sábado, 31 de outubro de 2020

Nada contra


Mas as contradições são muitas, vindas do governo, e a malta é jovem… Até mesmo os velhos se sentem atingidos, ao repararem que nem sempre o governo põe a máscara… E a propósito de máscara: Quantas não vi eu já, atiradas para o chão da estrada, como pontas de cigarros… Um civismo muito rudimentar o nosso, hoje como outrora…

OPINIÃO

Essa coisa estranha da responsabilidade individual

Se Portugal tivesse uma cultura de responsabilidade, seria possível decidir excepções caso a caso, como seria racional.

JOSÉ PACHECO PEREIRA

PÚBLICO, 31 de Outubro de 2020

A ideia de que existe uma coisa chamada “responsabilidade individual” não é muito popular. Por muitas razões, educação, formas actuais de sociabilidade, atrasos económicos e sociais, culturas de desresponsabilização, paternalismo estatal, falhanço familiar, desagregação dos saberes e das profissões, pobreza, crise das mediações, o empobrecimento do discurso público e das narrativas cívicas e políticas, a ignorância agressiva das redes sociais, o ascenso de egoísmo gerado pelas ideias de “sucesso”, protagonismo, e pelo “yuppismo”, tudo leva a que a ideia de responsabilidade esteja em recuo. Não é a única a recuar, vai a par com a crise do valor da privacidade, com uma simples noção de honestidade, com aquilo a que se costumava chamar “princípios”.

Tenho consciência de que todas estas questões de moral e ética não são simples, são até bastante complicadas. Mas fico-me com o sentido corrente das palavras, que correspondem ao entendimento comum — ou seja, toda a gente entende do que estou a falar. As polémicas recentes sobre a “educação cívica”, toda a discussão sobre a corrupção para além da legalidade, são apenas um exemplo de debates imperfeitos, mas que tocam questões de responsabilidade individual.

O que significa esta responsabilidade individual? Mais uma vez sem complicações, e no contexto da pandemia, é comportarmo-nos de modo a proteger-nos a nós próprios e aos outros, mesmo que isso signifique algum desconforto. Como se faz essa protecção? Alegar ignorância não é razoável, porque toda a gente sabe o que é, a começar pelo uso de máscaras, distanciação social, lavagem das mãos e ajudar-nos uns aos outros na medida das possibilidades, dirigida a todos os que têm dificuldades e necessidades a que não podem responder. Alegar pretextos ideológicos e políticos é quase sempre uma justificação para a preguiça e para o desleixo, tanto mais que quem os alega não recusa os tratamentos e os custos gerados pelo seu comportamento. Já para não falar do sofrimento que causam aos outros. Já ouvi vários jovens dizer que não têm de cumprir regras para uma doença que só afecta os “velhos”. Ou argumentos absurdos sobre a “liberdade” de não usar máscara por quem tem um capacete de mota debaixo do braço. Na verdade, é tudo bastante simples, precisa é de vontade e sentido de dever e da recusa de pretextos para a preguiça e o egoísmo.

Uma coisa é a responsabilidade colectiva, do governo, dos partidos, das corporações da saúde e outra é a das pessoas. Por muito que se possam tomar medidas — e o Governo é o principal responsável por essas medidas —, o controlo da pandemia só vai ser possível com duas coisas — responsabilidade individual e vacinas. Vacinas é uma questão de tempo, um ano talvez, até começarem a ter um papel. Mas a responsabilidade é para agora, não tem tempo para ser adiada.

O caos da resposta governamental, por exemplo, com as excepções aos ajuntamentos, acentua a desresponsabilização. O único ajuntamento que deu polémica foi o da Festa do Avante!, mas não foi a covid que esteve nas preocupações dos que se indignaram em alta voz, foi ser o PCP o alvo. Aliás, as comparações entre o que o Governo estava a permitir em eventos laicos de carácter político eram sempre contrastadas com as proibições que afectavam eventos religiosos, missas, Fátima, agora o Dia de Finados. Não é uma comparação inocente.

Depois, foi o laxismo em eventos desportivos de que o melhor exemplo, pela sua dimensão, foi a Fórmula 1 em Portimão, que serviu logo a seguir de justificação para os ajuntamentos para ver as ondas gigantes na Nazaré. O raciocínio justificativo é este: “Então se se pode juntar milhares num autódromo, porque não para ver a fúria do mar?” Ou seja: faço que me apetece.

Acresce que, como toda a gente sabe que não será penalizada pelo seu comportamento individual, se alguém tiver sido infectado numa festa estudantil ou a ver as ondas, e que em particular não verá barrada a sua entrada num hospital e o acesso aos tratamentos, muitas vezes caríssimos, pagos por todos nós, o sentimento de impunidade aumenta.

Se Portugal tivesse uma cultura de responsabilidade, seria possível decidir excepções caso a caso, como seria racional, em função dos interesses em causa, do valor e do retorno do que se permite. Mas, cá, isso apenas serve para justificar a asneira, quer de quem decide, quer de quem encontra aí uma justificação para o seu egoísmo. Por isso sobram apenas dois métodos: ou proíbe-se tudo sem excepções ou permite-se tudo. Nenhuma das opções vai acontecer, pelo que vai continuar o caos.

Valorizar o papel da responsabilidade individual significa desresponsabilizar o Governo? Nem pensar. Trata-se apenas de falar de duas coisas que deveriam ser complementares e que não se substituem uma à outra. Pode-se vociferar contra o Governo todo o dia, e a maioria das vezes com muita razão, mas nenhum governo pode controlar uma pandemia com estas características de facilidade de contágio e proximidade sem que os cidadãos assumam sua parte de comportamento responsável.

E a verdade é que muitos não o estão a fazer; por isso, precisam que se lhes fale grosso e feio. Fazer isso é também uma questão de responsabilidade individual.

