quarta-feira, 24 de abril de 2019

Moralismos, paradoxos


A análise do carácter é pecha antiga, e a França também foi palco de escritores que se debruçaram sobre essa forma moralista e simultaneamente literária de corrigir os costumes, talvez desabafando frustrações próprias, de impertinências sofridas no contacto com os homens. Tal foi La Bruyère, com o seu “Les Caractères”, inspirado nos Caracteres do grego Teofrasto, que, aliás, aquele começa por traduzir, e que é um modelo de análise, enriquecido de cultura clássica, literária e filosófica. Do seu livro extraio um passo, do capítulo “Do Homem”, que talvez se aplique ao Donald Trump das múltiplas metamorfoses, e simultaneamente é revelador de um jeito psicanalítico muito curioso do escritor moralista que foi La Bruyère: “É difícil decidir se a irresolução torna o homem mais infeliz do que desprezível; de igual modo, se há sempre mais inconveniente em tomar uma má decisão do que em não tomar nenhuma. Um homem inconstante não é um só homem, são vários: ele multiplica-se tantas vezes quantos os novos gostos e maneiras diferentes que toma; ele é em cada momento o que não era e vai ser em breve o que nunca foi: ele sucede-se a si mesmo…”
José Pacheco Pereira faz a sua análise do homem caprichoso que me parece ser Donald Trump, em ataque pessoal violento, distinto do espírito clássico de universalidade crítica, que La Bruyère encarna. Mas compreende-se. A visão política informa hoje o pensamento crítico e JPP tem amplo conhecimento político que o leva a repudiar Trump, embora sentindo o efeito atractivo do seu poder “carismático”. Vários comentadores lhe respondem, o comentador final – Ramalheira – repudia a pretensão de se analisar rebuscadamente um homem de outras paragens, em vez de nos ficarmos pelas nossas, que requerem a nossa especial atenção. Dou-lhe um pouco de razão, mas Pacheco Pereira, parecendo ser moralista, já fez tudo o que tinha a fazer por cá, entregando o país a uma esquerda, por falcatrua, seguidor, embora, ao que parece, de ditames mais centristas. Nesse capítulo, está em paz, já tudo fez. O seu papel agora é de mostrar a sua moral qb., por paradoxal que seja, aliada a uma cultura que nos extasia a todos.
Sim, houve colaboração com os russos. Sim, houve obstrução à Justiça
O relatório Mueller será sempre um documento singular para um tratado que precisa de ser escrito nos nossos dias intitulado “Como Se Destrói uma Democracia por Dentro”.
JOSÉ PACHECO PEREIRA            PÚBLICO, 20 de Abril de 2019, 6:26
Já me queixei disto e vou-me queixar outra vez: eu sou vítima do Trump. Sou vítima do Trump, porque a política americana desde 2016 é a mais interessante do mundo, a mais importante de seguir, a mais perigosa do mundo. Aquela em que melhor se pode perceber o que é o carisma, o que é a política pós-pós-moderna, a criatividade perversa, a degeneração interior da democracia, os mecanismos científicos de manipulação das massas na época das “redes sociais”, a autodestruição de um grande partido nacional pelo medo e pela gula, a tentativa de governar em autocracia, sem respeito pela separação de poderes, sem limites do “executivo”, a hipocrisia religiosa dos zelotas face ao poder, o ódio e o ridículo como instrumentos para rebaixar o adversário, o papel da violência sugerida e incentivada para destruir os laços sociais de vida em comum, a arregimentação dos “nossos” contra os “deles”, a relativização absoluta da verdade, a mentira e o abandono dos factos numa linguagem ficcional de slogans e propaganda. George Orwell deveria conhecer Trump para escrever um segundo 1984.
Eis o catálogo. Como é que se pode esperar que eu encontre qualquer forma de interesse nas vicissitudes políticas caseiras, feitas de palha e nada, este disse, aquele não disse, este fez um inuendo, aquele fez um contra-inuendo, esta fez um ataque a coisa nenhuma, aquele defendeu-se com uma mão-cheia de nada e por aí adiante? Não devia, mas não consigo. Chega Trump e o seu reino do mal e, com a diferença de horas, lá se vai a noite e a madrugada.
