Forma eficiente e remansosa de nos dar a
conhecer coisas – corriqueiras ou menos – de um passado histórico de
acabrunhamento, em gente, definitivamente pertencente à “gente da minha terra” sobre que, lucidamente, escreveu Amália: “Esta
tristeza que trago / Foi de vós que a recebi”. Salles da Fonseca assim o intuiu, também ele sensível às dores de
impotência pendentes, afinal, sobre um povo triste e resignado, quer seja de
alto cargo ou de nenhum.
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA
A BEM DA NAÇÃO,10.10.20Salles
da Fonseca
Personagens:
Rei D. Manuel II
Presidente Manuel
Teixeira Gomes
Cenário – Sala de
música do Palácio da Ajuda, Lisboa
No meio da
cena, o violoncelo do Rei D. Luís com uma poltrona de cada lado
*
* *
R –
Senhor Presidente, seja bem-vindo à casa dos meus avós.
MTG –
Obrigado, Majestade! A casa que, durante muitos anos, foi a «Real Barraca», de
madeira.
R –
Dá para imaginar o susto que o meu tetravô, o Rei D. José, apanhou no Paço da
Ribeira com tudo a desmoronar-se e com o tsunami que alagou de enxurrada a
baixa de Lisboa. Também eu nunca mais voltaria a entrar numa casa de pedra e
cal.
MTG –
Mas aqui estamos nós no cimo da Calçada da Ajuda, a recato de tsunamis e junto
do violoncelo do Senhor D. Luís.
Chegou alguma vez a ouvi-lo tocar?
R –
Não. Eu nasci cerca de um mês depois da sua morte mas a minha avó dizia que em
Portugal havia quem tocasse melhor violoncelo do que ele e que em Itália,
então, muito melhor.
MTG –
Ah, sim, a Corte de Sabóia devia ser
um centro cultural de primeira grandeza.
R – Era
isso que a minha avó dizia. E foi lá que cumpriu o exílio. Exilou-se no seu
próprio país. Teve mais sorte que nós.
MTG –
E, contudo, ambos tivemos exílios dignos. Vossa Majestade teve um ambiente
acolhedor e eu tive o ambiente que eu próprio escolhi.
R –
Ainda hoje estou convencido de que o ambiente acolhedor que nos rodeou, à
minha mãe e a mim, se ficou muito a dever a si, Senhor Presidente, enquanto
Embaixador em Inglaterra.
MTG – A
minha preocupação era a de que ninguém importunasse Vossas Majestades. A
República nunca me deu ordens para hostilizar a Família Real exilada. Foi-me
fácil actuar pela positiva. Na maior parte das vezes, bastou-me não fazer nada.
R – Mas
houve ocasiões em que teve que agir.
MTG –
Admirei muito o oferecimento de Vossa Majestade para integrar o Corpo
Expedicionário Português na Flandres. Apoiei a ideia mas Lisboa não deu
seguimento ao meu apoio e recusou a ideia. Embaixador não se enfurece, mas
lastimei-me à Rainha Alexandra. Terá sido ideia dela a integração de Vossa
Majestade como Oficial da Cruz Vermelha britânica.
R –
Adivinhei que tinha havido alguma actuação do então Embaixador de Portugal
junto de alguém que nunca identificara até agora.
MTG –
Soube então que Vossa Majestade ficou zangado por não ter sido aceite a sua
generosidade mas, perante a recusa, não consegui fazer grande coisa.
R –
Mais do que zangado, fiquei triste. De princípio, fiquei desiludido com a
nomeação inglesa para a Cruz Vermelha mas, passados uns dias, pensando mais
serenamente, concluí que só podia ter sido obra do Senhor Embaixador. E foi
esse o sentido do meu super-discreto cumprimento em Ascot quando o Senhor, à
distância, tirou o chapéu e eu fingi dizer que sim à minha mãe que, a meu lado,
nada dissera. Ela percebeu tudo e limitou-se a dizer «Vaut mieux comme ça»,
discretamente e à distância. Espero que tenha percebido o meu agradecimento.
MTG –
Sim, percebi, e foi essa afabilidade que me deu alguma tranquilidade no
desempenho das minhas funções. E foi também com entusiasmo que anunciei a
iniciativa de Vossa Majestade de oferecer a sala de operações ortopédicas ao
Hospital Português em Paris. Quando me chumbaram a ideia de colocar uma
placa a referir que fora Vossa Majestade que oferecera a sala, tive que
puxar pela cabeça e acabar por mandar escrever aquela ignomínia que lá foi
colocada «Oferta de um português em Londres». Peço que me desculpe.
R – É
claro que desculpo! Na altura, achei mal mas, face às circunstâncias, não vejo
hoje que melhor solução houvesse. Sobretudo com o jacobino que então
representava Portugal em França. Quem era ele?
MTG –
Já não me lembro mas não era por certo alguém que gostássemos de ter nestas
nossas conversas.
R –
Claro que não! É isso que admiro em si, Senhor Presidente: o Senhor não é
jacobino e tem uma concepção serena da República, deseja para Portugal o mesmo
que eu. Como tudo poderia ter sido diferente se nos tivéssemos conhecido no
início do meu reinado…
MTG
– Como se viu, também eu não fui capaz de fazer grande «coisa». A
insubordinação que vigorava entre as elites nos finais da Monarquia era a mesma
que me levou ao desespero como Presidente da República. Só uma mão pesada
que se abatesse sobre essa balbúrdia poderia resolver o problema mas nem Vossa
Majestade nem eu éramos filosoficamente capazes disso. As elites portuguesas
encarregam-se ciclicamente de fazer esboroar as intenções inocentes dos
democratas liberais.
R –
Não merecem a liberdade que lhes demos a servir. E que me conta do seu
exílio?
MTG –
Contarei com o maior gosto numa próxima oportunidade porque o pessoal da
limpeza está a entrar ao serviço e não convém que nos confundam com alguma
nuvem de pó.
R –
Muito bem, o nosso próximo encontro vai ser em Bougie. A nós, o
Governo da Argélia não exige Passaportes nem Vistos.
Outubro de 2020
Henrique Salles da Fonseca
Tags: história
COMENTÁRIOS
Anónimo 10.10.2020: Quanto eu
daria para presenciar ESTES MAGNÍFICOS encontros. Muito bom.
Anónimo 10.10.2020: Excelente
escrita em diálogo directo. Também muito me surpreendeu as referências ao violoncelo
e ao respectivo Violoncelista. Parabéns
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