Historiador

TÓPICOS

OPINIÂO
COMENTÁRIOS:
Adolfo-Dias
EXPERIENTE:
Abençoada lucidez!      martins.ruijorge MODERADOR: A questão da Festa do Avante foi muito bem lembrada por Pacheco Pereira. Como ele refere, não foi por causa de ser uma festa, mas sim por ser do PCP que foi atacada como mais nenhum acontecimento dos últimos meses em Portugal. Com a substancial diferença de o que tem sido feito - de Fátima ao autódromo do Algarve, ao contrário da Atalaia, nunca ter conseguido o nível de organização e de responsabilidade individual e colectiva demonstrada pelos comunistas. A Festa do Avante é o maior contributo para evidenciar como é possível a vida decorrer com normalidade sem que se coloquem em risco a si próprios e aos que os rodeiam. É um extraordinário exemplo da responsabilidade de que PP aqui fala e, não fora o anticomunismo militante, poderia e deveria ser seguido em muitos eventos que acontecem.    Jose INFLUENTE: "...precisam que se lhes fale grosso e feio..." Ó Dr. Pacheco Pereira...      António Sousa INICIANTE: Bom e importante artigo sobre uma questão chave para o desenvolvimento e progresso do nosso país. Quero lembrar o importantíssimo papel da comunicação social neste assunto. Durante esta semana, na SIC, vi uma entrevista a uma médica, com um cargo na Ordem dos Médicos. A médica pôs precisamente a ênfase da sua intervenção na importância da responsabilidade de cada um de nós para conter a pandemia. Acontece que a jornalista, na prática, desvalorizou o assunto, pois o que queria saber era a opinião da médica sobre as medidas aplicadas pelo governo. Em relação a alguns comentários deixo um pensamento de Einstein. Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não tenho a certeza absoluta. Paulo Batista EXPERIENTE: Bom artigo de opinião. Contudo a matriz educacional portuguesa não apela à responsabilidade individual (de cima a baixo) pelo que, na generalidade, não se pode esperar muito por aí. Povo gosta é de ditadura (esquerda ou direita) para se sentirem protegidos. É a vida ... e salve-se quem puder :    Mário Aveiro EXPERIENTE: Lamento que Pacheco Pereira tenha escrito uma crónica tão próxima do pensamento pré-25/4.       PG INICIANTE: Tem a certeza de que leu a crónica?       Nuno Silva EXPERIENTE: Há pessoas que não se importam de colocar as vidas dos pais, filhos e avós em risco, só porque acreditam nos populistas em vez dos cientistas. E esta epidemia arrogante já cá andava antes desta epidemia... Mário Vilar INICIANTE: Presumo que também seria favorável a que se recusassem tratamentos <<pagos por todos nós>> a doentes com problemas decorrentes do alcoolismo, do tabagismo, da obesidade, de doenças sexualmente transmissíveis por não uso de preservativos, ou da toxicodependência, para só citar alguns...     PG INICIANTE: O que o leva a presumir tal coisa? Leu a crónica?

Tempos antigos para memória


Em vez das notícias da saúde, enviou-me o Dr. Salles, como efeméride, o poema “ANIVERSÁRIO” de Álvaro de Campos, antecedida do extracto biográfico acerca do heterónimo. Já então, na meninice deste, se festejavam os anos, para sua imortalização futura, ligada ao conceito pesado do efémero, o qual efémero em Pessoa não se verificará, mau grado a tristeza que escorre do seu poema. Hoje, devido a um perigoso vírus, já os meninos mal festejam os seus anos, talvez para lembrarem mais tarde, sem tanto impacto literário, contudo, – quem sabe? - já que aquele disse tudo sobre o absurdo, sendo que, nos anos da sua infância, como contraste, “a alegria estava certa como uma religião qualquer…”. Fiquemos, pois, com o poema de Álvaro de Campos, fazendo votos sinceros pela saúde de HSF.

 EFEMÉRIDE – ainda a tempo EFEMÉRIDE – ainda a tempo

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 31.10.20

Álvaro de Campos

"Nasceu em Tavira, extremo sul de Portugal, no dia 15 de outubro de 1890. Teve uma educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro Mecânica e depois Naval. Todavia não exerceu a profissão por não poder suportar viver confinado em escritórios”. (Fernando Pessoa)

 

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

 

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,

O que fui de coração e parentesco.

O que fui de serões de meia-província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino,

O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...

A que distância!...

(Nem o acho... )

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

 

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,

Pondo grelado nas paredes...

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim...

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

 

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,

O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

 

Pára, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

 

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos  (in "Poemas")

COMENTÁRIOS:

Francisco G. de Amorim 31.10.2020: Muito BOM

Anónimo 31.10.2020: Sempre a surpreender-nos agradavelmente, Henrique. Muito bem recordada a data do aniversário do Álvaro de Campos, que, de acordo com o seu Criador, e como testemunhou junto de Adolfo Casais Monteiro, nasceu a 15 de outubro de 1890, às 1h30 da tarde… E como também muito bem dizes, foi para a Escócia estudar engenharia, designadamente naval em Glasgow. Queres saber que, quando estive na Setenave encontrei, pelo menos, um engenheiro naval (naquele tempo eram conhecidos por arquitectos navais) formado exactamente em Glasgow? Tenho a sorte de ter uma gravação de poemas de Pessoa, designadamente “Aniversário”, ditos por Paulo Autran. Quando lia o poema no teu post, mentalmente ia ouvindo a voz de Paulo Auntran. Esse disco, comprado em S. Paulo, quando lá vivia, contém alguns outros poemas do nosso aniversariante, como a “Ode Triunfal” (Ó rodas, ó engrenagem, r-r-r-r-r-r-r eterno!). É preciso ser um grande declamador e ter uma dição fabulosa para poder recitar aquela Ode, a qual surgiu, ainda segundo o seu autor, “num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda”. De acordo com um livro de Fernando Pessoa (Ficções do Interlúdio, edição também brasileira) o poema “Aniversário” está datado de 15/10/1929, pelo que é legítimo admitir que o poema foi a atenção que Álvaro de Campos quis ter perante o seu Criador, naquele dia festivo. Deixa-me acrescentar um parágrafo, até em atenção a um teu fiel leitor, sempre pronto a deixar o seu comentário (já o fez, desta vez) e que sei que vive no Rio de Janeiro. Tive um grande orgulho quando constatei a admiração que os brasileiros tinham por Fernando Pessoa, admiração essa que se consubstanciava em saraus, privados ou públicos, sobre Pessoa e declamação, bem como discussão, da sua poesia, para além de as montras das livrarias de S. Paulo terem, habitualmente, livros seus. Já não tenho presente, mas creio que sim, se a sua poesia era estudada nas Escolas. Nas Faculdades de Letras, certamente que era. Tenho mais livros sobre o nosso poeta comprados em S. Paulo do que em Lisboa. Finalmente, na disciplina de Português (ou Literatura) inserida na preparação para admissão ao Instituto Comercial, no ano letivo 1960/61 (já vais perceber a razão de o explicitar), o professor a certa altura disse qualquer coisa como isto: “Para mim, e para mais alguns hereges como eu, Fernando Pessoa é um poeta como lírico (não como épico) superior a Camões”. Calculas, Henrique, o choque que foi, depois de tudo o que tínhamos ouvido dizer de Camões, alguém, naquele tempo, vir a pôr em causa o que estava tão interiorizado em nós? Abraço.Carlos Traguelho

