sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Metáfora, embora

 

Um dos comentadores – da esquerda, naturalmente – deste excelente artigo de Alexandre Homem Cristo, insurge-se contra o vocábulo “bufo”, usado, segundo ele, impropriamente pelo articulista, na sua acusação aos denunciantes dos infractores das ordens governamentais por conta da pandemia. Esquece o comentador que as palavras são viageiras, e podemos transferi-las por caminhos vários, figurativos, por exemplo. É o caso da palavra “bufo”, que sendo nome de ave, entre outros sentidos, assumiu, popularmente, o sentido de delator, pertença dos comunistas dos tempos de Salazar, segundo altiva reivindicação do comentador. Mas, se assim é, a palavra pegou e o bufo ficou, em contextos vários e não só os pidescos. Para todos os efeitos, é metafórico, tal como chibo, mas mais discreto no som, como convém. Não devemos ser tão ciosos dos nossos pergaminhos, mesmo - e sobretudo - em democracia.

Os bufos /.premium

Enquanto o país criticava a obrigatoriedade da app, proliferaram denúncias anónimas contra vizinhos ou colegas. Eis a lógica dominante: a minha vida ninguém controla, mesmo que eu controle a de outros.

ALEXANDRE HOMEM CRISTO

OBSERVADOR, 22 out 2020

Seis amigos estão a ver pela televisão um jogo de futebol em casa de um deles quando, subitamente, alguém lhes bate à porta — era a polícia, que veio dispersar o grupo, alertada para uma “festa ilegal” por um dos vizinhos. Um professor universitário dá aula com transmissão online, numa sala-de-aula ampla e a grande distância dos poucos alunos presentes, tirando por momentos a máscara — e, passado algum tempo, a polícia interrompe a aula para o multar, tendo esta sido alertada do gesto por denúncia anónima. Três jovens encontram-se para conversar e beber uma cerveja, depois de jantar, numa praceta lisboeta — e rapidamente aparece a polícia para os dali expulsar, após queixa de um transeunte que os avistou.

Há quem só veja nestes episódios recentes o zelo de impor o cumprimento rigoroso das regras sanitárias. Mas essa é apenas a ponta do icebergue, até porque em nenhum destes casos a saúde pública esteve realmente em risco (um ajuntamento de cinco pessoas é possível, mas seis amigos juntos é motivo para chamar a polícia?). Nas entrelinhas de cada episódio emerge um padrão muitíssimo mais inquietante: a emergência da delação, a proliferação de denúncias anónimas, a instauração da vigilância social e o enfraquecimento da comunidade por via da desconfiança partilhada entre concidadãos. Com a pandemia, para além de restrições severas (mas legais) à nossa liberdade, nasceram bufos em todo o lado: estejamos em casa, no local de trabalho ou num espaço de lazer, ficámos sob o olhar vigilante de cidadãos disponíveis para denunciar qualquer infracção às autoridades.

A proliferação de delatores e bufos assinala uma ameaça latente à nossa vida democrática. Primeiro, lembra-nos que o tecido social com que se cose uma sociedade democrática é muito mais frágil do que gostaríamos de imaginar. E, repare-se, o ponto não é estabelecer paralelismos históricos hiperbólicos com períodos negros do nosso passado. O ponto é constatar que as sociedades livres e democráticas só prosperam quando existe solidariedade entre os cidadãos e confiança entre as pessoas, que se reconhecem entre si como membros de uma mesma comunidade. E isso é absolutamente incompatível quando se receia que um vizinho ligue às autoridades para estas nos repreenderem — o que, não por acaso, é prática instituída em todos os regimes inimigos da liberdade.

Segundo, recorda-nos como damos por certo um amor à liberdade que demasiadas vezes não existe. Na semana passada ergueu-se uma (justíssima) resistência à obrigatoriedade da instalação da app StayAway Covid nos telemóveis, mas esta não deve ser confundida com uma defesa intransigente dos portugueses à sua liberdade. É que, ao mesmo tempo que o país criticava a obrigatoriedade da app, proliferaram denúncias anónimas e delatores a apontar o dedo a vizinhos ou colegas. A lógica dominante é simples e nada tem de liberal: a minha vida ninguém controla, mesmo que eu controle a vida dos outros.

