Rei (ou Presidente), importa uma cabeça a dirigir, como já Sá de Miranda expunha, na sua Carta a D. João III, e os animais da selva o comprovam, na sua submissão ao leão:
«Um
rei ao reino convém; Vemos que alumia o
mundo; Um sol, um Deus o sustém: Certa a queda, e o fim tem O reino onde há rei segundo.
«Não
ao sabor das orelhas, Arenga estudada e
branda; Abastam as razões velhas: A cabeça os membros manda; Seu rei seguem as abelhas.
«A
tempo o bom rei perdoa; A tempo o ferro
é mezinha: Forças e condição boa Deram ao leão coroa De sua grei montezinha….»
O certo é que as chefias são
necessárias, há delas bem respeitáveis, e Salles da Fonseca escolheu duas que o mostraram, embora temporariamente,
inseridas em contextos pouco propícios à sua permanência no país, de uma
população desordeira manipulada pelas cabeças pensantes de quem a instigava,
com os motivos ambiciosos que são os de todos os tempos, afinal. E Salles da Fonseca faz passar o
seu sentido crítico não cáustico mas graciosamente incisivo - e didáctico -
sobre a actualidade das suas personagens, na teatralização a que subordina
essas figuras-espíritos, de diferentes esferas políticas, mas afinal, bem
universais. Pelo menos cá, onde a História se repete, infindavelmente, com
intervalos de disfarce…
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA A BEM DA NAÇÃO, 07.10.20
Personagens:
Rei D. Manuel II - 1889 – 1932 (exílio em
Inglaterra, 1910-1932)
Presidente Manuel Teixeira Gomes - 1860 –
1941 (Embaixador em Inglaterra, 1911-1918; PR, 1923-1925)
* * *
Os espíritos vagueiam pelos lugares dos
respectivos afectos, não pelos cemitérios.
Nascido no palácio de Belém, D. Manuel
II vagueava pelo jardim e parou junto ao gradeamento olhando o Tejo que naquele
dia estava azul. Como sempre, cruzara-se com quem não o via nem sequer o sentia
mas, desta vez, foi ele próprio que sentiu que quem estava a seu lado também se
encontrava nessa tal outra dimensão, a volátil…
MTG
- Creio, Majestade, que, finalmente,
podemos conversar sem que rebente algum escândalo político.
R
- Ah! Senhor Embaixador, sim, finalmente.
Mas ao Senhor também coube a amarga tarefa de chefiar este Estado. Tratá-lo-ei
por Presidente e não mais por Embaixador.
MTG
- Sim, amarga tarefa, essa, a de se
ser Chefe de Estado constitucional em Portugal. Constitucionalmente, nada se
pode fazer mas, afinal, é ao Chefe de Estado que todas as explicações são
exigidas.
R
- Exacto! Mas mais vale assim do que o
tratamento dado aos déspotas em final de carreira a quem cortam o pescoço. E
nem sequer foi preciso a Luís XVI de França ser déspota – que nem sequer o foi
de modo evidente - para o «despentearem».
MTG
– O Senhor seu Pai não era déspota e…
R – O meu Pai nomeou um Chefe de Governo que bulia
com os Partidos (tanto monárquicos como com o Republicano) que se consideravam
os «donos» do País. Mexeu num ninho de vespas ou, como dizem os brasileiros,
«cutucou a onça com vara curta». Desequilibrou um equilíbrio muito instável
para tentar sair de um caminho que não levava a lado nenhum e…
MTG
- … e aqui estamos nós a recordar situações
aparentemente diferentes – uma em Monarquia e a outra em República – para
concluirmos que, afinal, o problema português tem mais a ver com as elites
do que com o tipo de Regime. Estamos sempre a esbarrar na gestão da
«coisa pequena», na falta de grandes rasgos de imaginação, de quem lance o
trampolim para o meio do ginásio.
R
- … e se alguém o faz, logo os
medíocres se assanham em denegrir essa iniciativa.
MTG
– Exactamente, Majestade! O nosso
problema fundamental é a mediocridade polvilhada de inveja. Sacrificam-se os
homens em nome de fins históricos apregoados como sublimes e, afinal, esses
fins encontram-se ao nível das couves e das batatas a que os arautos da
História se dedicam mal saem dos focos que inundam a ribalta. O juízo
moral que incide sobre o Chefe e a sua obra é condicionado por essas couves e
batatas, é tão fino que dá para lhe chamarmos grosseiro. Foi esse o julgamento
que produziu o regicídio, foi esse o julgamento que levou Vossa Majestade a
Ericeira no dia 6 de Outubro de 1910, foi o desespero pela obra imperfeita que
me levou a embarcar no navio «Zeus» em Dezembro de 1925 com destino ao norte de
África. Porque a minha sorte teria sido igual à de Vossa Majestade caso
eu tivesse deixado a iniciativa por mãos alheias. Dá para revermos o que
fizemos enquanto passámos pelo «activo»?
R – Sim, claro que dá! Pela minha parte, mantive-me
fiel à Carta Constitucional que jurei defender aquando da minha entronização
perante as Cortes.
MTG
- …ocasião em que baniu a cerimónia do «beija-mão real». Vendo a
História ao contrário, apetece perguntar se valeu a pena. Nós,
republicanos, achámos bem e houve quem aplaudisse a abolição de um cerimonial
anacrónico mas não foi isso que levou a que se desistisse da mudança de Regime;
em simultâneo, poderá ter acontecido que alguns monárquicos se sentissem menos
vinculados ao Rei.