Henrique Salles da Fonseca, 31.10.2020

“A minha casa maior”
(inspirado no poema de Álvaro de Campos “Realidade”. Transcrevo apenas alguns excertos do poema dele e abaixo o meu. Maria Emília Gonçalves)

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos…
Nada está mudado – ou, pelo menos, não dou por isso …
…Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.
……………………………….
Hoje se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
……………………………………………………
Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro,
…………………………………………………………………………..
Talvez isto realmente se desse…
Verdadeiramente se desse…
Sim, talvez…
(excertos do poema “Realidade” de Álvaro de Campos)

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A MINHA CASA MAIOR…

Sim, há mais de vinte anos eu morava aqui
neste largo grande demais para a minha pequenez
e era feliz, tão feliz...
Ou serei mais agora que recordo essa nostalgia
desejando regressar à casa que habitava!

A casa ainda lá está, nesse largo,
com outros personagens instalados,
todos os dias uns, todos os dias outros,
porque essa casa é agora uma pousada
e contudo as casas não sabem de nada…
Lembro-me dos pequenos momentos
em que brincava no largo!
Hoje passados vinte anos,
não habito mais esse lugar.
Sim, o mistério do tempo!

Na velha casa perdida da minha infância,
continuam a morar os meus velhos queridos:
Os outros sentirão isto como eu?
Hoje como ontem,
passei por várias casas
mas a minha casa maior é a NATUREZA:
Misturo, amasso palavras, lembranças
e as palavras voam como o tempo que passou;
Há mais de vinte anos
por entre as copas das árvores ouvia cantar os pássaros:
Hoje continuo a abrigar-me nelas;
Esta festa cá fora, a festa lá dentro,
as árvores enchendo-se de folhas
ou desnudando-se eróticas
em sílabas nuas
que vêm poisar na minha pele mansamente;
Talvez isso realmente se dê,
Talvez isso realmente se desse,
Sim talvez!  
Mª Emília Gonçalves

Adriano Lima 31.10.2020

Bem lembrado, Dr. Salles. Quem lê este poema encontra aquela dimensão da poesia que só a genialidade de Pessoa nos oferece. Devo confessar, com mágoa, que no liceu pouco ou nada me ensinaram de Pessoa, como se ele tivesse de ser marginalizado pela sua ousadia criativa de transgredir as normas por que se regia a poesia clássica: a arrumação textual com respeito ao uso da rima, da métrica e outros grafismos. Não sei se era assim ou não, mas permito-me esta suspeição.
Conforme vemos neste poema de Álvaro de Campos, assim como noutros, a poesia pessoana é marcada por uma oralidade e prolixidade espalhadas em versos longos, quase expressão em prosa, despejando torrentes incontidas de emoção impulsiva, ou se mais refreada nem por si menos expressiva dos seus sentimentos mais angustiantes.

A originalidade criativa de Pessoa é fragmentar-se em heterónimos representativos de entidades existenciais, num processo de mistificação atrás da qual o poeta revela a íntima essência do seu psiquismo. A poesia que publicou em seu próprio nome acaba por ser tão heterónima como as outras, mas podendo dizer-se que é como Álvaro de Campos que o poeta mais desnuda a sua alma.
Neste poema, “Aniversário”, Pessoa evoca a sua infância feliz e despreocupada, contrapondo-a à fase final da sua vida, em que o poeta exprime a sua amargura, pessimismo e desilusão perante a realidade da existência humana.

Procurando uma explicação e forçando uma analogia, diria que ao evitarem sobrecarregar a mente dos adolescentes com a poesia pessoana, é como se os responsáveis pela Educação quisessem manter nos jovens o mesmo mundo de inocência despreocupada que Pessoa evoca poeticamente no seu “Aniversário”. Mas sabemos que não era assim, porque a sorte ou as contingências naturais da vida não proporcionavam a todos as mesmas condições de felicidade. Obrigado, Dr. Salles e prezados companheiros comentadores, por este belo momento. Adriano Lima

 

Não relativizemos, pois.


Mais um escrito dos sarcasmos rigorosos de Alberto Gonçalves, que nos vão amachucando como povo exaltadamente futeboleiro e festivaleiro, que tudo reduz a amores ou ódios e pretensões de saber, de reduzida dimensão, é bem verdade. Alberto Gonçalves nos conhece e condena, nessas nossas pretensões de arrogância palavrosa, que uma difusão dos valores esquerdistas mais faz alardear, em fúria contra um homem que os repele, naturalmente, a esses valores esquerdistas, atento aos desígnios nacionalistas colhidos dos seus antepassados. Alberto Gonçalves mostra a inanidade desses nossos pretensiosismos contra um Trump eficaz, Cipião Numantino, ao citar a História dos povos e a importância-chave das grandes potências na condução do mundo, bem demonstra a necessidade daquelas, na defesa contra outras prepotências abafadoras, que deveriam assustar a todos igualmente, hoje, já que vivemos em “democracia”…

 

Se Trump ganhar, o mundo acaba outra vez? /premium

O mundo, li no “Público” e ouvi na Sic, acabou há quatro anos, mal Trump tomou posse e decretou o extermínio da humanidade. Fora isso, tudo permaneceu normal durante três anos e meio.

