quinta-feira, 25 de abril de 2019

Mimos da Páscoa


Dois textos enviados por e-mail, por Henrique Salles da Fonseca – dois “mimos” de Páscoa, que muito agradeço.

Quanto ao primeiro texto, só posso dizer que acho que ninguém vê – tal equilíbrio - a não ser os visionários do costume.
Quanto ao segundo texto, tanto melhor, em minha opinião, (modesta, é claro), se Fernando Pessoa perdeu essa ideia peregrina do seu iberismo. Quem escreveu a “Mensagem” – que ele deveria estar em vias de compor, por essa altura - não poderia permanecer em tais conceitos, de contraste - “tão fora de esperar bem” - com a tão portentosa obra sua, (única que inscreveu para um concurso literário), de quadros de um nacionalismo autêntico, por simbolismos pátrios, em composições soltas enigmáticas, de uma beleza etérea, de que o poema “Ulisses” é o primeiro exemplo:

Poema – Ulisses (in MENSAGEM)
O mito é o nada que é tudo.  O mesmo sol que abre os céus  É um mito brilhante e mudo -  O corpo morto de Deus,  Vivo e desnudo.  Este que aqui aportou,  Foi por não ser existindo.  Sem existir nos bastou.  Por não ter vindo foi vindo  E nos criou.  Assim a lenda escorre  A entrar na realidade,  E a fecundá-la decorre.  Em baixo a vida, metade  De nada, morre. 

I - O QUE ELES DIZEM…
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
24/4/19
DIZ O EUROSTAT QUE
No 4º trimestre de 2018, a Dívida Pública em percentagem do PIB se situou em 121,5% em Portugal, 85,1% na Zona Euro e 80,0% na UE28.