R – Obediências
servis, dispensei-as porque não as tenho como seguras nem compatíveis com a
dignidade humana. Isso era tipicamente medieval. Apesar das fragilidades
que aponta, acho que fiz bem ao abolir uma cerimónia abjecta aos olhos do
século XX. Quando o Senhor assumiu a Presidência, achar-se-ia mais
confortável com algo semelhante por parte das Ordens profissionais ou de outros
importantões da sociedade civil?
MTG –
Claro que não! Mas, em República, não há juras dessas…
R –
Pois! Há outras, daquelas que não se fazem às claras.
MTG –
Como no tempo da Monarquia.
R - …mais
a Carbonária. Mas tanto o Senhor como eu, já não estamos em condições de
corrigir a História. Fica a conclusão de que ambos fizemos o melhor que pudemos
pelo nosso querido país.
MTG – Tiro também outra conclusão: Vossa
Majestade e eu estávamos, afinal, do mesmo lado da barricada, o da democracia,
ambos opostos aos totalitarismos.
R –
Senhor Presidente, agradeço ter vindo conversar. Acho que ainda temos mais
coisas a dizer mas terá que ficar para uma próxima oportunidade pois estão a
chegar vivos que querem ver o Tejo.
O Presidente Marcelo chegou-se à grade
da varanda para fazer uma selfie com Ursula von der Leien mas não
viram os espíritos que se esfumaram.
Mais
do que solta, esta é uma conversa improvável
Outubro de 2020 Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS
Anónimo 07.10.2020: Mas é uma
conversa de espíritos com muito espírito.
Francisco G. de Amorim 07.10.2020: Bela
conversa. Acho que o Marcelo, mesmo que a tivesse ouvido, não entendia. Ele só
entende de se exibir e deixar-se ser comandado pelo famigerado PS. Fica a
pergunta: para que serve um Presidente da República, ou um Rei, como aconteceu
com os nossos, e se está a passar agora em Espanha?
Adriano Lima 07.10.2020: : Sr. Dr. Salles da Fonseca, a leitura deste seu texto encheu-me as medidas. Estava a precisar disto para terminar em beleza este dia de Outono, mais um dia em que confinámos o corpo mas sem ao menos conseguir soltar o espírito, libertando-o das agruras e infortúnios deste tempo plúmbeo e inseguro que paira sobre todos os cantos do planeta. Felizmente para si que teve a arte de soltar o seu espírito para entrar nessa dimensão oculta em que surpreendeu o diálogo entre estas duas figuras da História. Figuras que foram vítimas inocentes da tragicomédia que é o exercício do poder no nosso país. Doravante noutra dimensão do espaço e do tempo, libertas das contingências da mediocridade, da inveja e das rivalidades insanas e prosaicas, ei-las percorrendo os subterrâneos da nossa consciência colectiva, de candeia na mão à procura de uma explicação para o inexplicável. Na verdade, as elites e os seus egoísmos e caprichos é que estão na origem dos tropeções que constantemente sofremos no itinerário da nossa vida colectiva. Chamem-se partidos políticos, sindicatos, ordens ou associações profissionais, a questão é saber se o fadário nunca terá fim ou se será necessário um qualquer exorcismo para nos libertarmos de fantasmas que não conseguimos enxergar à vista desarmada mas que las hay hay. Gostei imenso e aceite os meus parabéns.
Anónimo 08.10.2020: Ficando a aguardar as pré-anunciadas mais “Conversas Soltas” com a qualidade a que nos habituaste, aqui te envio duas linhas, a título de comentário, sobre estas Conversas, com o dígito 1 .Apesar de os bons espíritos terem, julgo eu, tempo infinito para conversar, é sempre arreliador, penso, que as tertúlias deles sejam interrompidas pela proximidade de profanos, como aconteceu neste caso. Gostaria de os ter ouvido falar sobre a experiência do exílio real dramaticamente imposto e do autoexílio voluntário republicanamente assumido, um e outro só para voltarem à Mãe-Pátria já defuntos. E o que eles diriam, se mais tempo tivessem, sobre as respectivas experiências políticas? O que terá sido reinar, em 32 meses, com 6 diferentes Presidentes de Conselho de Ministros, ou que foi presidir à República, em 26 meses, com 8 sucessivos Chefes de Governo, um dos quais até bisou!... A curiosidade mantém-se. Veremos os que nos dizem as futuras “Conversas Soltas” …Abraço. Carlos Traguelho
NOTAS:
Carbonária
Portuguesa
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
A Carbonária Portuguesa era uma organização secreta, sem ligações formais à Maçonaria
Portuguesa ou outras Obediências Maçónicas, embora esta
organização se tenha utilizado das estruturas do então Grande Oriente Lusitano Unido para alojar
os seus órgãos superiores, tendo colaborado oficialmente com esta Obediência
para a implantação
da República em 5 de Outubro de 1910. Por causa dessa
ocorrência e esgotado o seu objectivo principal, desaparece.
A Fundação e reorganização: Fundada entre
finais de 1898
e seguramente antes de 1900
é Luz de
Almeida quem nos dá uma perspectiva de como as coisas se passaram,
assim as quatro Lojas que
pertenciam à Maçonaria Académica, a saber,
"Independência",
"Justiça",
"Pátria"
e "Futuro", passaram a Choças sendo os
seus membros divididos em grupos de vinte, cada um desses grupos, ou Choças
adoptou um título da sua livre escolha………
Nenhum comentário:
Postar um comentário