Agora, é esse documento fabuloso que é o relatório Mueller, pelo menos na parte que foi divulgada, com páginas cheias de linhas grossas a negro. Por detrás dessas linhas podem ter a certeza que há muito mais e mais importantes coisas que virão a ser conhecidas. Estamos mais no princípio do que no fim. Mas vale a pena ler tudo, é mesmo daqueles documentos que prendem a atenção e a leitura sem parar, muito melhor do que qualquer ficção política.
Com a mesma pressa e ligeireza analítica com que nos primeiros dias se desvalorizou a vitória democrática no Congresso, antes de se perceber que tudo mudara, agora ficamos umas semanas com a síntese mentirosa do procurador Barr a desvalorizar o relatório e as salvas de vitória com o mantra de Trump do “no collusion, no obstruction”, nenhuma das coisas confirmadas pelo relatório nestes termos propagandísticos. Pelo contrário, houve extensa colaboração com os russos, aquilo a que hoje se chama “sinergias”, mas não houve provas suficientes para a acusação de um crime. No entanto, vários colaboradores próximos de Trump vão para a cadeia exactamente por terem mentido sobre os seus contactos com os russos. Coincidências. É só esperar que um dia se abra o arquivo do GRU e do FSB, para então as partes encaixarem entre si. E se Trump lhes escapar, os russos são meninos para fazer “fugas” selectivamente. Nós sabemos e Trump também sabe.
E houve obstrução, que Mueller atira para cima do Congresso, sabendo muito bem que já será o novo Congresso democrático a decidir. O elo fraco da resistência a Trump é o Partido Democrático, e não é certo o que vai acontecer. Mas basta ler o relatório para se perceber a continuada tentativa de Trump de impedir as investigações, e Mueller escreve, preto no branco, que não pode exonerar o Presidente dessa acusação.
Depois, há os detalhes, imensos detalhes. Os detalhes são onde habita o Diabo, e aqui é uma confraria de diabos inteira que fica à solta. O relatório Mueller será sempre, por isso, um documento singular para um tratado que precisa de ser escrito nos nossos dias intitulado “Como Se Destrói Uma Democracia por Dentro”. Claro que há muitos precedentes, havia inconsistências legais, definições do poder executivo ambíguas, contradições, patologias da democracia americana, que são todas anteriores a Trump. Mas Trump usou-as todas em seu proveito para instituir uma presidência autocrática, acolitada por uma espécie de grand guignol, uma administração de gnomos maldosos, dirigida, moldada, dominada, por uma personagem carismática completamente amoral, capaz de fazer tudo o que acha que pode fazer sem pensar duas vezes.
É um erro considerar que Trump é um epifenómeno que passará depressa, uma anomalia que o “sistema” engolirá nas próximas eleições. A palavra carisma é muito mal usada por cá, mas é mesmo isso que Trump é, carismático, um tipo intuitivo, criador, poiético, que revelou mais do que ninguém as fragilidades da democracia no século XXI.
Mas o relatório Mueller faz-lhe muita mossa. Não era preciso ser um génio da análise para se perceber que vinha aí uma gigantesca pedra feita de detalhes e contexto que caía em cima de Trump, de Barr, de Pence, de Jared, de Ivanka, dos “trumpinhos”, de Sarah Sanders, de Kellyanne, e dos propagandistas da Fox News, Hannity, Tucker, e do partido da vergonha, os republicanos. Eles vivem na lama, e se calhar gostam dos salpicos, mas a pedra vem a caminho e é grande.
E a pedra vai-se dissolver aos poucos, com cada detalhe fazendo o seu caminho “revelador”, viral, moldando a cabeça das pessoas, umas (talvez poucas) mudando-lhes a opinião, outras mobilizando-as para a necessidade da “resistência”, e outras, talvez a maioria, dando-lhes consciência do perigo por que o país está a passar com este homem à frente. Por isso mesmo, Trump tinha razão quando disse sobre esta investigação: “I’m fucked.”     Colunista
COMENTÁRIOS
Jonas Almeida,   Stony Brook NY, Marialva Beira Alta21.04.2019 23:34: Caro Pacheco Pereira, acho (simpaticamente) que o "I'm fucked" também se aplica a si :-) (e a mim, e a nós). Recomendo-lhe vivamente a entrevista ao camionista no recente documentário do HBO VICE "the future of work" que me lembrou imenso o seu inesquecível "Os Abandonados". Agora sobre a Democracia americana acho, como americano, que lhe escapa esta se basear nas imensas incongruências e genialidades políticas ao nível do estado para baixo. A federação é uma república, os estados, counties, townships são democracias. Platão detestava a Pnyx. Trump não é maior ameaça à Democracia do que as elites nordestinas à volta de Clinton - são a mesma gente. O futuro do trabalho precisa de gente diferente e para lá chegar qualquer palhaço serve.
