Sempre estranhei que Eugénio Lisboa, um senhor da cultura, que conheci em
Lourenço Marques, e cujas desavenças literárias jornalísticas - com Rui Baltazar, por exemplo, futuro ministro de Samora
Machel, (com espanto meu, que o conheci na adolescência e mais tarde foi nosso amigo
de Coimbra e de Lourenço Marques) – cujas desavenças literárias, repito, eram
escritas com superior arte satírica, em excelência de linguagem prosística que
eu considerei, por vezes, rebuscada e pedante (talvez por atingir o meu amigo -
cujas manobras políticas a favor da descolonização, de resto, só mais tarde
topei e me desiludiu, como traição), sempre estranhei que, como “poeta”, Eugénio Lisboa enveredasse pelo simplismo puramente
brincalhão que não considerei como arte. Tive mesmo ocasião de o referir num
artigo em “Cravos Roxos” (1981), no
texto “O êxito das palavras”, a
propósito de um “poema” contrário
aos meus pruridos sobre “arte poética”, que transcrevo, (com a vaga sensação de
que já antes o transcrevi aqui):
“….Logo
após a implantação do regime democrático, pude constatar como muitas das obras
censuradas antes ditatorialmente continham termos desafectos aos pudores
fascistas. Foi o caso de um poema de Eugénio Lisboa – “Camoniana Fernandina” –
após o 25 de Abril extraído da gaveta pelo consagrado crítico literário
moçambicano para o jornal “Notícias” de Lourenço Marques, como demonstração da
violência literária tiranizante do governo anterior a essa data. Do poema
monoestrófico que, pelo seu título, deveria parafrasear Camões e Pessoa, apenas
fixei um termo chocante para a minha sensibilidade de fascista que era então –
mas já não sou, confesso sem falsa modéstia. Era o termo “fornicar” o qual me
proporcionou amplas perspectivas sobre o futuro das letras e da formação moral
da sociedade portuguesa, de resto bem demonstrada já agora através de revistas
pornográficas e dos filmes eróticos abundantes e dos jornais ideológicos também
abundantes, como “A MERDA”, consentidos pelo nosso governo, e apregoados estes
últimos em frases ladinas por crianças vendedoras com um precoce sentido
autocrítico bastante pessimista, inexistente no crítico literário
supracitado….”
Mas o título do artigo de Nuno Pacheco, de facto, surpreendeu-me: Considerar “poesia”
os exemplos que cita de “Poemas em
tempo de Peste” o livro recentemente publicado de Eugénio Lisboa (que, de resto, é o primeiro a
defini-los como “poemas”), não o esperava de quem tem defendido tão
corajosamente a ortografia da língua portuguesa contra o aborto do AO90. Só uma visão hiperbólica grotesca ou
laracheira, de amigos de seita – seita democrática, que seja - pode transformar
em “poesia”, as breves “paródias” sem grande fundura ideológica, desafios
brincalhões os exemplos transcritos, sofrendo, talvez, de covid19.
OPINIÃO
Querem enfrentar a pandemia? Façam como
Eugénio Lisboa: ataquem-na com poesia
Em Poemas em Tempo de Peste, Eugénio
Lisboa enfrenta o vírus com ironia e acutilância, sem tréguas.
NUNO PACHECO
PÚBLICO, 8 de
Outubro de 2020
Há
muitas formas de lidar com a pandemia, desde as sanitárias (básicas e
essenciais) às acções de resistência. Entre estas, estão na primeira linha
as artes. Que, sendo das maiores vítimas das privações ditadas pelos
cuidados de saúde, também vão reagindo, fazendo da pandemia pretexto e mote
para as mais diversas criações. Ainda é cedo para saber o que, de tudo
isso, ficará para o futuro, mas há, já hoje, obras que nos interpelam. Como,
por exemplo, o recém-editado livro de Eugénio
Lisboa “Poemas em Tempo de Peste” (Guerra & Paz, Setembro de 2020). Ensaísta, poeta, crítico literário, nascido em 25 de Maio de 1930 em Moçambique (na
antiga Lourenço Marques, hoje Maputo), autor de inúmeras obras e o maior
especialista português em José Régio, Eugénio Lisboa já tinha escrito, quase no início da sua Crónica
dos Anos da Peste (em dois
volumes, editados em 1973 e 1975), isto: “Quando a peste cerca a comunidade,
a confusão e o salve-se quem puder entram na ordem do dia.” Agora, tomando
a pandemia como uma outra peste, ele escolheu a poesia para, entre a
observação irónica e a palavra acutilante, lhe desferir os golpes que a
inspiração lhe foi ditando. Impressos por ordem cronológica, de “31 de
Março do Ano da Peste”, data do primeiro (todos estão datados) até 28 de
Julho de 2020, dia do último, é como se através destes seus poemas nos
debruçássemos sobre uma janela onde a vida agora mal passa.