ALBERTO GONÇALVES, Colunista do Observador

OBSERVADOR, 31 out 2020

Engraçado. Muitos portugueses não gostam da América, embora gostem de visitar Nova Iorque na medida em que, juram eles, aquilo é essencialmente europeu e não tem nada a ver com o resto (diga-se que, em diversos sentidos, Nova Iorque é a cidade menos “europeia” e mais americana da América, mas pronto). Muitos portugueses troçam da “juvenilidade” da América, que nasceu ontem e carece de “dimensão histórica” (diga-se que os sujeitos em questão desconhecem a história da América, da Europa e da Beira Baixa, mas não sejamos picuinhas). Muitos portugueses abominam a América, que é imperialista, capitalista e fascista (e, imagine-se, o destino sonhado por todos os habitantes das verdadeiras democracias, género Cuba, mas que se lixe). Muitos portugueses riem-se dos americanos, porque são evidentemente incultos e caipiras (diga-se que os caipiras são responsáveis por boa parte dos avanços tecnológicos dos últimos 150 anos e, em média, ganham por semana o que nós ganhamos por mês, mas basta de futilidades). Não obstante, muitos portugueses, invariavelmente os mesmos, demonstram inusitado interesse pelas eleições presidenciais dos EUA.

É uma atitude difícil de compreender. Eu não sinto qualquer curiosidade ou admiração pelo Bangladesh, logo não faço ideia da linhagem de sobas locais. Em contrapartida, os portugueses que desprezam a América mostram-se preocupadíssimos em analisar ao pormenor cada novo inquilino da Casa Branca. Deve ser pelo enorme impacto da América no futuro do planeta, conquanto as pessoas informadas percebam que a América já não tem impacto nenhum, pelo menos desde que a URSS, antes, e a China, agora, reduziram a cinzas o protagonismo americano. Por regra, a inquietação dos portugueses com uma eleição em que não votam é justificada: sempre que o presidente é republicano, vem aí a IIIª Guerra Mundial. Sempre que o presidente é democrata, a apreensão modera-se um pouco. Se o presidente é democrata e meio negro (o facto de ser meio branco não conta), chega a haver relativo entusiasmo. Se o presidente é republicano e completamente Trump, é óbvio que o mundo acabou.

O mundo, li no “Público” e ouvi na Sic, acabou há quatro anos, mal Trump tomou posse e decretou o extermínio da humanidade. Fora isso, tudo permaneceu normal durante três anos e meio. A economia deles manteve-se em franco crescimento. O proteccionismo não foi demasiado além das ameaças. As prometidas carnificinas globais consistiram em refrear os delírios bélicos do sr. Obama e em estabelecer ou influenciar acordos de paz na Coreia do Norte e no Médio Oriente. Os lamentos pelo clima ficaram entregues a uma criança sueca, ao eng. Guterres e outros especialistas de idade similar. Os protestos nas ruas couberam tipicamente aos herdeiros da baderna hitleriana (“antifa”, “black lives matter”, etc.). As divergências raciais sérias seguiram iguais ao que eram. A “radicalização” política e social nem é inédita nem responsabilidade solitária de Trump. A demência inquisitorial nas universidades precede Trump. O muro “de” Trump, iniciado por Clinton, quase não avançou. Em suma, graças a Trump ou apesar dele, sob Trump a América viveu uma monotonia notável, tão notável e tão monótona que o debate público se deu ao luxo de versar temas vitais como o “género”. E depois, no início de 2020, veio a China mostrar que uma superpotência se distingue por produzir vírus em mercados medievais e infectos.

Se Trump perder as eleições, o que é provável que aconteça, perde-as por causa da Covid. É possível que também as perca por causa das suas declarações acerca da Covid. Nesse e noutros assuntos, Trump, um pantomineiro, perde frequentemente pela língua, que ora tem piada na ofensa de adversários, ora não tem. No caso, acaba por ser injusto. Sobre a Covid, descontadas as sucessivas atoardas, Trump esteve essencialmente bem: ao invés dos charlatães que apelam ao medo, Trump fez o que fazem os líderes e lutou para que o medo não vencesse. À sua destrambelhada maneira, respeitou as pessoas, por oposição ao enxovalho hoje vigente nalguma Europa. Se calhar, não resultou. Se calhar, até na América a maioria das pessoas já prefere ser enxovalhada.

Não tenho muita pena da eventual derrota do homem. Tenho um bocadinho. O primeiro motivo é racional: se, em geral, os sujeitos que detestam a América estão contra Trump, é lícito suspeitar que Trump é bom para a América, país de que gosto. O segundo motivo é irracional: não apreciando o estilo fanfarrão e malcriado de Trump, aprecio a repulsa que o estilo fanfarrão e malcriado de Trump provoca em criaturas imensamente mais repulsivas do que Trump – e não falo apenas do lendário Costa Ribas. Sobretudo aprecio o que Trump, com equívocos pelo meio, representa para os que o elegeram: um desafio à arrogância das costas Leste e Oeste, que olham para o “interior profundo” com uma mistura de divertimento e nojo. É estranho que um promotor imobiliário, e bilionário, de Nova Iorque simbolize a revolta dos “esquecidos” contra as classes dominantes, repletas de prepotência, culpa, hipocrisia, susceptibilidade e mimo. Mas alguém teria de o fazer.

Se Trump continuar a fazê-lo por novo mandato, óptimo. Se não, o mundo não acaba (acabou há quatro anos, lembram-se?). Com sorte, o sr. Biden, um taralhouco simpático rodeado por alguns doidos antipáticos, não destruirá a União. Ao contrário de muitos portugueses, gosto da América (não sei se já o disse), conheço-a razoavelmente para um turista e aprendi uma coisa: é impressionante a indiferença da vida americana ao indivíduo que serve de chefe de Estado. Andei repetidamente por lá nas presidências de W. Bush, Obama e Trump e, salvo pelo residual “merchandising” (exaltador de Obama, insultuoso dos outros dois) em lojas “fofinhas” de Nova Iorque ou Boston, de Los Angeles ou São Francisco, a “presença” do presidente no quotidiano é nula. Não existe a percepção de quem manda.

