quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Pano para mangas

 

Afinal, a questão da liberdade matrimonial dos homossexuais, por decisão do papa Francisco, decisão que fere ainda, talvez, muita gente, tenaz conservadora dos preceitos católicos, dá pano para mangas em debates de uma tenacidade nem sempre amena. O texto de JMT parece justo e equilibrado, de um conceito menos anquilosado talvez, mas nem todos os comentadores seguem o mesmo trilho modernista. Leiamos, meditemos, concluamos, na paz de Deus, se o seguirmos:

OPINIÃO

O princípio do fim da obsessão sexual na Igreja?

É hora de a Igreja deixar de olhar para as partes baixas e voltar a colocar o seu olhar onde ele deve estar – lá bem em cima.

JOÃO MIGUEL TAVARES

PÚBLICO, 21 de Outubro de 2020, 22:53

Ao longo dos últimos 60 anos, falar de Igreja Católica no espaço público foi sinónimo de falar de sexo. Não havia outro assunto. Falava-se da Igreja porque ela proibia a pílula e o preservativo. Falava-se da Igreja e da encíclica Humanae Vitae (1968) porque ela dificultava o combate à sida em África. Falava-se da Igreja para criticar a exclusão dos homossexuais. Falava-se da Igreja a propósito do celibato dos padres. E depois, claro, veio o escândalo da pedofilia, e não se falava de outra coisa.

Há mais de meio século que tudo tem andado à volta do sexo e da sua repressão, o que é tanto mais absurdo quanto o sexo está praticamente ausente da doutrina evangélica. Em nenhum dos Evangelhos se fala directamente de celibato ou de homossexualidade, a tolerância de Jesus para com prostitutas e adúlteras é avassaladora, e a forma como a Igreja foi sustentando, ao longo dos anos, a sua doutrina nesse campo, advém de uma mistura de tradição secular com a interpretação tortuosa de versículos escolhidos a dedo.

A Igreja Católica queixava-se de que o problema não era dela, mas sim dos meios de comunicação social, que não davam atenção a mais nada. Desculpas. O problema era mesmo do velho catecismo, que corporizava uma longa história de preconceito contra o sexo, hipervalorizando aquilo que na Bíblia nunca passou de notas de rodapé. Até que a brutalidade e a dimensão do escândalo da pedofilia, em conjunto com as estratégias miseráveis de ocultação da verdade, colocaram a Igreja numa posição insustentável.

Nesse sentido, a notícia de hoje, de que o Papa Francisco afirmou num documentário que os homossexuais têm o direito de fazer parte de uma família e que “ninguém deve ser deixado de fora ou sentir-se arrasado por causa disso”, é algo simultaneamente óbvio e digno de ser celebrado. Finalmente as coisas são ditas com esta clareza, para mais com Francisco a defender ainda “uma lei de união civil” para que os casais homossexuais estejam “legalmente seguros”.

Isto é mais do que reafirmar a separação entre o que é de César e o que é de Deus – é declarar as leis de César essenciais para que se faça justiça neste mundo, e que o casamento civil entre homossexuais não é apenas um mal menor, mas antes um instrumento virtuoso e necessário. Para quem conhece tantos homossexuais escorraçados da Igreja e obrigados a procurar formas semi-subterrâneas de continuar ao seu serviço, é caso para dizer: aleluia!

Aquilo que o Papa Francisco parece ter percebido (ainda que alguns possam continuar sem perceber) é que a Igreja pode ser conservadora, mas não pode ser retrógrada. Quando o olhar da sociedade em relação aos homossexuais é mais cristão do que o olhar da Igreja que se diz de Cristo, há aí um problema grave, de que Jorge Bergoglio em boa hora se apercebeu. E não se trata aqui de ser “moderninho” ou “popular” – trata-se apenas de seguir a doutrina de acolhimento dos excluídos.

Aos poucos, desejo muito que as consequências desta postura de Francisco não se fiquem pela questão da homossexualidade, e sirvam para superar a tal obsessão pelo sexo que domina a Igreja há décadas, desviando atenções da mensagem central que ela tem para oferecer a quem é católico, ateu ou qualquer coisa lá no meio: o mundo não se esgota na sua superfície e há uma dimensão espiritual extraordinária à nossa disposição. É hora de a Igreja deixar de olhar para as partes baixas e voltar a colocar o seu olhar onde ele deve estar – lá bem em cima.

