quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Prosa rimada?

 

Sempre estranhei que Eugénio Lisboa, um senhor da cultura, que conheci em Lourenço Marques, e cujas desavenças literárias jornalísticas - com Rui Baltazar, por exemplo, futuro ministro de Samora Machel, (com espanto meu, que o conheci na adolescência e mais tarde foi nosso amigo de Coimbra e de Lourenço Marques) – cujas desavenças literárias, repito, eram escritas com superior arte satírica, em excelência de linguagem prosística que eu considerei, por vezes, rebuscada e pedante (talvez por atingir o meu amigo - cujas manobras políticas a favor da descolonização, de resto, só mais tarde topei e me desiludiu, como traição), sempre estranhei que, como “poeta”, Eugénio Lisboa enveredasse pelo simplismo puramente brincalhão que não considerei como arte. Tive mesmo ocasião de o referir num artigo em “Cravos Roxos” (1981), no texto “O êxito das palavras”, a propósito de um “poema” contrário aos meus pruridos sobre “arte poética”, que transcrevo, (com a vaga sensação de que já antes o transcrevi aqui):

“….Logo após a implantação do regime democrático, pude constatar como muitas das obras censuradas antes ditatorialmente continham termos desafectos aos pudores fascistas. Foi o caso de um poema de Eugénio Lisboa – “Camoniana Fernandina” – após o 25 de Abril extraído da gaveta pelo consagrado crítico literário moçambicano para o jornal “Notícias” de Lourenço Marques, como demonstração da violência literária tiranizante do governo anterior a essa data. Do poema monoestrófico que, pelo seu título, deveria parafrasear Camões e Pessoa, apenas fixei um termo chocante para a minha sensibilidade de fascista que era então – mas já não sou, confesso sem falsa modéstia. Era o termo “fornicar” o qual me proporcionou amplas perspectivas sobre o futuro das letras e da formação moral da sociedade portuguesa, de resto bem demonstrada já agora através de revistas pornográficas e dos filmes eróticos abundantes e dos jornais ideológicos também abundantes, como “A MERDA”, consentidos pelo nosso governo, e apregoados estes últimos em frases ladinas por crianças vendedoras com um precoce sentido autocrítico bastante pessimista, inexistente no crítico literário supracitado….”

Mas o título do artigo de Nuno Pacheco, de facto, surpreendeu-me: Considerar “poesia” os exemplos que cita de “Poemas em tempo de Peste” o livro recentemente publicado de Eugénio Lisboa (que, de resto, é o primeiro a defini-los como “poemas”), não o esperava de quem tem defendido tão corajosamente a ortografia da língua portuguesa contra o aborto do AO90. Só uma visão hiperbólica grotesca ou laracheira, de amigos de seita – seita democrática, que seja - pode transformar em “poesia”, as breves “paródias” sem grande fundura ideológica, desafios brincalhões os exemplos transcritos, sofrendo, talvez, de covid19.

 

OPINIÃO

Querem enfrentar a pandemia? Façam como Eugénio Lisboa: ataquem-na com poesia

Em Poemas em Tempo de Peste, Eugénio Lisboa enfrenta o vírus com ironia e acutilância, sem tréguas.

NUNO PACHECO

PÚBLICO, 8 de Outubro de 2020

Há muitas formas de lidar com a pandemia, desde as sanitárias (básicas e essenciais) às acções de resistência. Entre estas, estão na primeira linha as artes. Que, sendo das maiores vítimas das privações ditadas pelos cuidados de saúde, também vão reagindo, fazendo da pandemia pretexto e mote para as mais diversas criações. Ainda é cedo para saber o que, de tudo isso, ficará para o futuro, mas há, já hoje, obras que nos interpelam. Como, por exemplo, o recém-editado livro de Eugénio Lisboa “Poemas em Tempo de Peste” (Guerra & Paz, Setembro de 2020). Ensaísta, poeta, crítico literário, nascido em 25 de Maio de 1930 em Moçambique (na antiga Lourenço Marques, hoje Maputo), autor de inúmeras obras e o maior especialista português em José Régio, Eugénio Lisboa já tinha escrito, quase no início da sua Crónica dos Anos da Peste (em dois volumes, editados em 1973 e 1975), isto: “Quando a peste cerca a comunidade, a confusão e o salve-se quem puder entram na ordem do dia.” Agora, tomando a pandemia como uma outra peste, ele escolheu a poesia para, entre a observação irónica e a palavra acutilante, lhe desferir os golpes que a inspiração lhe foi ditando. Impressos por ordem cronológica, de “31 de Março do Ano da Peste”, data do primeiro (todos estão datados) até 28 de Julho de 2020, dia do último, é como se através destes seus poemas nos debruçássemos sobre uma janela onde a vida agora mal passa.