desconfio que o seu "problema" é ter-se apaixonado pelas américas no sentido lato de novos horizontes de experimentação e excessos ocidentais fora do alcance do racionalismo continental. Das duas filhas do iluminismo o racionalismo está moribundo e o empirismo não é para si suficientemente universalista nas ilhas britânicas nem na península escandinava ou nos vales helvéticos. Digamos que o empirismo joga aí à defesa e JPP prefere vê-la com as asas abertas de uma águia romana. Se as nações são narrativas colectivas vale bem a pena procurar em que recôndito mais profundo encontrará as americanas. É difícil não ter de mergulhar na terra de Mark Twain, William Faulkner e Tennessee Williams. Um mergulho no mesmo individualismo com que os veteranos do Peleponeso e Maratona seguravam a Pnyx.
Para ser completamente claro: falta-lhe, desconfio, talvez conhecer o Sul que receia, e o passado, a terra onde "The past is never dead. It's not even past" - está obviamente convidado, aqui família, filhos e 16 anos de vida no Tennessee, Carolina do Sul, Texas e Alabama. Como notam os historiadores, a Democracia precisa do nacionalismo, e vice-versa. Para a ditadura qualquer colonialismo serve.
nelsonfari, Portela-Loures 22.04.2019 11:22: Muito bem, Jonas. Para falar é preciso conhecer. Xeque-Mate. 10 a zero. O rei está morto.
José Sousa, 20.04.2019 22:09: Sendo Trump um produto da democracia americana, que chegou ao fim das eleições para defrontar a Clinton, e venceu-a, este tipo de artigo não traz nada de novo. O importante é saber como as democracias e republicanos vão atrair melhores candidatos. Mais preparados, mais íntegros, mais independentes, sábios e com mais carisma. Olhando para as actuais alternativas, é fácil deduzir que Trump vai ser reeleito. E isto é que é o verdadeiro drama. Os democratas viraram-se para os mais radicais e suas agendas de defesa de unicórnios, microcausas e dividir para reinar. Gente com quem não se consegue dialogar, trocar ideias e opiniões. E os Republicanos paralisados sem saber o que fazer com Trump. Os eleitores simplesmente já não toleram os velhos políticos e sua agenda de generalidades.
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira Alta 22.04.2019 00:19: Caro José, é muito cedo para a sua conclusão da reeleição. No resto dou-lhe inteiramente razão e felicito-o pela perspicácia. Há candidatos fundamentalmente novos, muito mais diferentes de Clinton do que Clinton era de Trump. O debate público está mesmo no início, temos de os ouvir com atenção primeiro. Se se quiser preparar sugiro que comece por Kamala Harris, a voz de uma costa Oeste talvez a dar o passo que lhe cabe com a migração do centro de gravidade tecnológica para Oeste. Repare que é a oeste que vemos as experiências mais maduras de rendimentos mínimos, serviços sociais universais, e, talvez o mais importante, de Democracia directa. Na Califórnia é parte da sua constituição da república ("California Republic" é o nome do estado) desde 1911.
Tiago Vasconcelos, Amsterdam 20.04.2019 21:11:O Pacheco Pereira está, como já nos tem habituado, a ver mal o filme. O Trump é, realmente, um efeito, não uma causa. E é um efeito sobretudo da lunaticidade de uma esquerda radical norte-americana cujo justiceirismo social, policiamento demente da linguagem, e crença pueril na bondade intrínseca da imigração ilegal logrou contaminar as redacções dos grandes media, os departamentos de "humanidades" das universidades, e até os departamentos de recursos humanos nas grande corporações. Se o Pacheco Pereira estivesse realmente bem informado, saberia que há décadas que não havia tão pouca liberdade de expressão nos EUA. E que tal falta de liberdade nada (repito, nada) tem a ver com Trump.