Jornalista

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COMENTÁRIOS:
Marcelo Melo
: INICIANTE:
A Igreja tem uma convicção muito própria de que o matrimónio é vocacionado para a procriação. A mensagem é clara, e a título de exemplo basta citar que quem contrai matrimónio tem de assinalar em formulário que vai educar os filhos na fé cristã. Uma Igreja sem regeneração, é uma religião em declínio, e portanto a Igreja vive obcecada com a procriação-expansão. Só que o matrimónio inclui a dimensão de casal, e neste último não cabe, à força, a ideia de "procriação". Julgo que é preciso desenlaçar este conceito, para que a Igreja possa aceitar no seu seio casamentos que não têm a procriação (nem a educação de filhos na doutrina cristã) no cerne do vínculo que se quer estabelecer. Antes dos filhos vem a dignidade civil dos próprios pais, mesmo que não venham a ser pais efectivamente.        DemocrataXXI EXPERIENTE: A Igreja peca sempre, por se posicionar tarde e a más horas, em temas da maior relevância para a dignidade humana. No seu delay, faz vítimas, muitas, mais do que as que seriam necessárias, assim acompanhasse a natural evolução das mentalidades, e é nessa base, que há que avaliar da bondade do seu projecto. A bênção da igreja católica, à união de facto, é disso mesmo um retardatário exemplo, como antes foram outros fundamentais valores: a dignificação da mulher aos olhos da igreja, a delação da pedofilia após décadas de encobrimento, e mais recentemente o tema do referendo à eutanásia.         delta EXPERIENTE: A Igreja não é obcecada com sexo, a cultura moderna é que é, e encontrou na Igreja o seu principal adversário. Quem é o sujeito em "falar da Igreja Católica no espaço público" ou "falava-se da Igreja"?       Fun.eduardoferreira.883473 EXPERIENTE: Refira por favor um período na história em que sexo não fosse “obsessão” pela negativa ou pela positiva... de toda a minha investigação histórica não conheço nenhum. Claro que quando as Morais criadas pelas religiões (ou vice-versa! É como a história do ovo e da galinha) reprimem o sexo e tornam algo ignóbil pese embora seja parte natural e fundamental da existência humana, chegamos a esta discussão absurda de um não assunto.           Catarina Fiolhais INICIANTE: Mas afinal a pertença à IC alguma vez foi ou é coerciva? Que eu saiba, quem não se identifica com os seus ensinamentos, nomeadamente em matérias de moral sexual, é livre de adoptar outros que os contrarie. A posição de que parte para esta exposição é totalmente falsa. Nunca houve qualquer obsessão da IC com o sexo. O que há sim, e desde sempre, é uma obsessão dos debochados com os ensinamentos IC nessa matéria. O que, aliás, é bem revelador do aleijão moral e do recalcamento psicológico que os traumatiza e afecta todas as esferas da sua vida. Não conseguindo sequer tolerar a existência de pessoas que repudiam o deboche como forma de vida. Exigindo, outrossim, da forma totalitária, que também os caracteriza, que o dito deboche seja de obediência obrigatória e universal.      Manuel Figueira EXPERIENTE: Catarina Fiolhais: Esta sua frase aplica-se a si, lindamente. «A posição de que parte para esta exposição é totalmente falsa.» O seu raciocínio é espectacular, mas assente numa premissa falsa: a de que o que ocorre no seio dos grupos a que se pertence não extravasa para as sociedades. A IC tem um poder simbólico e um poder fáctico de uma dimensão incomensurável nas sociedades ocidentais. Por isso, questionar a IC decorre desses poderes, simbólico e fáctico. É simplório acreditar que o assunto se circunscreve à mera filiação na agremiação, como pretende fazer-nos crer no seu comentário. É este extravasamento que nos legitima para questionarmos a IC.      Soeiro INICIANTE Se se fizesse um filme com o que vai na sua cabecinha era para maiores de 21 anos!     Marcelo Melo INICIANTE Penso que a questão se coloca é mais ao contrário: a pertença coerciva da IC numa sociedade que pretende ser cada vez mais plural.        Fun.eduardoferreira.883473 EXPERIENTE Exactamente @Miguel Figueira e até porque a IC tem uma tradição totalitária e de poder. Mas tiradas como a da nossa cara @Catarina reflectem aquilo que é recomendado por essa igreja aos seus fiéis, não reflectir sobre os dogmas (em tempos era considerado heresia e era passagem directa para a fogueira) e ainda eliminar da história os episódios de intolerância e crimes contra a humanidade dessa instituição retrógrada. Se não se sabe história e não se reflecte sobre os dogmas, seremos todos mais umas Catarinas e é isso que as “igrejas” pretendem. A religião trata da fé e não pode ou deve dirigir comportamentos individuais.         joao.prudente INICIANTE Finalmente vejo transcrito aquilo que verbalizo há tantos anos. A igreja católica tem uma obsessão com o sexo como mais nenhuma instituição não ligada à pornografia      José Luís INICIANTE De facto a igreja anda há séculos obcecada com sexo, parece que nem pensam noutra coisa.        Manuel Ribeiro INICIANTE Das melhores crónicas que o João Miguel Tavares escreveu. Parabéns. 21.10.2020       pedroavalente INICIANTE :Caro JMT, muitas pessoas acham que a Igreja só tem olhado para as partes baixas por um simples motivo: essas pessoas não querem saber da Igreja e suas mensagens e querem saber (e muito) das suas partes baixas. Dá muito trabalho e exige muitos sacrifícios pessoais viver em consistência com as mensagens que a Igreja transmite e dá muito prazer viver em consonância com os instintos das partes baixas. Como a mensagem da Igreja incomoda quem o faz, mais vale atacar a Igreja de forma simplista e cega, tentando limitá-la nesse universo (das partes baixas) que lhes é tão familiar.   Árctico INICIANTE O problema é que as partes baixas têm muito mais impacto no mundo do que os resquícios dos ensinamentos de JC que a Igreja ainda se incomoda em pregar. Como ateu convicto admiro Jesus Cristo e a sua mensagem igualitária e universal, mas a Igreja actual está longe de ser igualitária ou universal.

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