E DIGO EU QUE
Não vejo maneira de regressarmos a algum equilíbrio antes que a liquidez dos mercados de capitais nos pregue uma partida.
II - PESSOA E A GALIZA
ANEXAR O VAZIO
FERNANDO VENÂNCIO
Por muito 'cultural' que o Iberismo de Fernando Pessoa se apresente, há um momento em que se abandonam as áreas do espírito, e o dedo desce, muito fisicamente, sobre o mapa. Em 1918, pormenorizando um dos três «problemas ibéricos», afirma o pensador que o Estado Português só estará completo com a «reintegração de Albuquerque e Olivença» e a «anexação da Galiza». Ao contrário do tema oliventino, que entrou e logo saiu da história, o tópico galego vai ser crucial no pensamento pessoano. Crucial, mas irrelevante. Toda a importância da Galiza consiste, e se esgota, em dever ser 'anexada'. Na Ibéria de Pessoa, existem três «nacionalidades naturais»: a Catalunha, Castela e o «Estado galaico-português». Não significa isto que sejam três as nações. Com efeito, «há só duas nações na Ibéria: Espanha e Portugal. A região que não é parte de uma, é parte de outra. O resto é filologia». Simplesmente, enquanto a Catalunha tem potencial para seguir caminho próprio, a Galiza «só não tem licença para escolher a independência». O que é dizer ainda muito, já que, uma vez absorvida por Portugal, será privada de qualquer individualidade. Ela «fica parte do Estado a que por natureza e raça pertence». Não, a Galiza não será sequer uma «região portuguesa». O motivo? «Portugal é uno». «Somos uma nação unitária, homogénea». Entenda-se: a vadia regressa a casa, e não se fala mais nisso. Que «natureza» e que «raça» sejam essas que unem a Galiza e Portugal, nunca o veremos esclarecido. O «Estado natural galaico-português» em Nenhuma circunstância histórica ou social aparece fundado. É um dado 'natural' Mais precisamente 'racial'. Mas a proposta perde, aqui, claramente o pé. Todas as abordagens racialistas de temática galego-portuguesa se estribam no ‘celtismo’ que as duas comunidades partilhariam. Ora, para Pessoa, a Ibéria é, no seu todo, culturalmente 'árabe'. «É na proporção em que formos os  mantenedores do espírito árabe na Europa que teremos uma individualidade à  parte». Certo: todas as leituras essencialistas da realidade humana acabam na caricatura. Menos comum é as caricaturas embaterem tão frontalmente. Sabe-se quanto o celtismo luso-galaico’ é enaltecido, irmãmente, por alguma extrema-esquerda galega e pela genérica extrema-direita portuguesa. E ambas detestam, em comovedora consonância, o árabe (o ‘mouro’) na Península, que associam a degenerescência e imundície. Mas não é tudo ainda. A Galiza, no discurso pessoano, é tão-só um espaço a anexar para Portugal ser inteiro. Em momento nenhum ela é sujeito, e ainda menos sujeito pensante. Tivesse o nosso ensaísta posto o ouvido à escuta, e saberia que tinha, na intelectualidade galega, aliados de peso. O fundador da Real Academia Galega, Manuel Murguía, defendera já em 1889 que a Galiza e Portugal formavam, por origem, território, língua e sentimento, uma só «nación». Idêntica era a convicção de numerosos galegos cultos, coetâneos de Pessoa, vários deles em assíduo contacto com portugueses. Se algum desaforo se nos permite, diríamos que Pessoa estava a par disso, e confiava ser a anexação da Galiza favas contadas. Em 1930, passados doze anos sobre estas cogitações, Fernando Pessoa insiste: «Portugal é um país completamente unificado, um país falando de Norte a Sul, sem dialectos, a mesma língua», enfim, um país «organicamente uno». A Espanha, pelo contrário, é «pelo menos, quatro países». Com quatro línguas, portanto? Não, porque o galego baralha aqui o arranjo. O galego é, acha Pessoa, «um Português não desenvolvido». Esta ideia do galego como um português «primitivo», por cultivar, irrompe de tempos a tempos. O próprio Murguía, defendendo-se em 1886 de falar um «dialecto del castellano», concedia que, a ser o galego tal coisa, o era do português. E ainda nos anos de 1970, Manuel Rodrigues Lapa propunha para o galego uma reabilitação «literária», isto é, culta, por transfusão do nosso idioma. Em suma: se já a «natureza» e a «raça» unificavam a faixa ocidental da Península, pode presumir-se que, no cenário pessoano, o tão uniformizado idioma português se estenderia, sem entraves, até ao Cantábrico.
E, de repente, num só ano, tudo muda. Em apontamento de 1931, Pessoa afirma: «Ninguém, que seja verdadeiramente português, quer a Galiza para nada. Não queremos a Galiza parte de Portugal, ou a Galiza e Portugal um só país». Um brado d’alma? Um coração ferido? Nada. O mais puro bom senso. Portugal e Galiza «são dois países, com línguas diferentes, tradições diferentes, vidas diferentes. Se eu fosse rei de Portugal, com poder absoluto, e me oferecessem os galegos a Galiza, recusá-la-ia. Seria um corpo estranho a perturbar por excesso a grande virtude portuguesa, que é a formidável unidade da nossa nação». Um golpe de teatro. Mas donde provém ele? Em inícios desse ano de 1931, é implantada em Espanha a segunda república. A Catalunha, o País Basco e a Galiza exigem autonomia, que conseguem, e o reconhecimento dos seus idiomas, que conseguem também. Na sessão das Cortes madrilenas de 18 de Setembro, enfrentam-se dois gigantes da intelectualidade espanhola: Miguel de Unamuno, basco mas centralista ferrenho, e Daniel Castelão, galego e incondicional da descentralização do Estado. Os ecos desse embate, que a imprensa espanhola registou, dificilmente chegariam a Pessoa, e, se chegassem, mais o arreigariam numa convicção, legível nas mesmas páginas: «A desintegração de Espanha é um facto. De resto, a desintegração de Espanha foi sempre um facto. A Espanha foi sempre uma mentira».
Num dos posfácios da edição que comentamos, António Sáez Delgado vê no Iberismo de Pessoa feições de um «museu de fantasmas». A sugestão é, no atinente à Galiza, inteiramente adequada. A inconsistência dos conceitos é patente, indesmentível o simplismo das opções. Nunca se percebe o que lucraria Portugal com o anexar de 'mais do mesmo'. Menos se entende por que artes se teria a Galiza conservado 'portuguesa’, ela, que era já rica e famosa  antes de haver notícia de Portugal. Quando, em 1931, a realidade lhe cai em cima, Pessoa desfaz-se, soberanamente, de uma Galiza que, para ele, era já um vazio.
Fernando Venâncio

Artigo publicado na revista LER (Lisboa) e GRIAL (Vigo)
Para saber mais sobre o Autor, v., p. ex., em
https://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Ven%C3%A2ncio

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