Dois textos enviados por e-mail, por Henrique Salles da Fonseca – dois
“mimos” de Páscoa, que muito agradeço.
Quanto ao primeiro texto, só posso dizer
que acho que ninguém vê – tal equilíbrio - a não ser os visionários do costume.
Quanto ao segundo texto, tanto melhor,
em minha opinião, (modesta, é claro), se Fernando Pessoa perdeu essa ideia peregrina do seu iberismo. Quem
escreveu a “Mensagem” – que ele deveria estar em vias de compor,
por essa altura - não poderia permanecer em tais conceitos, de contraste - “tão fora de esperar bem” - com a tão portentosa obra sua, (única que inscreveu
para um concurso literário), de quadros de um nacionalismo autêntico, por
simbolismos pátrios, em composições soltas enigmáticas, de uma beleza etérea,
de que o poema “Ulisses” é o primeiro exemplo:
Poema –
Ulisses (in MENSAGEM)
O
mito é o nada que é tudo. O mesmo sol
que abre os céus É um mito brilhante e
mudo - O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo. Este que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos criou.
Assim a lenda escorre A entrar na
realidade, E a fecundá-la decorre. Em baixo a vida, metade De nada, morre.
I - O QUE ELES DIZEM…
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
24/4/19
DIZ O EUROSTAT QUE
No
4º trimestre de 2018, a Dívida Pública em percentagem do PIB se situou em
121,5% em Portugal, 85,1% na Zona Euro e 80,0% na UE28.
E DIGO EU QUE
Não
vejo maneira de regressarmos a algum equilíbrio antes que a liquidez dos
mercados de capitais nos pregue uma partida.
II - PESSOA E A GALIZA
ANEXAR O VAZIO
FERNANDO VENÂNCIO
Por
muito 'cultural' que o Iberismo de Fernando Pessoa se
apresente, há um momento em que se abandonam as áreas do espírito, e o dedo
desce, muito fisicamente, sobre o mapa. Em 1918, pormenorizando um dos três
«problemas ibéricos», afirma o pensador que o Estado Português só estará completo com
a «reintegração de Albuquerque e Olivença» e a «anexação da Galiza».
Ao contrário do tema oliventino, que entrou e logo saiu da história, o
tópico galego vai ser crucial no pensamento pessoano. Crucial, mas
irrelevante. Toda a importância da Galiza consiste, e se esgota, em
dever ser 'anexada'. Na
Ibéria de Pessoa, existem três «nacionalidades naturais»: a Catalunha, Castela e o «Estado
galaico-português». Não significa isto que sejam três as nações. Com
efeito, «há só duas nações na Ibéria: Espanha e Portugal. A região que não é
parte de uma, é parte de outra. O resto é filologia». Simplesmente, enquanto
a Catalunha tem potencial para seguir caminho próprio, a Galiza «só não tem
licença para escolher a independência». O que é dizer ainda muito, já que, uma
vez absorvida por Portugal, será privada de qualquer individualidade. Ela «fica
parte do Estado a que por natureza e raça pertence». Não, a Galiza não será
sequer uma «região portuguesa». O motivo? «Portugal é uno». «Somos uma
nação unitária, homogénea». Entenda-se: a vadia regressa a casa, e não
se fala mais nisso. Que «natureza» e que «raça» sejam essas que unem a
Galiza e Portugal, nunca o veremos esclarecido. O «Estado natural
galaico-português» em Nenhuma circunstância histórica ou social aparece
fundado. É um dado 'natural' Mais precisamente
'racial'. Mas a proposta perde, aqui, claramente o pé. Todas
as abordagens racialistas de temática galego-portuguesa se estribam no ‘celtismo’
que as duas comunidades partilhariam. Ora, para Pessoa, a
Ibéria é, no seu todo, culturalmente 'árabe'. «É na proporção
em que formos os mantenedores do
espírito árabe na Europa que teremos uma individualidade à parte».