Joao, Portugal 20.04.2019 22:53: Voltei a ler o comentário ... está quase tudo sintetizado aí (eu por acaso gosto do Pacheco e de como escreve, mas isso é outro assunto), desde o policiamento demente da linguagem à crença pueril da bondade da imigração ilegal... certeiro.
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira Alta 22.04.2019 01:07: bem eu vivo aqui, obviamente frequento ambientes académicos e "liberais" (e os outros tb) e não noto nenhuma diminuição da liberdade de expressão. Há é gente que perde argumentos com futuro e se entretém com os politicamente correctos da moda. As elites à esquerda estão tão perdidas como as à direita. É tudo. Cada um verdadeiramente diz o que quer na rua, não há artigos 13 no horizonte, e até a recuperação da net neutrality já tem bill a caminho do congresso.
Espectro, Matosinhos 20.04.2019 17:28: Trump é - sempre o foi - um indivíduo completamente amoral. Claro que a "moral" é um conceito que tem tantos conteúdos, quase, como seres humanos há, à face da Terra. Contudo, para conseguirmos viver em sociedade, há um denominador comum que não deve ser ultrapassado. Acontece que Trump ultrapassa tudo isso pelo lado que a cada momento mais lhe convier. Numa palavra: É um canalha, à boa maneira dos cowboys. Subscrevo, portanto, ponto por ponto, todas as acusações de Pacheco Pereira. LOL
Eme R, Bruxelles 20.04.2019 17:26: Obviamente, numa verdadeira democracia e num estado de direito, Trump já teria sido “impeached” e estaria provavelmente preso. Além de incompetente, acima da lei (até agora) e amoral. JPP tem toda a razão, quanto a mim, excepto em relação a Trump ser carismático. Embora tudo o que diga (e faça) seja aquilo que (aqueles que pensa ser) os seus eleitores querem ouvir, suscitando a sua admiração, ele carece no entanto de qualquer magnetismo pessoal. Antes pelo contrário, é repugnante.
PdellaF, Terra 20.04.2019 20:01: É carismático na medida que, apesar de grotesco, ganhou as eleições e tem uma alta taxa de aprovação entre o eleitorado dos EUA, que é o que interessa aqui.
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira Alta 22.04.2019 00:40: Eme, o impeachment é um julgamento político, não um julgamento criminal. O congresso (que é o governo) e o senado, além de terem de o querer, teriam de ter uma alternativa que soubessem ter o apoio dos cidadãos americanos. Mais fácil esperar por 2020, estamos a pouco mais de 1 ano. As "amizades" com a Russia preocupam muito menos do que as amizades com a Arábia Saudita. Interferência em eleições era uma especialidade americana, agora os outros também sabem fazer. Não me parece motivo de impeachment. Até ver Trump não fez nada que chegasse, nem remotamente, aos calcanhares de gente presidentes como Andrew Johnson e a democracia americana saíu reforçada da prova. A retracção da América dos palcos geoestratégicos parece deixar-vos mais em pânico do que aos americanos. Isso sim, é intrigante.
Fernando Costa, Lisboa 20.04.2019 16:25: Não tem nada a ver com Trump, mas sim com a personalidade de JPP e similares: já repararam, que a malta de extrema esquerda, ou aquela que por lá passou (JPP), tem muito esta mania discursiva de afirmar os factos veementemente dizendo SIM, isto e aquilo, SIM aquilo e aqueloutro. Normalmente são sempre duas afirmações seguidas. Deve ser um tique intimidatório, que na verdade resulta com muita gente...
José Cruz Magalhaes, Lisboa 20.04.2019 15:30: A presidência de Trump não pode ser dissociada de tudo o que JPP assinala neste artigo. A questão será sempre a de saber se a fragilidade das democracias reside mais na cedência aos presidencialismos que se estribam no espectáculo do afrontamento contínuo ,ou na fragilidade da construção de um controlo credível de parlamentos e senados.
ramalheira63: Se esta malta se preocupasse mais com o que se passa em Portugal e deixasse o que se passa nos US para os americanos resolverem, entre outros casos, e se fossem honestos nas suas preocupações sobre Portugal, os portugueses ficariam muito agradecidos.

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