quarta-feira, 10 de abril de 2019

Uma página clássica



Do historiador grego Tucídides (460 a. C. – 400 a. C9), de admirável precisão na análise dos actos humanos, de uma qualidade psicológica e uma perspicácia narrativa que provam quanto a Grécia foi realmente berço do humanismo e do classicismo, termo este significativo de “de primeira classe”, que promoveu os escritores gregos da Grécia Antiga ao estatuto de verdadeiros clássicos, primeiros do mundo ocidental. Ao lê-lo, percebe-se que, afinal, o ser humano pouco evoluiu nas suas astúcias e tácticas de domínio e na crueldade das suas relações selváticas com os outros seres humanos. Um retrato de universal dimensão, de permanente actualidade.
Email sobre a Guerra do Peloponeso em tradução de David Marcelo -  blog “A BIGORNA”
(Enviado por João Sena):

REVOLUÇÃO Tucídides - A Guerra do Peloponeso, cap. X, Quinto ano da guerra – Julgamento e execução dos Plateenses – Revolução da Corcira 
Foi tremendamente sangrenta a marcha da revolução, e, por ser uma das primeiras a ocorrer, a impressão causada foi enorme. Mais tarde, pode dizer-se, todo o mundo helénico se achou em convulsão. Todas as lutas eram desencadeadas pelos chefes populares, com a finalidade de chamar os Atenienses, e, pelos dos aristocratas, para facilitar a entrada dos Espartanos. Em tempo de paz, não teria havido nem o pretexto nem a vontade de fazer semelhantes convites, mas em guerra, quando cada partido podia contar com uma aliança para causar o máximo de danos aos seus adversários e trazer aos próprios as correspondentes vantagens, as oportunidades para fazer intervir os estrangeiros nunca faltaram aos partidos revolucionários. Os sofrimentos que as revoluções causaram às cidades foram múltiplos e terríveis, tais como sucederam e sempre sucederão enquanto a natureza humana for como é, embora oscilem entre formas cruéis e mais moderadas e variem quanto aos seus sintomas, consoante a diversidade de cada caso particular. Em tempo de paz e de prosperidade, os estados e os indivíduos têm melhores sentimentos, porque não se encontram, subitamente, confrontados com necessidades imperiosas. Mas a guerra impede a fácil satisfação das necessidades do dia-a-dia, revelando-se um mestre da violência que arrasta o carácter dos homens para o nível da sua fortuna. Deste modo, a revolução seguiu o seu curso, de cidade em cidade, e, nos locais onde chegou mais tarde, por causa do que tinham ouvido contar que tinha sido feito antes, levaram ainda mais longe o refinamento das suas acções, como ficou patente através da astúcia utilizada e do grau de atrocidade das suas represálias. Das palavras houve que modificar o seu significado normal, para tomarem aquele que agora lhes é dado. A audácia selvagem passou a ser considerada como a coragem de um leal aliado; a prudente hesitação como traiçoeira cobardia; a moderação como cobertura dos seres efeminados; a capacidade para ver todos os lados duma questão como inépcia para agir em qualquer deles; a oculta conspiração como justificada forma de autodefesa. Ser bem-sucedido numa intriga era sinal de que se possuía uma mente astuta, e, descobrir a existência de uma conspiração a prova de se ser ainda mais astuto. Em contrapartida, tentar, em qualquer destas situações, evitar que as mesmas tivessem lugar era atentar contra o respectivo partido e mostrar medo dos adversários. Em suma, prevenir uma intenção criminosa ou sugerir a ideia de um crime onde ele não existia eram situações igualmente louváveis. Mesmo os laços familiares provavam ser mais débeis do que a ligação partidária, porque era maior a disponibilidade dos que se uniam desta forma para, sem quaisquer escrúpulos, fazer o que quer que fosse. É que estas associações não têm em vista os benefícios derivados de instituições estabelecidas, sendo sim formadas pela ambição de destruir as existentes. Além disso, a confiança dos seus membros uns nos outros fundava-se menos numa crença religiosa do que na cumplicidade decorrente dos crimes cometidos. As propostas leais de um adversário eram encaradas com desconfiadas precauções pela mais forte das duas partes e não com generosa confiança. A vingança era tida em mais alto apreço do que a autodefesa. As promessas de reconciliação, sendo apenas declaradas, em qualquer dos lados, para resolver uma situação de momentânea dificuldade, só se mantinham válidas enquanto o recurso a outra forma de violência não estivesse disponível. Mas logo que a oportunidade surgia, o primeiro que a soubesse aproveitar e conseguisse apanhar o inimigo desprevenido achava esta pérfida vingança mais doce do que uma vitória leal, uma vez que, exceptuando as questões de segurança, o sucesso através da astúcia e da traição conferiam o galardão próprio duma inteligência superior.