Um
exemplo: “As ruas ficam desertas/ e os laços que a vida laça / logo
tu os desapertas/ ao ver a morte que passa.”
(págs. 17-18) Ou: “Antes gostávamos de estar em casa,/ e o vírus
deu-nos isso de presente/ mas como o estar em casa nos atrasa/ a vida, que
ficou absurda, de repente!” (pág. 21)
Ou ainda este excerto, glosando João de Deus: “Beijo na face
pedia-se e dava-se: / agora, menino, o desejo trava-se!”
(pág. 25) Há também, e muitas, observações irónicas e mordazes, algumas ao
estilo das velhas cantigas de escárnio e maldizer. Hão-de recordar-se de
como se brincou, logo a seguir ao 25 de Abril, com o facto de não terem saltado
logo das gavetas as tais obras-primas que se dizia guardadas ao abrigo da
censura, prontas a publicar. E não as havia. O que Eugénio
Lisboa agora escreve lembra esses dias: “Preparo-me, com gozo, para ver,/ se tudo
isto enfim terminar,/ quantas obras-primas vai haver/ nas gavetas por aí a
engordar!” (pág. 21)
Para
cada poema, há inspirações várias. Como a triste sina dos mais velhos. Em “Conselhos aos idosos de Christine
Lagarde e outros benfeitores” (incluindo “um senhor da América do Norte”), ele termina assim: “Mas viver não é exagerar,/
há que cuidar sempre dos cifrões:/ prà economia não parar,/ metam os velhos à
vida travões!” (pág. 35) E
assina: “Eugénio Lisboa, que ficou muito preocupado com a economia do globo,
que ele tem estado, sem ser por mal, a prejudicar.” Não escapam à
mordacidade da sua pena Trump
ou Bolsonaro, nem
tão-pouco o CDS ou o Chega, cada qual a seu pretexto. Mas como é esta nova peste
que o move, Eugénio Lisboa centra-se
nos seus efeitos, discorrendo sobre coisas como o amor virtual (“usa-se
o computador,/ nestes dias desolados,/ para fazer amor,/ mas com pífios
resultados.”), a Vénus
de Milo sem público no Louvre, Fernando Pessoa sozinho no Chiado, ou a língua
portuguesa (“Com a língua portuguesa me caso,/ com ela vivo quando é
preciso;/ a língua portuguesa não tem prazo/ e veste-se de luxo e conciso.”, pág. 63). Mas recorda também eras de saudades suas,
como as do Índico; ou figuras saudosas, com a do poeta Reinaldo Ferreira (1922-1959) ou a da sua mulher Maria Antonieta, sua companheira em 57 anos, que morreu em 30 de
Julho de 2016 e à qual já havia dedicado não só um volume inteiro, Acta Est
Fabula, Epílogo (Opera Omnia, 2017) como livros posteriores.
Dois
últimos excertos: um, dedicado à sua gatinha, Ísis: “É esta cativa/ que
me tem cativo,/ só com ela vivo/ por pouco que viva.// (…) A minha gatinha,/ de
porte altivo,/ mantém-me cativo/ coa sua patinha.”
(pág. 27) Assina: “Eugénio Lisboa, lembrando-se vagamente de um poema de
Camões, um seu colega em poesia, que também passou maus bocados.”
E
este outro, intitulado “Convite aos poetas da República”, como remate: “Nestes
tempos de aflição,/ quando a angústia nos devora,/ não é grande petição/ pedir
à lira que chora/ que tente mudar de vida:/ que se torne atrevida,/ sarcástica,
aguerrida,/ acutilante, fodida!/ Lixe-se a melancolia,/ refúgio de quem não
luta,/ e combata-se, de dia,/ o vírus filho da puta!/ Às armas, caros poetas/
às armas todos os dias:/ só desistem os patetas/ que têm as partes frias!” (págs. 37-38) Por que esperam?
TÓPICOS
LIVROS
CULTURA-ÍPSILON OPINIÃO POESIA LÍNGUA PORTUGUESA MOÇAMBIQUE JOSÉ RÉGIO
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