Pois é! Como explica tão liminarmente – tão exemplarmente - sem eficácia, é certo, que temos uma teimosia bovina, - António Barreto.
OPINIÃO
Recursos milagrosos
Não é bom sinal continuar a esperar pelos recursos milagrosos e não
cuidar da riqueza que se produz ou da poupança que se estimula. Não se pode
viver sempre ligado ao ventilador ou ao milagre.
PÚBLICO, 11 de Outubro de 2020
Vão chegar a Portugal, vindas da
União Europeia, as dezenas de milhares de milhões do Plano
de Recuperação e Resiliência (que designação tão estúpida!), também intitulado
“bazuca” (epíteto não menos estúpido).
É, para todos os efeitos, uma boa notícia e poderá ser um bom contributo para o
desenvolvimento económico e social e para a democracia portuguesa.
As reacções habituais dizem tudo sobre os seus autores. Milagre! É a salvação de Portugal. Vai
tudo para os trafulhas! Agora é que vai ser corrupção. Ninguém controla com honestidade
e independência. Vai ser tudo gasto no curto prazo. Quem vai ficar a ganhar são
os milionários habituais. Os partidos no poder vão ser os
principais beneficiários. É uma extraordinária prova de solidariedade europeia.
É muito mais do que o Plano Marshall. É o que a Europa deve a Portugal. Há
recursos para relançar o crescimento e fortalecer o Estado Social. É mais uma
solução de facilidade que alivia os portugueses, mas que também os ajuda a
fazer menos pela vida.
É tudo um pouco verdade. Tanto os críticos como os entusiastas têm
carradas de razão. Mas nenhuns têm só ou toda a razão.
Verdade
é que nos piores momentos das últimas décadas, nos maiores apertos ou para
pagar as mais desatinadas loucuras, houve sempre recursos extraordinários que
ajudaram milhões de cidadãos a sobreviver e a salvar a democracia. Não há dúvidas que o essencial foi feito pelos
portugueses, trabalhadores e empresários, agricultores e técnicos, militares e
civis, todos eles eleitores: é seguramente deles o principal contributo para
garantir as liberdades e algum equilíbrio do sistema social. Foram eles que
fizeram a democracia e são eles que a têm mantido.
Mas, com que meios? Esse é o aspecto mais curioso. Os portugueses não conseguiram produzir
mais do que consumiram. Nem
sequer tanto quanto gastaram. Nem
investir o que era necessário. Tiveram
de se endividar, já sabíamos. Mas, ano após ano, foi possível segurar as pontas
soltas, estancar hemorragias iminentes e evitar bancarrotas prováveis. Houve o
necessário para distribuir um mínimo indispensável à paz. Foi possível guardar
um pacote para alimentar a política, a administração pública, o serviço de
saúde e de educação, a segurança social e as pensões cujo número nunca cessou
de se alargar e com o que se aguentou a democracia sem estremeções excessivos e
perigosos. Foi possível, através dos mecanismos indesejáveis e imprevisíveis,
sossegar os mais nervosos e contentar os mais ambiciosos, assim como pagar a
demagogia e o desperdício.
Foi necessário pagar a revolução, a contra-revolução e a
consolidação da democracia, assim como uma nova segurança social sem
contribuições prévias suficientes. Foi
necessário cobrir os défices externos, a produção insuficiente e o Estado
social sem receitas. Foi necessário alimentar os circuitos de economia
paralela e de empresas marginais. Foi necessário encontrar recursos para
acalmar empresários descontentes, trabalhadores com altas expectativas e
funcionários atordoados ou ambiciosos. Foi preciso alimentar os desvios de
fortunas para offshore de conveniência e ajudar ministros de vários governos a
enriquecer depressa.
Em poucas palavras, foi necessário manter a paz, aguentar as faltas e
cumprir os mínimos, sem o que não haveria paz social nem democracia partidária.
Até os revolucionários diletantes, os
teóricos radicais marginais, as máfias, os capitalistas sem escrúpulos, os
contrabandistas e os traficantes de influências tiveram de ser “contentados”,
“cuidados” ou “tratados”, sem o que se entregariam a actividades ilícitas,
conspirações políticas e actos de terrorismo ou de sabotagem.
Tudo isto custou muito dinheiro. Que foi distribuído de várias maneiras: dinheiro
vivo, pensões, aumentos salariais, saúde e educação, subsídios para a
habitação, rendimento mínimo, fomento da exportação, concursos públicos para
obras úteis e inúteis, adjudicações directas para parcerias público privadas,
bolsas de estudo e privilégios do funcionalismo público. Custou
muito caro e não foi tudo graças ao esforço, ao trabalho e ao investimento dos
portugueses. O crédito e o
endividamento pagaram muito. Mas mesmo estes e os respectivos juros tiveram de
ser pagos e reembolsados. Com que recursos se pagou tudo isto?
Em primeiro lugar, as reservas de ouro e divisas do
anterior regime. Ajudaram
a revolução. Financiaram o desperdício e a demagogia. Pagaram centenas de
milhares de novos funcionários. Alimentaram o sistema democrático. Evitaram, em
cima do risco da catástrofe, a ruína e a bancarrota.
Depois, as nacionalizações e as
ocupações da banca, de empresas, de propriedades agrícolas, de edifícios e de
habitações, tudo sem indemnizações. Fez-se
o que as revoluções fazem, justa ou injustamente: o Estado e os revolucionários
foram buscar os recursos onde eles estavam. Destruíram-se os
grupos económicos portugueses e expropriaram-se os ricos, mas arranjaram-se
recursos para manter viva uma base económica de produção e emprego. E um pouco
de democracia.
Há ainda que contar as receitas das privatizações e das
reprivatizações, muitas delas precedidas de expropriações e nacionalizações
efectuadas sem indemnização prévia. O Estado
democrático e o sistema político encontraram aqui recursos importantes para
aguentar uma década e manter a democracia. Venderam-se, a privados e a Estados
estrangeiros, as melhores empresas nacionais.
Finalmente, outro contributo
excepcional é o dos fundos europeus nas suas várias remessas, desde os tempos
da ajuda de pré-adesão, passando pelos famosos Fundo Social Europeu, PEDIP e
PRODEP, chegando aos programas de coesão ou 2020 e agora à recuperação e resiliência.
Foram muitas, muitas, mesmo muitas dezenas de milhares de milhões de euros, não
produzidos pelos portugueses, nem trabalhadores, nem empresários, nem
políticos.
Foram
ajudas e apoios irrepetíveis. Por entre enormes dificuldades, Portugal democrático
e os portugueses mantém-se graças a receitas extraordinárias e a fundos
excepcionais. Alguns do passado, outros do exterior. E muitos do futuro, por
via do endividamento e das parcerias público privadas. Não é bom sinal continuar a esperar
pelos recursos milagrosos e não cuidar da riqueza que se produz ou da poupança
que se estimula. Não se pode viver sempre ligado ao ventilador ou ao milagre.
Muito menos à espera de solidariedade. Viver do alheio, do crédito e da dádiva
não é um bom programa de vida.
Sociólogo
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