segunda-feira, 22 de abril de 2019

Mesmo assim



O meu amor pela França ultrapassa sentimentos de incompreensão ou repulsa gerados por tantas vilezas que se cometem a cada passo, como essa a propósito dos combustíveis, em manifestações de rua que provam quanto a democracia, mau grado a nobreza dos ideais que a motivaram, em Revolução célebre, farol de tão largas mudanças ideológicas no mundo ocidental, não deixou de ser impregnada de crimes hediondos, que de vez em quando explodem, brutalmente, destruindo sem recato e cada vez mais alvarmente, em nome da liberdade achada. Salles da Fonseca, como outros articulistas o tinham também feito sentir - e cito Vasco Pulido Valente numa recente página do seu Diário - aponta a decadência da França, até mesmo na criação de cérebros continuadores do escol desses outros que ajudaram à frutificação de um existencialismo ainda mais libertador das castrações sociais do passado, as quais permitiam, todavia, um certo equilíbrio moral e social. Waterloo foi a fronteira da ilusão de poder, informa SF, que Napoleão tinha significado para a França. Em termos económicos talvez. Outros povos menos rebeldes e educados na obediência aos chefes, no seu ideal ambicioso de domínio, souberam criar instrumentos de cada vez maior alcance destrutivo e isso os situou no mundo do poder, embora transitório igualmente. Mau grado a humilhação das derrotas, a Alemanha não deixa de se erguer sempre, pela sua capacidade de trabalho e eficácia, que a inteligência e a exigência de normas impõem e onde não seriam possíveis, julgo, práticas destrutivas como essa dos coletes amarelos. Mas para mim, a França representará sempre o que dela colhi através dos seus escritores, sobretudo, como figuras de luminosidade que aprendemos a amar e que continua, certamente, ainda que o meu trato de leitura se prenda mais hoje em revisões de antigos autores, dada a dispersão de “afectos” de entretenimento, incompatíveis com uma actualização cuidada. Como esquecer esses nomes de escritores a quem serei sempre grata pelas horas de prazer que a sua criatividade, humor e saber me deram na vida, de muitos limites, é certo, mas decididamente inesquecíveis, que de vez em quando retomo? Vejo o esforço de Emmanuel Macron tentando responder com abertura aos tais coletes amarelos, leio sobre as más vontades do povo insubordinado contra o orgulho do seu chefe político, a quem admiro a paciência e tudo isso me parece chocante e semelhante ao que se passa por cá, nas exigências das greves contínuas e ruinosas. E lamento. Mas isso não obsta a que ame a França, e jamais me passaria pela cabeça desprezá-la por ter perdido a aura antiga. A França perdurará sempre na admiração dos povos, como a Grécia antiga da literatura e da arte se mantém nos tempos, perdida, todavia, a força que a guerra troiana simbolizou, conquanto, provavelmente, fictícia.