Terceira, a proliferação de bufos deve alertar as instituições democráticas para o seu dever de resistência a todas as formas de violação da liberdade. Não critico as autoridades policiais que, recebendo denúncias, fazem o seu trabalho (e, na maioria dos casos, fazem-no com bom-senso). Mas é forçoso criticar, por exemplo, a Universidade de Lisboa, que optou por não se pronunciar após um incidente em que teve a polícia a entrar numa faculdade, interromper uma aula e multar um professor. Num caso tão grave quanto este, o silêncio institucional legitima que um espaço privilegiado de liberdade fique sujeito a controlo social e a denúncias anónimas — algo que, escusado será recordar, traz más memórias.

A contenção da pandemia tem sido suportada em medidas legais que são restritivas das nossas liberdades civisseja limitando a circulação de pessoas no território nacional, seja estipulando horários de acesso a determinados serviços, seja ainda determinando um número máximo de pessoas em ajuntamentos. Ora, nestes meses, habituámo-nos a centrar a discussão nessas medidas e esquecemo-nos de algo igualmente importante: tal como não se pode descurar as outras doenças por causa da Covid-19, também não se pode permitir o envenenamento do espírito democrático em nome do cumprimento de regras sanitárias.

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DEMOCRACIA  SOCIEDADE  PANDEMIA  SAÚDE  LIBERDADES

COMENTÁRIOS:

O Pereira: Benvindo a ditadura de esquerda. Já há meses que o digo.