Principalmente porque na América quem manda, manda pouco. A ideia de uma figura tutelar e omnisciente é própria de sociedades pré-civilizadas, em que qualquer burgesso chega ao poder e desata a tratar os cidadãos abaixo de bonequitos, dependentes, reverentes, medrosos e infantis. Se eu fosse certos portugueses, deixava Washington em paz e dedicava-me a escrutinar um lugar assim.

 

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA  AMÉRICA  MUNDO  DONALD TRUMP  JOE BIDEN  EUROPA

 

COMENTÁRIOS:

Faisal Al Meida: Muito bom artigo, como sempre, caro AG! Há-de um dia escrever um artigo menos bom... só para vermos como seria. Mera curiosidade intelectual. Para provar que é possível, pronto.          João Belém: Terça-feira Donald Trump ganhará as eleições. Os media estão apenas a fingir que vai ser ao contrário. As sondagens não são fiáveis, servem apenas de propaganda e os media também sabem isso. Faz tudo parte da encenação. Eventualmente servir-se-ão dos resultados das sondagens para invocar fraude eleitoral e justificar mais uns protestos nas ruas a assaltar lojas, incendiar carros e edifícios como têm feito nos últimos tempos, tudo feito de forma pacífica evidentemente... Você está enganado Alberto, mas de resto o seu artigo é justo.     Cipião Numantino: A título preambular direi que nunca me senti seduzido pelo “American way of life”. E tanto assim é que declinei “in illo tempore” uma oportunidade de estudo que me haveria colocado num contacto mais que directo com a realidade americana. Bastas vezes tenho pensado que fiz mal, mas o instinto imediato que me acudiu à época, nunca por norma me deixou ficar mal em tantos e tantos casos. Águas passadas e pronto. E mesmo em relação a turismo tenho preferido outras paragens que não as respeitantes aos States (sou mais um adorador de calhaus) e nem família chegada que por lá reside, me fez activar a curiosidade. Talvez um dia me atreva a percorrer a mítica route 66 e a mais, sinceramente, não aspiro. Posto isto, ripo da primordial premissa que serei um pouco insuspeito quanto ao apreço ou não que dedico a este grandioso país. E da concepção que tenho quanto ao desempenho que esta imensa nação tem jogado no tabuleiro político nos últimos 100 anos. Uma coisa desde logo registo é que se trata de um povo generoso eivado de alguns defeitos mas com soberbas virtudes. E nem numa situação nem na outra posso ficar indiferente ao papel que tem desempenhado como polícia do mundo livre. Como é por aqui sabido e consabido apoio-me várias vezes na História para ajudar a situar quem me lê e, simultaneamente, suportar certas teses sociais, culturais ou políticas que pretendo esmiuçar. E é aqui chegado que reconheço aos EUA o seu papel importante no concerto das nações. Diz-nos a História que sempre que nos deparamos com a ausência tutelar de uma superpotência os tempos são invariavelmente de guerras, caos e desastre. Por exemplo, durante muitos séculos, Roma foi a luz e o farol que guiaram os destinos do mundo ocidental e a sua sombra tutelar servia de regulamento e ao concerto entre os povos “socii et amici” e não é por acaso também que os povos que a precederam adoptaram a lógica da pax romana e acolheram os ensinamentos da cultura greco/romana, a sua religião, o seu direito e a sua praxis política. Desaparecida Roma, foi o que se viu. E a grande e terrível noite medieval fez o seu curso horrendo de guerras, fome, pragas e miséria.

E é aqui que eu queria chegar, para estabelecer um paralelo onde a ausência de uma superpotência nos pode conduzir. E à assunção da inevitabilidade que constitui uma espécie de luta de galos quando no xadrez político só existem, médias-potências que logo se envolvem em disputas territoriais ou de influência do poder pelo poder. Basta aliás reparar, entre outras, nas guerras dos 7, 30 e 100 anos que colocaram a baixa idade média a ferro e a fogo, num frenesim de guerra caótico que tornou a terra num local horrendo para se viver. E, mesmo antes disso, as invasões bárbaras tardias ou as invasões dos mongóis e dos hunos, fazem-nos lembrar a falta que fez a força e o poder da Roma da república ou dos imperadores até ao desastroso reinado de Comodus. Mediante a tese acima expressa, Deus nos livre, portanto, que os EUA deixem de desempenhar o seu papel como superpotência. Depressa apareceriam Estados Islâmicos dispersos ou médias potências como foram a Prússia, França, império Austro-Húngaro, Inglaterra ou Alemanha nos cerca de últimos 200 anos, que tratariam de tentar amarfanharem-se umas às outras instalando o completo caos e desordem. A própria Alemanha das duas últimas grandes guerras não se teria atrevido a desencadear tais excessos se os EUA não estivessem ainda num estádio inicial de poder. Por isto mesmo, sorrio condescendentemente, quando observo por aqui os esquerdosos tontos e apressados a desejar a “morte” da América. Coitados, são mais brutos que portas e devem ser olhados de soslaio e com suspeição antes que façam mal a eles próprios e, pois claro, aos demais. Os EUA após Carter, passaram a ser levados pouco a sério. E o bailarino tonto do Obama, veio dar quase a machadada final, deixando lavrar guerras regionais por tudo quanto é sítio que se estavam a tornar um modo de vida sem qualquer sentido ou propósito. E chega assim o “grande satâ”, epíteto que os os loucos, alucinados e esquerdosos, colocaram ao Sr. Trump. Ou seja, o único presidente americano que não promoveu uma única guerra seja onde for, nem que seja a jogar berlinde, é considerado por toda esta malta estulta como um boçal assassino e até mesmo louco! Nem créditos ou loas lhes dão por promover a paz entre alguns países no médio-oriente ou acalmar o Kim coreano! É obra, sim senhor! E nem se chocam por haver sido entregue o prémio Nobel da Paz ao tonto do Obama que distribuiu guerras por aí como infestação de uma grande praga de piolhos! Sei bem que esta malta rebaldeira e alucinada esquerdosa não é para ser levada muito a sério, mas que faz impressão, lá isso faz! Tirem-mos da frente!...       Miguel Antunes:  Land of the free, home of the brave.