 Henrique Salles da Fonseca
 21.04.19
A FRONTEIRA DE WATERLOO
Ancien que sou do Charles Lepierre, posso dizer sem rude margem de erro que me nasceram os dentes na francofonia (1)
Entretanto, muita água passou por baixo das pontes que atravessei e a francofonia foi-se espaçando – sem nunca a esquecer, claro está.
Até que a serenidade me alcançou e pude enveredar por leituras que a vida activa não facilitava. Assim foi que, a propósito do grande tema «filosofia», dei comigo a pensar que França não tem há muito quem possa representá-la na cena do pensamento de vanguarda. Descartes, Voltaire, Montesquieu, Diderot, Pascal… já foram.
E dei comigo também a pensar na «fronteira de Waterloo» com isso significando a batalha a partir da qual França nunca mais se cansou de perder todas as quezílias militares em que se meteu e, daqui, ao drama de De Gaulle que não aceitou o nível menor a que a França foi relegada no concerto internacional das Nações, sobretudo a partir de 1945. Foi precisamente para este drama que Raymond Aron me alertou num dos últimos capítulos das suas «Memórias» e tem sido ele que – noutros capítulos da mesma obra – me vem “dizendo” coisas por que eu não esperava, nomeadamente que a filosofia francesa existe.
Mas, mesmo assim, tanto Brunschvicg (1869-1944) como Sartre (1905-1980) e ele próprio, Aron (1905-1983), já cá não estão e eu continuo a pensar que a Nação Francesa continua perturbada, sem a serenidade suficiente para produzir expoentes mundiais. E não são os gaullistas Mirage nem outras Forces de Frappe que lhe inspiram as massas humanas já entrecortadas por soluções de continuidade (prosaicamente, «rasgões») no tecido da solidariedade nacional que há quem tome por chauvinista, racista, isolacionista.
À falta dessa serenidade, as propostas de reposição da grandeur de la France podem surgir de cenários tão inesperados como foi o de Versailles ao provocar o aparecimento de Hitler.
Claro que ainda não notei que a fronteira de Waterloo se esteja a diluir (e não creio que o possa notar nos tempos mais próximos) mas prefiro acreditar que os expoentes mundiais franceses noutras áreas do conhecimento existam realmente. Eu é que não os conheço. Sim? Talvez. A ver se estudo um pouco mais…
E por que é que a Nação Francesa está perturbada? Bem, isso é outra coisa que me preocupa porque quando a França chocalha, toda a Europa treme.
(1) - Em boa verdade, os dentes nasceram-me com o português e com o alemão.
Comentários
 Anónimo  21.04.2019  08:45: È isso. A França não estará como o Titanic, mas parece seguir-lhe os passos. Quem manda são os sindicatos e a baderna, com as constantes e intermináveis greves. Pobre França onde era tão bom passar uns dias!
 Henrique Salles da Fonseca  21.04.2019  12:32 Brilhante, Henrique.  Feliz Páscoa. Um abraço
José Montalvão
 Adriano Lima  21.04.2019  16:00 Neste dia de Páscoa, em que a religião pede tréguas à razão de alguns prosélitos, calha muito bem ler este texto. E é exactamente por isso, pelas supostas tréguas, porque a vigilância da racionalidade é cada vez mais uma urgente necessidade, que nem mesmo em suposto repouso pascoal deve afrouxar-se. Para mais, quando a irracionalidade pura é o que parece comandar os comportamentos. A França vem a propósito por causa de mais um episódio dos Coletes Amarelos? Certamente que sim. O pretexto agora invocado foi a doação de centenas de milhões de euros por ricaços para a recuperação de Notre-Dame. Poderão ter alguma razão os Coletes, conforme denunciou Philippe Martiez, secretário-geral da CGT: "São capazes de dar dezenas de milhões para reconstruir Notre-Dame, mas continuam a dizer que não há dinheiro para dar resposta à situação de emergência social". Só que as manifestações dos Coletes Amarelos (únicas no género) são ponta do iceberg do problema que o Dr. Salles da Fonseca aqui traz à reflexão sintetizado nas seguintes palavras: “… Mas, mesmo assim, tanto Brunschvicg (1869-1944) como Sartre (1905-1980) e ele próprio, Aron (1905-1983), já cá não estão e eu continuo a pensar que a Nação Francesa continua perturbada, sem a serenidade suficiente para produzir expoentes mundiais.”  Até porque pretextos não vão faltar para as exaltações incontroladas por parte dos franceses. Sim, faltam “expoentes mundiais” à França, incluindo líderes políticos. No entanto, eu que acredito que Macron é um líder com grandes potencialidades e com futuro garantido, julgo que o problema é mais fundo e exige um exame retalhado da mentalidade da nação francesa. Olha-se para a Alemanha e não se vê, como não se tem visto, comportamentos sociais destrambelhados e com pouco tino como acontece em França, apesar de se poder contrariar esta premissa apontando o caso do nazismo. Só que este surgiu por causa das humilhantes e impraticáveis indemnizações impostas à Alemanha pelo Tratado de Versalhes, depois da sua derrota sofrida numa guerra em que as responsabilidades políticas pela sua eclosão não podem ser apenas assacadas à Alemanha. Entre a Tríplice Aliança liderada pela Alemanha e a Tríplice Entente liderada pela Inglaterra há um jogo de sombras em que, em minha opinião, a Alemanha terá sido levada na curva pelo cinismo diplomático inglês e pelas ilusões idealistas da França. Penso que é toda a Europa que está órfã de “expoentes mundiais”. Não é só a França, embora este país seja o que mais tem evidenciado razões para se deitar no divã do psicanalista para se submeter a uma autognose. Os meus agradecimentos ao Dr. Salles da Fonseca por mais uma profunda e oportuna reflexão.
Henrique Salles da Fonseca  21.04.2019  18:28 Infelizmente também não consigo ver a luz ao fim do túnel Francês. Tenho, e li, cerca de 80% da obra do Raymond Aron de quem continuo um "cliente". Ainda me lembro de assinar o L'Express no tempo em que ele aí era editorialista juntamente com o Jean-François Revel. Que eu veja, não há hoje nenhum pensador francês do mesmo nível. E, ao contrário do que tu dizes, não me parece que a Europa se ressinta muito dessa fraqueza. Já todos se vão conformando com um Semi-Eixo Franco- Alemão. Mas, se calhar, sou eu que estou a ficar velho e rezingão! Abr Jorge Gaspar de Barros
Henrique Salles da Fonseca  21.04.2019  18:29 Um Abraço a que junto os votos de Santa Pascoa.
Joaquim Ortiz
 Henrique Salles da Fonseca  21.04.2019  18:30 Uma Santa Páscoa e que a França encontre uma solução para a resolução dos seus problemas porque em parte também são os nossos.  Um abraço  Bartolomeu Costa Cabral
 Henrique Salles da Fonseca  21.04.2019  18:32: Muito Obrigado. O seu artigo é uma abordagem a oportunos pensamentos sobre o que será no Futuro A Nova Filosofia Gaulesa. Eu que tive o privilégio de entrevistar Sartre e Simone em 69, hoje penso que existem filósofos notáveis sobretudo no que diz respeito às Teorias da Informação, que procuro transmitir aos meus alunos de Jornalismo. Assim tento explicar os conceitos de Pierre Lévy e admiro ainda imenso o moderno Pensamento do Jean-Jacques Wunenburger sobre os mitos referentes ao racionalismo no Mundo de Hoje. Igualmente admiro a actualidade que pode ter na nossa vida de hoje alguns medievais conceitos de Bernardo de Claraval., Grato com um abraço, Armando Rebelo


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