Quim Plykhant: Por acaso até tenho denunciado umas festarolas que se têm feito nas proximidades da minha modesta e resguardada residência. Não por causa da covid mas a propósito do barulho, o qual estou muito longe de ser um apreciador. Aliás, as minhas meditações matinais ficaram gravemente comprometidas pela perturbação causada pelos, foliões, e tive mesmo dificuldade em pronunciar alguns mantras. Ademais, como se não bastasse ainda fiquei com os chakras desalinhados e interferências no meu campo electro-magnético. Que vão fazer as festas para a coisa da mãe deles!      Carlos Bello: Excelente artigo     Gens Ramos: A pandemia que sofremos agora, apenas fez com que a delação pública e covarde se mostrasse; na realidade, esse comportamento eficaz nos ditadores, nunca abandonou Portugal.     Andrade QB: Os bufos no tempo da Pide ou eram pagos ou faziam-no por vingança dirigida a alguém que tinham por inimigo. Agora fazem-no por puro prazer transcendental, mas não chegaram aí sozinhos. Por alguma razão ainda ontem Henrique Neto, que ninguém pode no seu juízo atacar de Salazarista e outros mimos, constatava que António Costa tem hoje mais poder do que tinha Salazar. Bufos por vocação prestam muito melhor serviço do que bufos por obrigação.             Antes pelo contrário: Importante, é isto: "Lyon: La gare de la Part-Dieu évacuée après qu’une femme menace de se faire exploser"       Marco Silva Antes pelo contrário: Os franceses escolheram isso...a frança deixou de ser um país...temos de nos preocupar em impedir que o mesmo aconteça por cá, algo que a esquerdalhada tudo faz para ser uma realidade. Temos de nos proteger dos psicopatas muçulmanos, da esquerdalhada ditadora e totalitária e da comunicação social que protege ambos. Nunca se viveu um período tão negro da história moderna da humanidade, onde somos ameaçados nos nossos próprios países e não temos meios de defesa, pois as "autoridades" mais depressa defendem terroristas e criminosos, que as potenciais vítimas desses terroristas e criminosos....      Gil Lourenço Lourenço Marco Silva: Exactamente. Mas também com o aval de alguma direita dita internacionalista.     pedro dragone: As palavras “fascista” e “bufo” são hoje em dia utilizadas não apenas pela esquerda mas também (oh surpresa!) pela gente da direita como armas de arremesso retórico. Convinha recordar que a palavra “bufo” era utilizada no tempo do fascismo Salazarista para designar as pessoas que denunciavam à polícia quem ousasse falar ou conspirar contra o regime. Não para denunciar quem estivesse a praticar, ou em vias de praticar, um crime como um assalto, uma tentativa de assassinato, etc. Por isso, o uso da palavra “bufo” para designar quem comete o crime de pôr em risco a saúde e a vida dos outros com as suas atitudes revela ignorância ou então má-fé. E se o uso indevido da palavra é feito por uma pessoa de direita como é o AHC, então à ignorância ou à má-fé temos de acrescentar o ridículo. Isto porque a palavra “bufo” faz parte do léxico esquerdista. Mais um vez, é para rir, rir, rir!     Manuel Santos > pedro dragone: Assino por baixo: "As palavras “fascista” e “bufo” são hoje em dia utilizadas não apenas pela esquerda mas também (oh surpresa!) pela gente da direita como armas de arremesso retórico. Convinha recordar que a palavra “bufo” era utilizada no tempo do fascismo Salazarista para designar as pessoas que denunciavam à polícia quem ousasse falar ou conspirar contra o regime. Não para denunciar quem estivesse a praticar, ou em vias de praticar, um crime como um assalto, uma tentativa de assassinato, etc. Por isso, o uso da palavra “bufo” para designar quem comete o crime de pôr em risco a saúde e a vida dos outros com as suas atitudes revela ignorância ou então má-fé. E se o uso indevido da palavra é feito por uma pessoa de direita como é o AHC, então à ignorância ou à má-fé temos de acrescentar o ridículo. Isto porque a palavra “bufo” faz parte do léxico esquerdista. Mais um vez, é para rir, rir, rir! "     Romeu Francisco > pedro dragone: não, não faz parte do léxico esquerdista, seu ignorante. E estamos em 2020, por isso qualquer mania esquerdopata de achar que se é dono de uma palavra já prescreveu, não lhe enviaram o email a avisar? O país de Maduro está cheio de bufos. A China também. A Coreia idem. A família de uma ex vivia em terror com medo de ser denunciada por vizinhos bufos à Stasi, na ex-RDA, sempre que um familiar de Ocidente conseguia fazer chegar chocolate para as crianças. A direita está longe de ter a exclusividade das ditaduras. Diria que hoje, a esmagadora maioria das ditaduras são de esquerda. Mas parece-me óbvio. Até porque nenhum regime liberal (o tal que é atacado constantemente pelas esquerdas) termina em ditadura. Resta-me concluir que o seu erro é causado talvez por um bloqueio temporal que lhe afecta o raciocínio, o talvez uma placa beta-amiloide. A palavra faz parte dos que gostam da liberdade. Obviamente, não é uma paixão de esquerda, que é tendencialmente centralizadora, controladora, e progressivamente opressora por advogar a concentração de todo o poder no Estado, como qualquer regime fascista tradicional (nunca foi amante da liberdade... basta ver o que Cunhal queria fazer com o país...). Olhe, a direita também usa outros sinónimos, como por exemplo: "chibo". Igualmente apropriado.     