Certo: todas as leituras essencialistas da realidade humana
acabam na caricatura. Menos comum
é as caricaturas embaterem tão frontalmente. Sabe-se quanto o celtismo
luso-galaico’ é enaltecido, irmãmente, por alguma extrema-esquerda galega e
pela genérica extrema-direita portuguesa. E ambas detestam, em comovedora
consonância, o árabe (o ‘mouro’) na Península, que associam a degenerescência e
imundície. Mas não é tudo ainda. A Galiza,
no discurso pessoano, é tão-só um espaço a anexar para Portugal ser inteiro. Em
momento nenhum ela é sujeito, e ainda menos sujeito pensante. Tivesse o nosso
ensaísta posto o ouvido à escuta, e saberia que tinha, na intelectualidade
galega, aliados de peso. O fundador
da Real Academia Galega, Manuel Murguía, defendera já em 1889 que a Galiza e Portugal
formavam, por origem, território, língua e sentimento, uma só «nación». Idêntica era a convicção de numerosos galegos cultos,
coetâneos de Pessoa, vários deles em assíduo contacto com portugueses. Se algum
desaforo se nos permite, diríamos que Pessoa estava a par disso, e confiava ser
a anexação da Galiza favas contadas. Em
1930, passados doze anos sobre estas cogitações, Fernando Pessoa insiste: «Portugal
é um país completamente unificado, um país falando de Norte a Sul, sem
dialectos, a mesma língua», enfim, um país «organicamente uno». A Espanha, pelo contrário, é «pelo
menos, quatro países». Com quatro línguas, portanto? Não, porque o galego
baralha aqui o arranjo. O galego
é, acha Pessoa, «um Português não desenvolvido». Esta ideia do galego como um português
«primitivo», por cultivar, irrompe de tempos a tempos. O próprio Murguía,
defendendo-se em 1886 de falar um «dialecto del castellano», concedia que, a
ser o galego tal coisa, o era do português. E ainda nos anos de 1970, Manuel
Rodrigues Lapa propunha
para o galego uma reabilitação «literária», isto é, culta, por transfusão do
nosso idioma. Em suma: se já a «natureza» e a «raça» unificavam a faixa
ocidental da Península, pode presumir-se que, no cenário pessoano, o tão
uniformizado idioma português se estenderia, sem entraves, até ao Cantábrico.
E, de repente, num só ano, tudo muda.
Em apontamento de 1931, Pessoa afirma: «Ninguém, que seja
verdadeiramente português, quer a Galiza para nada. Não queremos a Galiza parte
de Portugal, ou a Galiza e Portugal um só país». Um brado d’alma? Um coração
ferido? Nada. O mais puro bom senso. Portugal e Galiza «são dois países, com
línguas diferentes, tradições diferentes, vidas diferentes. Se eu fosse rei de
Portugal, com poder absoluto, e me oferecessem os galegos a Galiza,
recusá-la-ia. Seria um corpo estranho a perturbar por excesso a grande virtude
portuguesa, que é a formidável unidade da nossa nação». Um golpe de teatro. Mas donde provém ele? Em inícios desse ano de 1931,
é implantada em Espanha a segunda república. A Catalunha, o País Basco e a
Galiza exigem autonomia, que conseguem, e o reconhecimento dos seus idiomas,
que conseguem também. Na sessão das Cortes madrilenas de 18 de Setembro,
enfrentam-se dois gigantes da intelectualidade espanhola: Miguel
de Unamuno, basco mas centralista ferrenho, e
Daniel Castelão, galego e incondicional da descentralização do Estado. Os ecos
desse embate, que a imprensa espanhola registou, dificilmente chegariam a
Pessoa, e, se chegassem, mais o arreigariam numa convicção, legível nas
mesmas páginas: «A
desintegração de Espanha é um facto. De resto, a desintegração de Espanha foi
sempre um facto. A Espanha foi sempre uma mentira».
Num
dos posfácios da edição que comentamos, António Sáez Delgado vê
no Iberismo de Pessoa feições de um «museu de fantasmas». A sugestão é, no atinente
à Galiza, inteiramente adequada. A inconsistência dos conceitos é patente,
indesmentível o simplismo das opções. Nunca se percebe o que lucraria Portugal
com o anexar de 'mais do mesmo'. Menos se entende por que artes
se teria a Galiza conservado 'portuguesa’, ela, que era já rica e
famosa antes de haver notícia de
Portugal. Quando, em 1931, a realidade lhe cai em cima, Pessoa desfaz-se,
soberanamente, de uma Galiza que, para ele, era já um vazio.
Fernando Venâncio
Artigo publicado na revista LER (Lisboa) e GRIAL (Vigo)
Para saber mais sobre o Autor, v., p. ex., em
https://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Ven%C3%A2ncio
Nenhum comentário:
Postar um comentário