agradecidos.
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