 

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

O desassombro erudito de Jaime Nogueira Pinto

 

Se a Igreja, ou seja, o clero, com todos os seus representantes, não se revê nesta ponderada lição de História de um defensor daquela, destemido e sábio e tão formidavelmente esclarecedor – Jaime Nogueira Pinto – e não se vai esforçar por sair do casulo de apatia e indiferença – talvez sublinhada por ajudas de custo propícias ao cerrar de olhos astuto mas cobarde - usando algum do seu prestígio ainda para recuperar um discurso politicamente mais activo, mau grado – ou por efeito de - uma pseudodemocracia vigente, de envilecimento e gradual perda de princípios básicos sobre valores que se desejariam eternos, e cuja destruição através de tantas malfeitorias estabelecidas em novos ditames políticos e sociais, que Jaime Nogueira Pinto não deixa de referir, corajosamente incriminando-os - então é porque a Igreja segue uma rota habitual de discurso bíblico ou católico, sem mais se preocupar com outros parâmetros formativos e educativos de menor soltura como os que vão sendo instilados na sociedade nova. Se Marcelo Rebelo de Sousa, sem qualquer pudor, finge não ler este exemplar de crónica, como faz com muitas mais que o desprestigiam, por conta das suas imbecilidades inalteradas ao longo dos anos, apesar das críticas, e não toma mais consciência do atoleiro por onde resvalamos, sendo ele, afinal, uma pessoa de bem, se este texto permanece obscuro ou for riscado, em suma, em mesa censória ou estupidamente ignara, dos muitos que poderiam “tomar armas e não o fazem”, também por cobardia ou conveniência própria, então é porque somos mesmo um povo de medrosos, só capazes de reagir em caso de palhaçada grevista – já que, para faltar ao trabalho estamos sempre prontos. Mas direi também, como a maioria dos comentadores: Muito obrigada, JNP.

Mas porque se fica só pela escrita?

 

Dos Fiéis Defuntos ao “Luto Nacional”/premium

Com a Covid 19 e as necessidades de confinamento, quem decide aproveitou para dar mais um passo nas discriminações contra os cristãos.

JAIME NOGUEIRA PINTO

PÚBLICO, 30 out 2020

«Proudhon tinha razão escrevendo: Deus é o mal. Laplace tanto ou mais tinha razão ainda, escrevendo também: a hipótese de Deus é inútil. Mas, acima de todos, a apóstrofe exacta, indispensável, urgente de realizar, vibrou-a Bakunine: “Deus! Mas é preciso suprimi-lo.”»

O autor destas palavras foi um dos chamados “vultos republicanos”, de seu nome Fernão Botto Machado. Quem folheie o Almanaque Republicano e dê com ele, de jaquetão e bigodes retorcidos, mais depressa dirá estar perante um galã da Vizinha do Lado, de André Brun, que de um ferrabrás do ateísmo. Mas engana-se.

Nascido em 1865, autodidacta (não fez exame da instrução primária), Botto Machado entrou para a Maçonaria em 1893, na Loja “Cavalheiros da Verdade” e circulou depois por outras Lojas com nomes igualmente ambiciosos em termos programáticos, como a “Renascença” e a “Razão Triunfante”. De resto, grande parte dos dirigentes republicanos de há 90 anos, quando proclamaram a Primeira República, pertencia à Maçonaria. Eram maçons os dois líderes desaparecidos nas vésperas da vitória, Cândido dos Reis e Miguel Bombarda; era maçon Machado Santos, o herói da Rotunda; eram maçons Bernardino Machado, Sebastião de Magalhães Lima, Afonso Costa e António José de Almeida. E todos tinham expressivos nomes de guerra – Afonso Costa, por exemplo, era “Platão”.

Para a maçonaria francesa do Grande Oriente, a versão dominante e triunfante em Portugal, a Igreja era o inimigo a abater, devendo os maçons, amantes da Razão, da Ciência e do Progresso, seguir o conselho do irmão Voltaire, iniciado na loja das Nove Irmãs de Paris, e “Écrasez l’Infâme”. Além das questões teológicas de fundo, não seria, pois, de estranhar que sucessivos papas e encíclicas condenassem a Maçonaria e proibissem aos católicos qualquer filiação maçónica.

A primeira vez que os maçons tiveram verdadeiro poder temporal foi com a Revolução Francesa. Então, milhares de sacerdotes e religiosos foram mortos. E como os camponeses vendeanos, católicos, monárquicos e fiéis à pequena nobreza local, estragavam o cenário revolucionário (saindo da categoria de “sábio povo em armas pela Liberdade, Igualdade e Fraternidade” e entrando directamente na de “deplorável povo ignaro”), a “Razão, a Ciência e o Progresso” ditaram o genocídio.

Em França, este anticlericalismo activo marcou, depois, a modalidade revolucionária da Comuna de Paris, que fuzilou vinte e quatro eclesiásticos, entre eles o Arcebispo de Paris, Monsenhor Darboy. E políticos da época, como Jules Ferry e Léon Gambetta, não deixaram de perseguir as ordens religiosas, de prender padres e, sobretudo, de lançar as mais absurdas calúnias sobre a Igreja.

Em Portugal, em 1910, os activistas mais zelosos entre os correligionários de Botto Machado, não podendo matar Deus – invisível mesmo ao olho vivo da Loja –, liquidaram dois padres Lazaristas, o Padre Bernardino Barros Gomes, ilustre cientista botânico, e o Padre Alfredo Fragues, confessor da Rainha, morto à coronhada e a tiro.

Seguiram-se a expulsão dos Jesuítas (após científicas medições cranianas indiciadoras de anomalias anatómicas que sinalizavam inequívocas tendências criminais) e uma série de medidas laicizantes, como o fim dos feriados religiosos. O Natal, mais difícil de abolir, foi esvaziado e reformulado como “Festa da Família Portuguesa”.

