Estranhas evocações, estas, que nos
reduzem ao papel de fantasmas, que é, afinal, aquilo que também sentimos, nesta
hora em que um vírus se instalou num mundo antes fogoso e libertário e hoje se
tornou local de medos e frustrações que as próprias crianças já pressentem, na
tristeza da sua escolaridade envolta em máscaras de pesadelo. E Salles da Fonseca assim nos vai
dramatizando vidas que já foram, forma engenhosa de nos dar a saber feitos
amenos e pouco conhecidos, de uma História de
fragilidades contínuas – a nossa.
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 12.10.20
Personagens:
Rei D. Manuel II
Presidente
Manuel Teixeira Gomes
Cenário – varanda do hotel em que o Presidente
viveu de 1925 a 1941 frente ao Mediterrâneo na cidade de Bougies, leste da
Argélia.
*
* *
MTG – Majestade, é uma honra recebê-lo no meu
local de exílio. E, sobretudo, tão longe de Lisboa.
R –
Ora, ora, Senhor Presidente, como sabe, nesta nossa condição, tanto nos faz a
distância de Lisboa ao Porto como de Portimão a Bougies. E, curiosamente, estas
são paragens que conheci na infância.
MTG – Ah! Desconhecia por completo.
R –
Sim, sim. Na minha infância, fizemos um cruzeiro no yacht «Amélia» até ao
Egipto. No regresso, se bem me lembro, percorremos vários portos
nesta costa. Mas do que melhor me lembro é da entrada em Valeta, a
imponência das muralhas do porto… E é claro que, do Egipto, me lembro das
pirâmides e duma volta que dei num camelo.
MTG
– Também conheci muitas destas paragens. Não na infância mas já como jovem
adulto quando andei ao serviço da casa comercial do meu pai, a comprar e
vender frutos secos. Sobretudo, amêndoa do Algarve. Mas o mercado
era maior do que a produção e tínhamos que comprar noutras fontes. Viajei muito
e ganhámos muito dinheiro. Mas… «nem só de pão vive o homem» e tive que
enveredar por outros caminhos.
R - Os
da literatura e da política?
MTG – Exacto.
E assim foi que me vi em Londres como Embaixador.
R
– E que balanço faz dessa missão? Se não me engano, foram sete anos, ou
seja, muito mais do que o habitual.
MTG
– Era uma missão que a todos parecia impossível. Levar a Inglaterra a reconhecer a República sob a
presença da Família Real acabada de chegar em exílio forçado, com laços
familiares e de amizade pessoal com a Família Real inglesa… Bem, reconheço
que a atitude serena da Família Real Portuguesa me facilitou enormemente a
missão. Os ingleses fizeram-me saber muitas vezes que admiravam a serenidade
do relacionamento de Vossa Majestade com o representante da República e –
não deveria ser eu a dizê-lo – também apreciavam a atitude serena da
representação diplomática. Tiveram sempre a delicadeza de nunca referirem
que parecia sermos amigos. Ainda bem que tiveram esse cuidado. Evitaram
problemas políticos que Vossa Majestade dispensava e a República, ali
representada por mim, também não queria de modo nenhum.
R –
Gosto de confirmar que não fui motivo de preocupação. O Senhor devia ter muito
mais com que se preocupar…
MTG – … o problema da dívida portuguesa, a
ultrapassagem das sequelas políticas do «Ultimatum» que continuavam a azedar as
relações bilaterais e, mais tarde, a pré-Grande Guerra, a nossa participação
nos combates integrados nas Forças Britânicas, o nosso desempenho militar em
África e mais um ror de temas que na altura pareciam relevantes mas que hoje
dão vontade de rir.
R - Lembra-se
de algum?
MTG -
O empenho que coloquei na satisfação do pedido que a rainha Alexandra me fez
de lhe redecorar o seu gabinete de trabalho com prejuízo de tempo na análise de
informações mais ou menos relevantes que os Serviços de cada lado me iam
transmitindo para eu enviar ou não à outra parte.
R –
Os ingleses enviavam-lhe informações?
MTG – Informações classificadas que eu
deveria analisar e encaminhar para quem eu considerasse conveniente. Nem sempre
são as vias habituais, Majestade.
R – Pois,
pois… Nem todos estão nos cargos certos, nem todos são merecedores das
informações, nem todos percebem o que elas significam…
MTG -Nem
todos os políticos ou funcionários se interessam pelo fim da História.
O fim da História – não o fim cronológico nem
biológico mas, sim, o do alcance dos grandes objectivos da Humanidade tais como
o equilíbrio económico estrutural, a harmonia social, a abastança cultural e
moral – é nisso que o animal histórico, o
homem, não pensa tão frequentemente quanto devia; dedica-se a questões menores,
à análise conjuntural e perde o sentido dos grandes objectivos da Humanidade, o
fim da História. Como Hegel diria, «a verdade que os homens demandam».
R - Sim,
Senhor Presidente, concordo, mas já os latinos diziam «primum vivere, deinde
philosofari» e nós, em vida, ainda estávamos na fase de tentarmos alcançar a
primeira etapa, a do conforto material. Certa vez, tive conhecimento de uma
discussão sobre o local politicamente mais apropriado para construir um simples
chafariz para dar de beber a cavalos e azémolas. Um
«Sentido de Estado muar».
MTG
– E quando eu fui Presidente, as discussões não seriam muito diferentes
dessa. Tudo tem a ver com os modos de satisfazer eleitorados,
de ganhar votos nas eleições seguintes. E
um Rei é deposto e um Presidente é levado ao desespero por causa da aguada de
burros e mulas…
R – E
por quê este exílio em Bougies?
MTG –
Porque naquela época, aqui era a França exótica onde podia entregar-me
tranquilamente à escrita e onde encontrei quem cuidasse de mim.
R –
Senhor Presidente, fiquemos por aqui. Acho que continua a não querer contar
tudo mas não se esqueça de que, para nós, «tudo o vento levou». O nosso próximo
encontro vai ser na Ericeira onde
espero espantar alguns colegas nossos.
MTG –
Que colegas,
Majestade?
R – Fantasmas.
Outubro de 2020
Henrique Salles da Fonseca
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