Da História americana – e universal, afinal - que nos apresenta o
retrato perfeito de dois homens, manipulados por diferentes ideologias e
diferentes caracteres, mas com idêntica ambição de domínio. Um, amplamente
destemido, na assunção do seu ego caprichoso e impertinente, outro, timorato,
mas deixando prever safadezas futuras bem perniciosas, caso ganhe as eleições. Jaime Nogueira Pinto, um
analista e historiador de mão cheia.
América contra América/premium
Entre a luta de galos em recinto fechado, está em
causa uma confrontação simbólica e ideológica entre concepções do mundo e da
América: o
nacionalismo popular e identitário; e o globalismo liberal.
JAIME NOGUEIRA PINTO
OBSERVADOR, 02 out
2020
Os debates televisivos são um ritual da democracia de
massas, uma espécie de duelo na arena da comunicação pública dos candidatos aos
postos de governação. São, desde os anos 60, um ritual da Democracia na
América, na versão contemporânea, que ficaram célebres desde o primeiro
confronto Kennedy-Nixon.
Talvez não
mudem a orientação da maioria dos eleitores, sobretudo quando, como agora
acontece nos Estados Unidos, estes estão radicalizados e, por isso, os indecisos não serão muitos.
Não serão muitos, mas vão ser
decisivos. Segundo uma sondagem da NBC News e do Wall
Street Journal, tornada
pública no Domingo 27 de Setembro, esses indecisos seriam ainda
11%. E se para uma significativa maioria os debates não iam alterar a
intenção de voto, cerca de 30% dos eleitores consideraram os debates
importantes para a sua decisão.
Segundo as mesmas sondagens, Biden mantém a vantagem nos chamados Swing States – Arizona, Florida, Geórgia, Iowa, Maine,
Michigan, Minnesota, Nevada, New Hampshire, Carolina do Norte, Pensilvânia e
Wisconsin –, uma vantagem ponderada de
cerca de 6%.
Trump foi uma das vítimas políticas da Covid-19: a situação ímpar da
economia americana no princípio do ano, que lhe daria uma vitória quase certa,
foi arruinada pela erupção da pandemia e, embora a recuperação tenha vindo a
ser rápida, os estragos subsistem. Também a
situação da saúde da nação é grave, e uma comunidade mediática claramente
hostil tem feito todos os esforços para retratar o Presidente como um
incompetente, culpado por todas e cada uma das mortes pandémicas nos Estados
Unidos.
Com o seu modo intuitivo e brusco de nunca deixar as
contestações e provocações sem resposta, Trump
também facilita a vida, as tácticas e as técnicas aos seus muitos inimigos; e, apesar de ter conseguido
alguma recuperação em relação a Biden nas sondagens, precisa de o igualar, e
depressa. E os debates, dado o carácter hesitante e as confusões e gaffes do antigo vice-presidente
de Obama, podiam ser importantes para reduzir, ou mesmo inverter, a tendência
de voto. De resto, foi o que aconteceu
em 2016 quando Hillary
Clinton, que em Agosto tinha uma
vantagem de 51-41, passou, em Setembro, para 48-43. E no final foi o que se
viu.
Também então se dava um fenómeno que tende hoje a
repetir-se: é que a maioria dos eleitores vota essencialmente contra um candidato e não por um candidato.
Quem viu o debate de Terça-feira 29 de
Setembro entre Trump e Biden não pode deixar de compreender os eleitores norte-americanos. Nenhum dos candidatos apresentou um projecto
substancial para a nação, ideias, linhas estratégicas. Trump, igual a si próprio, mas talvez menos agressivo que o costume, foi
suficientemente agressivo para atropelar Biden. Biden quis assumir o papel da
vítima bem-comportada, enfrentando o “deplorável ogre fascista” mas depois perdeu
a compostura, chamou-lhe “doido”, “palhaço” e “mentiroso e, numa clara
táctica de desprezo, evitou olhar para o adversário ou dirigir-se-lhe pelo
nome. Trump tratou Biden com um
paternalismo cáustico, como se trata um incompetente pouco esperto e sem alma. Foi também duro e até
cruel em relação a um dos filhos Biden, ou porque o confundiu com outro, ou
deliberadamente.
Se Trump, para o bem e para o mal, esteve como é, Biden, apesar de ter evitado as gaffes
e as confusões doutras intervenções, foi incapaz de dar, como observou
Francisco Seixas da Costa, “uma imagem presidencial”. Acabou resvalando para o insulto fácil,
projectando uma imagem patética, de fragilidade física, de insegurança, de
fraqueza intelectual. Por exemplo, viciando os números ao responder à
questão da pandemia, ou propondo reestabelecer a “lei e a ordem” com a
reeducação psicológica e de sensibilização racial da Polícia (talvez com
acompanhamento de guias espirituais e de auto-ajuda…) e ao apontar titubeante
para a câmara, estilo anos cinquenta, para tentar interpelar directamente o
eleitor.
Mas além destes duelos mediáticos e dos seus truques
para eleitor ver, há as questões
de fundo: Trump representa uma plataforma de direita diferente,
nacionalista, popular, fiel aos valores da tradição americana da pequena classe
média, assente nas ideias identitárias e patrióticas. Biden representa a
aliança do liberalismo económico, internacionalista, dos grandes interesses
financeiros, com os movimentos radicais ligados à ideologia da nova esquerda,
inimigos dos valores nacionais e tradicionais.
Representa-os,
embora na realidade não tenha muito a ver com eles. Na verdade, Biden sempre foi um político profissional e, como tal, um negociador, um moderado, um homem do vaivém político-ideológico
que apoiou o busing escolar e inspirou leis
altamente repressivas em matéria penal
mas que acabou na lista centro-esquerda de Barak Obama.
Entre a luta de galos em recinto fechado e o folclore
das personagens, está em causa uma confrontação simbólica, ideológica, entre concepções do mundo e da América: o
nacionalismo popular e identitário, que é religioso, defende a
família e rejeita as agendas “progressistas” e pseudocientíficas da academia e
dos media; e o globalismo liberal,
que resulta de uma aliança estranha (ou não) entre o ultra-radicalismo
esquerdista e os grandes interesses do capitalismo financeiro.
É isto que está em jogo – e, curiosamente, simbolizado
por dois homens cujo passado pouco tem que ver com o que agora representam e
simbolizam: Donald Trump é um parvenu
na política,playboy e empresário do real estate de Nova Iorque que,
politicamente, estaria mais próximo da elite liberal americana; Joseph Biden é um
velho routier do establishment democrático, um
católico de origem irlandesa, que passou quarenta anos no Congresso a negociar acordos à esquerda e
à direita, e cuja ascensão ao topo da lista se deve à sua relativa indefinição
– ideal, à falta de melhor, para fazer a ponte da “coligação anti-Trump”, que junta gente tão diferente como os “pacifistas” do
Black Lives Matter e do Antifas, que matam polícias e destroem e saqueiam lojas
em Nova Iorque, e republicanos neo-conservadores e até conservadores, que
preferem o Diabo a Trump.
É uma situação nova, com fronteiras amigo /inimigo
também novas. Os factores decisivos para a determinação final dos eleitores vão ser,
com certeza, o
estado da economia, a evolução da saúde e as questões da “lei e ordem”.
Trump tem por ele uma “constituency” irredutível, de 40 a 45
por cento do eleitorado. Biden tem a coligação negativa, que inclui grande parte dos media escritos e televisivos dos
Estados Unidos e do mundo. Mesmo assim, a luta vai ser
cerrada e o desfecho é capaz de ser incerto. Até ao fim. E mesmo depois do fim.
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