E como era também necessário higienizar a História, o Primeiro de Janeiro passou a Dia da Fraternidade Universal e o 31 de Janeiro a Dia dos Precursores e Mártires da República. O Primeiro de Dezembro escapou como feriado, mas deixou de ser Dia da Restauração para passar a ser, mais correctamente, o Dia da Autonomia da Pátria Portuguesa. Deu-se também o habitual saneamento da toponímia e multiplicaram-se os nomes de ruas e praças 5 de Outubro e República, como, décadas depois, as 25 de Abril.

As esquerdas (liberais maçonizantes, anarco-progressistas e comunistas) promoveram, em todas as revoluções do século XX, uma encarniçada perseguição à Igreja e aos cristãos, prendendo, torturando e matando padres, religiosos e leigos – na Revolução Bolchevique, na Revolução Mexicana, nos regimes comunistas implantados na Europa Oriental, na China, no Vietname e em Espanha, na Guerra Civil, onde os frente-populistas mataram mais de sete mil bispos, padres, religiosos e freiras, e milhares de católicos, apenas por o serem. Mais que Diocleciano, que não fora meigo com os seguidores de Cristo. Tal como os primeiros séculos da Era Cristã até Constantino, o século XX foi também um século de mártires.

Mas porque se tornaram impossíveis as revoluções bolcheviques – com o ataque armado e a ocupação das centrais telefónicas, das estações de comboios, dos Palácios de Inverno –, e porque Lenine e a sua teoria da revolução foram sendo, no ocidente euroamericano, substituídos por Gramsci e pelas revoluções culturais, a guerra à Igreja, às Igrejas cristãs e a toda a transcendência monoteísta (cristã, judaica ou islâmica) foi mudando de forma.

Hoje já não se trata de expulsar ordens religiosas, de matar padres, de queimar igrejas, como fizeram os democráticos de Afonso Costa em 1910 ou os frente-populistas madrilenos na Primavera de 1936. Trata-se de descristianizar a sociedade mansamente, em suaves prestações, de modo politicamente correcto, indolor, através de leis passadas com ar inocente e distraído, como grandes conquistas da liberdade e do progresso ou já nem isso.

O que se está a fazer entre nós é uma progressiva e estratégica descaracterização da sociedade para cumprir agendas radicais internacionais, através de leis pretensamente libertadoras, passadas “à candonga”, que vêm, não só descristianizando mas desnaturalizando o país: leis inspiradas nas mais delirantes quimeras que oferecem a possibilidade (financiada pelo Estado) de mudar o corpo e moldá-lo, com hormonas, mutilações e enxertos, ao género apetecido; leis que transformam o casamento, mesmo o casamento civil, num contrato entre dois seres, quaisquer que sejam, agora dois homens ou duas mulheres, qualquer dia, quem sabe que mais; leis contrárias à geração de vida numa sociedade que já está há muito com taxas negativas de reprodução; leis que são negociadas e passadas sem qualquer respeito pelo debate público, como a da Eutanásia, aprovada ignorando o parecer negativo da Ordem dos Médicos, da Ordem dos Enfermeiros, da Ordem dos Advogados, do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, da Associação Portuguesa dos Cuidados Paliativos e um abaixo-assinado de cerca de cem mil cidadãos.

Leis que uma esquerda dita moderada, que aceita os pressupostos do capitalismo europeu, vai levianamente negociando por conveniência momentânea com os esquerdistas do marxismo cultural, perante a sonolência geral e acomodada dos que assistem tranquila e resignadamente a estas mudanças – talvez sem se aperceberem que são estas as mudanças que verdadeiramente importam.

Com a Covid 19 e as necessidades de confinamento, quem decide aproveitou para dar mais um passo nas discriminações contra os cristãos. Controles para a Páscoa, mas não para o 25 de Abril; para o 13 de Maio em Fátima, mas não para o 1º de Maio na Alameda; 27 mil pessoas com luz verde para acorrerem à Fórmula 1 em Portimão, mas proibição de deslocações para que os cristãos – e os não cristãos – possam visitar e honrar os seus mortos nos cemitérios no Dia de Fiéis Defuntos. Muitos não puderam sequer acompanhar os seus familiares e amigos mortos recentemente e os cemitérios são ao ar livre, com acessos que poderiam ser controlados com facilidade para evitar aglomerações, mas pouco importa.

Como todos os regimes que, no passado, quiseram regular e imprimir a sua marca nas coisas da Vida e da Morte, ainda que contra a liberdade, o sentimento e as convicções do “povo ignaro”, o poder político resolveu agora esvaziar uma celebração cristã, o Dia dos Fiéis Defuntos, e impedir uma prática enraizada, dando-nos magnanimamente em troca uma bandeira a meia-haste e um asséptico e socialmente distante “Dia de Luto Nacional por Todos os Falecidos, em Especial as Vítimas da Pandemia da Doença Covid-19”.

Mas o povo e a Igreja, por mais adormecidos que aparentemente estejam, têm acabado sempre por acordar. E por resistir.

RELIGIÃO    SOCIEDADE    CORONAVÍRUS    SAÚDE PÚBLICA   SAÚDE    CRISTIANISMO    FERIADOS    LIBERDADES

 

COMENTÁRIOS:

