quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Está na altura também

 

De pedir ao Papa liberal, abertura para a liberalização matrimonial entre o clero católico, como existe entre o clero protestante, e mal não veio ao mundo por isso. Creio que o pai das irmãs Brontë era pastor anglicano, instruído, portanto, e nesse seu meio, cresceram três filhas ilustres como escritoras e mundialmente famosas. Cá entre nós, tivemos quem da censura ao celibato eclesiástico fizesse tema de obras-primas literárias, como Herculano no seu “Eurico o Presbítero” ou Eça, em “O crime do padre Amaro”. Entre outros escritos. Não me esqueço também de um livro que na minha adolescência, encontrei na estante do meu pai, escondido atrás dos que tinham direito a uma exposição mais visível - talvez para defender as filhas dessas leituras pecaminosas - e que se chamava “O Convento Desmascarado”. Como era eu que limpava a estante, bastas vezes ficava sentada no chão a ler, na ausência do meu pai, no seu trabalho de funcionário, e assim me dei conta dos mundos de lascívia e crueldades praticadas nesses conventos. Também meu pai era um ser um tanto revoltado e triste, porque criado sem pai, já que era filho de um padre, o que constituíra mancha indelével para a minha avó, pessoa isolada na sua aldeia, vivendo marginalizada, por orgulho próprio ou por desprezo alheio. Mas a minha mãe soube estimá-la, e quando regressámos a África, para junto do meu pai, depois da guerra, levámo-la connosco, e pôde morrer junto do filho.

Hoje em dia, num mundo menos sombrio no capítulo das relações humanas, o próprio papa interfere fraternalmente nas uniões gay, permitindo o seu matrimónio civil. Mas, porque não uma igual compreensão para com os seus representantes em Cristo, frades, freiras, sacerdotes e mais dignitários? Embora o matrimónio ofuscasse a dignidade do Alto Clero, é certo, equiparando a nobreza dos representantes de Deus na Terra, a esses da alta nobreza palaciana, com todos os seus desvarios… Mas talvez obstasse a muita indignidade ou mesmo crime, ao nível do clero regular, ou mesmo do clero secular de menor preponderância hierárquica…

 

EDITORIAL

Papa, uniões gay e Igreja Católica

Francisco acabou de atravessar uma espécie de Rubicão no seu papado. Já não é só acolher os gays, é defender a sua organização familiar em moldes mais ou menos idênticos aos casamentos entre homem e mulher, que os católicos encaram como um sacramento.

ANA SÁ LOPES

PÚBLICO, 21 de Outubro de 2020

E o Papa lançou ontem uma bomba: Francisco, o chefe da Igreja Católica que mais se tem esforçado por acolher gays e famílias gay na congregação, defende a legalização de uniões civis de homossexuais. As palavras do Papa, que vão expressamente contra a posição actual da Igreja, aparecem num documentário apresentado ontem em Roma que tem o seu nome – Francesco. Desta vez, o discurso de Francisco é inequívoco e dificilmente abre espaço a que os serviços de imprensa do Vaticano venham temperar a coisa a não ser para dizer o óbvio: o que o Papa disse não corresponde à doutrina oficial da Igreja.

E é verdade que não corresponde. Francisco esteve entre os “perdedores” no Sínodo de Outubro de 2014, quando os parágrafos do documento preparatório que defendiam uma maior integração dos gays na Igreja Católica não obtiveram a maioria de dois terços necessária à sua aprovação. Os bispos reunidos em Roma, na altura, não aceitaram que ficasse escrito que os homossexuais tinham “qualidades a oferecer à comunidade cristã”. Só foi aprovado que a discriminação contra gays “deve ser evitada”.

Mas Francisco nunca foi tão longe como nesta sua entrevista: “Os homossexuais têm direito a viver em família”; “São criaturas de Deus e têm direito a uma família”; “O que temos de criar é uma lei de união civil. Dessa forma, estarão legalmente protegidos”. E, no documentário, diz ainda que já defendeu as uniões civis, provavelmente quando se discutiu o casamento gay na Argentina, aprovado em 2010. Na época, Bergoglio era cardeal de Buenos Aires e fez campanha contra a legalização do casamento.

Francisco é o chefe da Igreja Católica, mas não é a Igreja Católica – a prova disso foi a sua derrota no Sínodo de há seis anos. Os mais cínicos, como o correspondente da BBC em Roma, dirão que Francisco segue uma linha de fazer pronunciamentos que agradam aos mais liberais, enquanto vai mantendo mais ou menos intacta a ordem tradicional da Igreja Católica.

Contudo, as coisas movem-se, mesmo numa instituição conservadora. Francisco acabou de atravessar uma espécie de Rubicão no seu papado. Já não é só acolher os gays, é defender a sua organização familiar em moldes mais ou menos idênticos aos casamentos entre homem e mulher, que os católicos encaram como um sacramento. Estamos a assistir a um corte epistemológico no Vaticano, contra as leis até agora aprovadas pela congregação. Francisco abre o caminho para que a Igreja Católica não se divorcie totalmente do mundo que quer doutrinar.

tp.ocilbup@sepol.as.ana

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COMENTÁRIOS

teresa cravalho INICIANTE: Bergoglio apresenta claros sinais de radicalismo ideológico e é simplesmente ridículo. Onde já se viu o responsável máximo de uma qualquer organização, com posições doutrinárias definidas de forma colectiva e democrática, fazer declarações públicas contrárias e conflituantes com a doutrina institucional oficial. Se não acredita ou perfilha de tal doutrina, é óbvio que nunca deveria sequer ter aceitado ser papa e há muito se deveria ter demitido. Antonio INICIANTE: O teólogo de João Paulo II foi Joseph Ratzinger. Desde 1990, pelo menos que eu conheça, Ratzinger defendeu, sobretudo perante a juventude, uma liberdade sexual que era preciso entender. Está documentado. No 1º trimestre do seu Pontificado como Bento XVI, quando Feitor Pinto defendeu o uso de preservativos e foi muito criticado, ele tornou-o Monsenhor. Continua a ser um dos 3 Teólogos mais importantes dos últimos 1.000 anos. Enquanto Papa Emérito, Francisco tem nele um teólogo actual, do nível de S. Tomás de Aquino ou de S. Domingos, com a vantagem do maior conhecimento. Bento XVI abdicou e indicou o seu sucessor porque lhe era difícil falar a nossa linguagem. Ser homossexual não o impede de ter uma inteligência cintilante. Esta decisão de Francisco tem, seguramente, influência de Bento XVI. 21.10.2020

Bom dia, Lisboa! INFLUENTE: ?... teresa cravalho INICIANTE: Mas o senhor está a acusar quem de ser homossexual? Ratzinger ou Bergoglio? antoniorsgm.864382 INICIANTE: O sacramento do matrimónio continua (e bem) reservado para a relação entre um homem e uma mulher que queiram procriar. A Igreja costuma fazer um paralelismo com a Santíssima Trindade, para aludir aos pais e ao filho criado! Mas ainda bem que a nossa Igreja deu este passo na aceitação da comunidade LGBTI: que nunca volte atrás! 21.10.2020

 

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