Antonio Mello: Um Alerta oportuno ! No fundo os bufos são queixinhas e ninguém os grama. Pode haver uma ou outra excepção, mas tem que ser muito bem avaliada antes de denunciada. Não somos todos Polícias! Mas somos todos PESSOAS!    josé maria: Festa de aniversário de jovens provoca surto com 32 infectados em lar no Cadaval Observador, 22/10/2020 Vamos deixar os meninos mimados à rédea solta, para que não sofram de traumas psicológicos e os outros que se lixem, Alexandre ?     CarlosMSantos: Há bufos e há medo; o silêncio que refere e muito bem, da Universidade não se compreende. Há pessoas colocadas em altos cargos, não será o caso, não pela competência mas pela cor partidária onde impera a lei da rolha e quem se porta mal, leva. Gostava de dizer mais... mas tenho medo e sou apenas um modesto cidadão idoso, reformado, irrelevante e sem cartão partidário. P.S. (salvo seja) se isto acontecesse com um governo do PSD, imaginam o que seria o alarido da esquerda?           Maria Augusta > CarlosMSantos: Tem toda a razão! Com os canhotos, seus apaniguados, indignados profissionais e restante fauna canhota seria uma indignação geral. Manifestações às sextas-feiras, bandeiras negras, grupos corais a cantar o "Acordai!"..."Grândolas vila morena"....enfim um circo completo, com todo o respeito para os verdadeiros palhaços que não têm culpa desta corja!     Maria Augusta: A maioria destes bufos são obviamente canhotos com aquela pretensão tão tipicamente canhota de acharem o que é melhor para os outros desde que não se aplique a eles próprios. Ainda ontem tivemos um exemplo acabado deste vício mental canhoto com a Catrineta "actriz falhada" do Bloco. Queixava-se a criatura da "chantagem" do Governo a propósito do OE. Curioso como o Bloco não tem feito outra coisa senão chantagem nos últimos 5 anos acabando sempre por aprovar o OE. A Catrineta bloqueia quando prova do próprio veneno acha-o amargo. Que cambada!    António Lamas: A DGS actual é pior do que a antiga PIDE-DGS. Esta conseguiu dividir os portugueses em bufos e os outros. Sparks and Sparrows: É verdade que Portugal herdou do salazarismo uma cultura lacaia de bufos que teima em desaparecer, a qual, reconheça-se, está presente nestas denúncias. Pretender que é essa a razão principal para denúncias úteis e legítimas, nascem das melhores razões, além de insultar quem as pratica, contribui para a propagação da pandemia.         bento guerra: Os bufos são agora de "esquerda". Não esquecer que o nazismo e o fascismo saíram dos partidos ditos "socialistas" da época, Eles são os donos da verdade, logo "calemo-nos"    Luis de Freitas: Obrigado pelo artigo AHC. Vivemos um período onde sobressai o lado negro das pessoas. Temos que continuar de forma sistemática a recusar a repressão e o “rebanhismo” que alguns nos querem impor. Carlos Chaves: Caríssimo Alexandre, obrigado pelo seu artigo que é mais do que oportuno e infelizmente verdadeiro, a liberdade é como a saúde, frequentemente só se dá o devido valor quando a perdemos ou a temos fragilizada. É urgente que como sociedade defendamos a liberdade como o ar que respiramos.     Antes pelo contrário E depois dizem mal do Salazar... mas quem viveu nesse tempo sabe que o maior perigo, não era a PIDE, que a bem dizer só incomodava mesmo os terroristas (sim, porque havia atentados, sequestros e actos de sabotagem, inclusivamente contra as nossas tropas durante a Guerra Colonial) ou os activistas mais perigosos - mas sim os informadores da PIDE. Porque esses eram as porteiras, os empregados de café, os colegas, os vizinhos, os motoristas de táxi, os contínuos, e toda essa gentinha igual aos de agora, que estavam em todo o lado sempre prontos a denunciar qualquer um. Mas os que acusam os outros de fascistas, racistas, e de todas as outras coisas acham-se hoje melhores e diferentes dos de outrora...    Maria Augusta > Antes pelo contrário: Tem toda a razão É a actual e diversa fauna canhota!     Joaquim Zacarias > Antes pelo contrário Esses, após o 25,viraram canhotos.     Afonso Soares: O salazarismo somente sobreviveu durante tantos anos porque sempre fomos um país de bufos e assim continua      Dani Silva: Quando a COVID-19 deixar de ser uma pandemia e passar a endemia (como é a gripe comum), deixará de haver as leis contra ajuntamentos mas continuará o clima de desconfiança contra o próximo. Estamos a fazer muito, muito mal à nossa sociedade com estas regras totalitárias, vamos pagar isto bem caro...        Luis M >Dani Silva: Já é endémica. E agora? Onde está a coragem dos governantes em acabar com a macacada?      Marco Silva >Dani Silva: As "leis" contra ajuntamentos, são inconstitucionais e portanto ilegais. Só "existem" porque este país é uma ditadura e não existem instituições independentes. As mesmas "leis" no tempo de Passos Coelho, seriam enviadas para o TC e imediatamente chumbadas: Artigo 45 da Constituição Portuguesa: 1. Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização.     Keep it Simple Os pressupostos do totalitarismo vão sendo instaurados embora estejam apresentados sob um atraente papel de embrulho - a segurança. As novas tiranias não serão de natureza fascista ou comunista. Serão muito piores e sofisticadas. Paulatinamente as pessoas vão aceitando a acção securitária e já nada podem contra o controle de dados e os algoritmos. A Liberdade já se vai evaporando diante dos nossos olhos e com o alegre contributo boa parte da comunicação social.

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