Maria M CB.:  Muito bom. Obrigada!       Gonçalo Pires:  Bravo, Jaime Nogueira Pinto, bravo!!!!!!: Clarisse Seca: JNP traça-nos uma realidade fiel do mal que as esquerdas radicais e radicalizadas, comunistas e neocomunistas nos querem impingir. Querem deturpar a nossa cultura, os nossos valores cristãos. Querem acabar com a nossa liberdade, aos pouquinhos, querem o contrôle total do Estado e querem empobrecer-nos para melhor nos dominarem. Maldita hora em que um perdedor de eleições, tudo usurpou em favor pessoal de salvar a face, para nos conduzir a este cozinhar o povo em lume brando, tal qual o sapo. É preciso que todos os Portugueses acordem urgente, para acabar com estes políticos em causa própria, antes que seja tarde. A própria constituição tem brechas que infelizmente permitem isso e até o próprio sistema semi-presidencialista contribuiu contra um governo ganhador de eleições, para nos trazer a este marasmo a que estamos sujeitos. Temos que acabar com este sistema político e destronar este Presidente já em Janeiro.     Eduardo Abreu Excelente diagnóstico da decadência da civilização ocidental, fundada sobre os valores judaico-cristãos.     Jorge Carvalho Obrigado Jaime Nogueira Pinto por esta excelente lição de História que nos dá. Sem a verdade eles são uns perdedores. Nada resiste à falta de ética! Cá estamos para empurrar esta gente!    JORGE PINTO Excelente! Obrigado! Deveria ser de leitura obrigatória na disciplina de Educação para a Cidadania!      Manuel Magalhães Mais uma vez a realidade descrita por JNP, só não vê quem não quer ou nem sequer tem inteligência para isso...      Domingas Coutinho: Excelente! Pena que o Presidente da República tão cristão, católico apostólico romano como diz ser, esteja também a ser manipulado e levado por esta orquestra contra, não só os nossos usos e costumes, mas também contra a nossa tradição católica. Não consigo perceber porquê. JORGE PINTO > Domingas Coutinho: Porque, acima de qualquer outra coisa, o pr é „addicted” em ser amado, muito especialmente pelos media e academia, ambas esquerdofilizadas. Tem absoluto pavor que ambas o detestem, por isso alinha e alinhará sempre com elas, custe o que custar, renegando o que tiver que renegar. Clarisse Seca > Domingas Coutinho Infelizmente enganou-nos. Parece um yes man do regime    Alberto Pereira Extraordinariamente bem escrito. Obrigado!   Carminda Damiao Excelente texto.    maria aurora: Pouco cristão é ver numa medida que também os defende um ataque. Bem haja a posição sensata, da cúpula ao simples crente, da Igreja Católica em Portugal! Pena alguns insistirem em não ouvir Francisco. Francisco Matos >  maria aurora Que dados tem para dizer isso? A ida ao cemitério não é feita aos magotes, por que então esta proibição?      josé maria > maria aurora Bem visto. JNP não resistiu mais uma vez em baixar de nível de intervenção depois de ter defendido o inenarrável Trump numa das suas anteriores crónicas.      Manuel Magalhães > josé maria O que é que tem a ver Trump com os fiéis defuntos, só uma mente completamente obsessiva e distorcida é que se lembraria de tal coisa... a propósito em ambas as crónicas dou inteira razão a JNP!!!     Rita Salgado Obrigada pelo texto!        ANTONIO MADUREIRA Concordo com tudo, menos com o ultimo parágrafo: de facto, os chefes da Igreja que infelizmente temos, a começar pelo Papa, não parecem estar à altura das circunstâncias. Parece salvar-se apenas o Pároco de S. Nicolau em Lisboa    Maria Alva Excelente. Muito pedagógica a síntese da actividade maçónica na Revolução Francesa e na implantação da República.       H Almeida Muito bom! Muito grato JNP.        Carlos Quartel Há, de facto, uma agenda, um ritmo, a famosa táctica do salame, uma fatia todos os dias, lenta, mas sem interrupção. Começou na linguagem, na lenta viragem em favor do crime e do desprezo pelo vítima, subtis trocas de palavras (género por sexo), passou pelo jovem em vez do ladrão, já entrou na escola com os tais lápis vermelhos por fora, mas azuis por dentro, do brinquedos, dos banhos e das retretes unissexo e não sabemos onde parará. Parece haver uma eminência que tudo controla, e há mesmo sinais curiosos como o apoio ao Islão, para enfraquecer Roma e a agenda dos costumes, para enfraquecer a família. Andará mesmo por aí Belzebu à solta ???        Mário Unas Carlos Quartel À solta e infiltrado na Igreja. Anda por ali um diabo que muito se afadiga para escorraçar Jesus e Maria de sua própria casa.        Paulo Alexandre Ateu > Carlos Quartel Anda, sim! Chama-se Deus e é venerado por milhões de pessoas acríticas, incapazes de ver como são injustas e criminosas as lógicas do dito cujo.     Maria Nunes Excelente. Obrigada JNP.    Adelino Lopes Penso que a vida está impregnada de ironias. Desde logo a “liberdade, igualdade e fraternidade” apregoadas pelos franceses ao mesmo tempo que condenaram (sem julgamento em tribunal) à morte (e outras prisões) milhares de cristãos. Reparem, nem o Salazar (que todos temos de condenar) conseguiu tal feito. Mas, pronto, o Salazar é que é o fascista mau de serviço. Os outros comunistas são bons. A tal ironia. Outra ironia dos nossos tempos tem a ver com a posição do nosso papa. Afinal o papa que se esforça para dar mais “progresso” e “fraternidade” à igreja, que se tem posicionado ideologicamente (muito criticável) a favor de muitos dirigentes progressistas, continua a ver a sua igreja a ser atacada pelos mesmos progressistas. Caso para dizer: é a vida. Ou não. De qualquer modo, é possível concluir por uma certeza: os progressistas actuais não defendem a liberdade, nem a igualdade, nem a fraternidade. E estão-se marimbando para “direitos”, ou o que quer que seja, que permita às pessoas alcançarem aqueles desideratos.     Paulo Alexandre : Ateu  > Adelino Lopes Lindo discurso! Pena é que V. Exa. seja adepto de um Hitler cósmico que assassinou todos os habitantes da cidade de Sodoma e que tirou a vida a todos os primogénitos do Egipto! Isso, sim, já é louvável e digno, certo?      Fernando Pité > Adelino Lopes Comparar Salazar com outros dirigentes fascistas, incluindo Franco de Espanha, é um disparate. Salazar sendo sem dúvida um ditador (e quem não tem de o ser quando tem de preservar a sua segurança e a unidade do EStado, foi de entre todos o melhor estadista. Mesmo que com alguns erros, com um Estado fraco, fez um jogo politico muito hábil, conservando a neutralidade da Península Ibérica, fazendo um jogo do "gato e do rato" com os beligerantes, livrando-nos de um conflito bélico de terríveis consequências, e ajudando a salvar milhares e judeus e outros, mesmo que tivesse de "bater o pé" aos que estavam em guerra.