2 Na verdade, os homens estão, geralmente, mais dispostos a considerar um patife inteligente do que um simplório honesto, tendo tanta vergonha de ser como o segundo como orgulho em ser como o primeiro. A causa de toda esta malevolência era a volúpia do poder que nascia da cobiça e da ambição. E destas paixões procedia a violência dos partidos uma vez empenhados na contenda. Os líderes das cidades, cada um deles provido do mais esperançoso programa político – de um lado batendo-se pela igualdade de direitos do povo, do outro prometendo uma aristocracia moderada –, embora afirmassem defender os interesses públicos, procuravam era encontrar formas de obter vantagens pessoais, e, não recuando perante quaisquer meios na sua luta pela supremacia, entregavam-se aos mais ominosos excessos. Nos seus actos de vingança, foram ainda mais longe, não se detendo onde a justiça ou o bem do estado o exigiam, fazendo dos caprichos momentâneos do partido o seu único critério e usando com igual prontidão a condenação injusta ou a autoridade da força para satisfazer os ódios da ocasião. Deste modo, enquanto a religião não obrigava ninguém no seio dos partidos, já o emprego de frases plenas de razoabilidade para atingir fins condenáveis era atitude tida como muito respeitável. Enquanto isto se passava, a parte moderada dos cidadãos ia perecendo entre os dois partidos, ou porque se não juntava às disputas em curso, ou porque a inveja não permitiria que escapassem. Assim, todas as formas de iniquidade criaram raízes nos países helénicos, por causa da agitação revolucionária. A ancestral simplicidade, na qual a honra tanto contava, foi ridicularizada e desapareceu, dividindo-se a sociedade em campos, nos quais nenhum homem confiava no seu semelhante. Para pôr um fim a este estado de coisas, não havia promessa em que se pudesse fazer fé nem juramento capaz de inspirar respeito. Todos os partidos faziam os seus cálculos partindo do princípio de que não havia esperança na instituição de normas permanentes, pelo que acreditavam mais numa autodefesa do que em qualquer fórmula que implicasse confiar noutras pessoas. Nesta luta, os possuidores de uma inteligência vulgar eram os mais bem sucedidos. Preocupados com as suas próprias deficiências e com a perspicácia dos seus opositores, temiam ser batidos no jogo de palavras e ser surpreendidos pelas combinações dos seus mais versáteis adversários. Por estas razões, preferiam recorrer mais atrevidamente à acção, enquanto os seus opositores, pensando, arrogantemente, que se aperceberiam a tempo de tudo quanto estivesse para acontecer, e que, portanto, não era necessário assegurar pela acção aquilo que a política estabelecera, muitas vezes tombaram vítimas da sua falta de precaução. É claro que foi a Corcira quem deu os primeiros exemplos da maior parte dos crimes a que aludimos: das vinganças exercidas, quando chegou a sua hora, pelos governados que jamais haviam experimentado um tratamento equitativo ou que nada receberam senão a insolência dos seus governantes; das iníquas atitudes daqueles que desejaram libertar-se da sua acostumada pobreza e ardentemente cobiçaram os haveres dos seus vizinhos; e, por fim, dos selvagens e impiedosos excessos para que os homens que deram início à revolta – não com um espírito de classe, mas de partido –, se deixaram arrastar pelas suas ingovernáveis paixões. Na confusão para que a vida das cidades foi agora lançada, a natureza humana – sempre propensa a rebelar-se contra a lei, e, sendo, agora, a ela superior – patenteia alegremente a sua desgovernada paixão, indiferente ao respeito pela justiça e inimiga de todas as formas de superioridade. Só o poder fatal da inveja tornou possível à vingança alcandorar-se acima da religião e o ganho acima da justiça. Na verdade, na prossecução da sua vingança, os homens aceitam, com demasiada frequência, dar o exemplo de revogar as leis gerais a que todos, de igual modo, podem recorrer, para buscar a salvação na adversidade, em vez de as deixarem subsistir até ao dia em que, encontrando-se em perigo, lhes podem ser necessárias.
Tradução de David Martelo

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