Um exemplo: “As ruas ficam desertas/ e os laços que a vida laça / logo tu os desapertas/ ao ver a morte que passa.” (págs. 17-18) Ou: “Antes gostávamos de estar em casa,/ e o vírus deu-nos isso de presente/ mas como o estar em casa nos atrasa/ a vida, que ficou absurda, de repente!” (pág. 21) Ou ainda este excerto, glosando João de Deus: “Beijo na face pedia-se e dava-se: / agora, menino, o desejo trava-se!” (pág. 25) Há também, e muitas, observações irónicas e mordazes, algumas ao estilo das velhas cantigas de escárnio e maldizer. Hão-de recordar-se de como se brincou, logo a seguir ao 25 de Abril, com o facto de não terem saltado logo das gavetas as tais obras-primas que se dizia guardadas ao abrigo da censura, prontas a publicar. E não as havia. O que Eugénio Lisboa agora escreve lembra esses dias: “Preparo-me, com gozo, para ver,/ se tudo isto enfim terminar,/ quantas obras-primas vai haver/ nas gavetas por aí a engordar!” (pág. 21)

Para cada poema, há inspirações várias. Como a triste sina dos mais velhos. Em “Conselhos aos idosos de Christine Lagarde e outros benfeitores” (incluindoum senhor da América do Norte”), ele termina assim: “Mas viver não é exagerar,/ há que cuidar sempre dos cifrões:/ prà economia não parar,/ metam os velhos à vida travões!” (pág. 35) E assina: “Eugénio Lisboa, que ficou muito preocupado com a economia do globo, que ele tem estado, sem ser por mal, a prejudicar.” Não escapam à mordacidade da sua pena Trump ou Bolsonaro, nem tão-pouco o CDS ou o Chega, cada qual a seu pretexto. Mas como é esta nova peste que o move, Eugénio Lisboa centra-se nos seus efeitos, discorrendo sobre coisas como o amor virtual (“usa-se o computador,/ nestes dias desolados,/ para fazer amor,/ mas com pífios resultados.”), a Vénus de Milo sem público no Louvre, Fernando Pessoa sozinho no Chiado, ou a língua portuguesa (“Com a língua portuguesa me caso,/ com ela vivo quando é preciso;/ a língua portuguesa não tem prazo/ e veste-se de luxo e conciso.”, pág. 63). Mas recorda também eras de saudades suas, como as do Índico; ou figuras saudosas, com a do poeta Reinaldo Ferreira (1922-1959) ou a da sua mulher Maria Antonieta, sua companheira em 57 anos, que morreu em 30 de Julho de 2016 e à qual já havia dedicado não só um volume inteiro, Acta Est Fabula, Epílogo (Opera Omnia, 2017) como livros posteriores.

Dois últimos excertos: um, dedicado à sua gatinha, Ísis: “É esta cativa/ que me tem cativo,/ só com ela vivo/ por pouco que viva.// (…) A minha gatinha,/ de porte altivo,/ mantém-me cativo/ coa sua patinha.” (pág. 27) Assina: “Eugénio Lisboa, lembrando-se vagamente de um poema de Camões, um seu colega em poesia, que também passou maus bocados.”

E este outro, intitulado “Convite aos poetas da República”, como remate: “Nestes tempos de aflição,/ quando a angústia nos devora,/ não é grande petição/ pedir à lira que chora/ que tente mudar de vida:/ que se torne atrevida,/ sarcástica, aguerrida,/ acutilante, fodida!/ Lixe-se a melancolia,/ refúgio de quem não luta,/ e combata-se, de dia,/ o vírus filho da puta!/ Às armas, caros poetas/ às armas todos os dias:/ só desistem os patetas/ que têm as partes frias!” (págs. 37-38) Por que esperam?

Nuno Pacheco

tp.ocilbup@ocehcap.onun

TÓPICOS

LIVROS  CULTURA-ÍPSILON  OPINIÃO  POESIA  LÍNGUA PORTUGUESA  MOÇAMBIQUE  JOSÉ RÉGIO

 

Nenhum comentário: