segunda-feira, 26 de outubro de 2020

O queijo

 

Tão cobiçado – não por uma mas por múltiplas raposas, desta vez apanhou um corvo duro de roer,  que não vai nas cantigas encantatórias das tais raposinhas que debaixo da árvore das patacas, se esgatanham entre elas e não se entendem quanto à distribuição das fatias. O corvo pede demonstrações certas, para ser ele a distribuir as fatias a preceito, as raposas bem matutam, as contas saem-lhes sempre furadas. Entanto… “na sombra Cleópatra jaz morta.”

Leiamos antes Fernando Pessoa, que sabe definir melhor a sua tristeza. E a nossa. A de João Miguel Tavares, certamente, que quer, obviamente, mais para o seu país:

II - Na sombra Cleópatra jaz morta.

Na sombra Cleópatra jaz morta.

Chove.

Embandeiraram o barco de maneira errada.

Chove sempre.

Para que olhas tu a cidade longínqua?

Tua alma é a cidade longínqua.

Chove friamente.

E quanto à mãe que embala ao colo um filho morto —

Todos nós embalamos ao colo um filho morto.

Chove, chove.

O sorriso triste que sobra a teus lábios cansados,

Vejo-o no gesto com que os teus dedos não deixam os teus anéis.

Porque é que chove?        Fernando Pessoa

OPINIÃO: ORÇAMENTO DO ESTADO 2021

Dançar ao orçamento à beira do abismo

O tempo que se está a perder na aprovação de um orçamento que corre o risco de já estar desactualizado ainda antes de ser aprovado é absurdo.

JOÃO MIGUEL TAVARES

PÚBLICO, 24 de Outubro de 2020

É fácil perceber isto no futebol, porque os jogadores correm sem parar, e após uma hora de pressão intensa é visível que a velocidade diminui, há mais espaços, mais erros, mais bolas perdidas, mais cansaço. Com os governos e os ministros não é muito diferente. Governar é uma actividade altamente desgastante. A frescura dos primeiros mandatos é irrepetível, e os percalços, as más decisões ou as simples gafes vão-se acumulando, às vezes de forma pouco compreensível. Pensamos: “como é que um político tão habilidoso comete um erro destes?”, e raramente atribuímos a explicação à razão mais óbvia de todas: puro e simples cansaço.

O problema com a actual novela em torno do orçamento de Estado é, desde logo, esse – a esquerda está a obrigar o governo a correr imenso, em pressing constante, por causa de uma questão que é secundária face aos tremendos desafios que o país tem pela frente. O próprio PCP diz que se abstém na primeira votação mas que depois logo se vê. Em linguagem futebolística, é como se o governo e o PS, em vez de defenderem a baliza e prepararem o contra-ataque, tivessem de andar a apanhar as bolas que são atiradas a toda a hora para a bancada. Dir-me-ão: mas a discussão do orçamento não é um dos momentos politicamente mais relevantes do ano? Sim, com certeza que é – em anos normais, com horizontes economicamente previsíveis. Ora, este é um ano que é tudo menos normal, e de previsível o horizonte económico não tem nada.

O tempo que se está a perder a negociar um orçamento que corre o risco de já estar desactualizado ainda antes de ser aprovado é absurdo. Ninguém sabe como a pandemia irá evoluir, e é esta evolução que vai ditar o contexto económico de 2021. Está toda a gente a fazer contas em folhas Excel que daqui a dois meses já arderam. É óbvio que essas contas têm de ser feitas – mas não faz qualquer sentido que a esquerda se entretenha a dançar à beira do abismo em contexto de pandemia, só porque essa encenação lhe dá jeito. Este é o orçamento que ninguém quer aprovar e que é inevitável que seja aprovado.

Mas como é possível definir datas-limite se a barganha política é do género que estamos a ver, com avanços e recuos, queixas de amuos e de traições? Parece-vos uma loucura? Sejam bem-vindos ao mundo da “geringonça 2.0

O problema deste triste bailado é que ele tem consequências muito concretas. A UTAO, que apoia o Parlamento na análise do orçamento, traçou há dias um retrato arrasador do processo a que estamos a assistir. Disse que os dados do orçamento para 2021 conheceram “quatro versões entre 12 e 19 de Outubro”; que as várias correcções “objectivamente confundiram quem tem o dever de acompanhar estas matérias”; que “grande parte dos pedidos” de esclarecimento enviados ao ministério das Finanças “permanece sem resposta”; que é necessário “conciliar o tempo da decisão política com o tempo do trabalho técnico”; e que, por tudo isto, é fundamental que “as negociações políticas” respeitem “uma data-limite definida antecipadamente”.

Mas como é possível definir datas-limite se a barganha política é como estamos a ver, com avanços e recuos, amuos e traições? Mesmo em Março deste ano, após o orçamento de 2020 ter sido aprovado na generalidade, abateu-se sobre ele tal borrasca de alterações em sede de especialidade que os deputados ficaram com 20 espectaculares segundos à disposição para discutir cada alteração no hemiciclo. No total, foram mais de 1300 propostas de mudança, sendo que mais de 1000 vieram da esquerda, e 700 dos partidos que deviam sustentar o governo e que negociaram previamente a aprovação do orçamento. Parece-vos uma loucura? Preparem-se para o que aí vem. Bem-vindos à geringonça 2.0.

Jornalista

TÓPICOS
ORÇAMENTO DO ESTADO 2021
   PARTIDOS POLÍTICOS   FINANÇAS PÚBLICAS   PARLAMENTO   GOVERNO   ORÇAMENTO DO ESTADO   ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA

COMENTÁRIOS:

Leclerc EXPERIENTE: O OE2021 não serve para nada. O que está em causa é a presidência portuguesa da UE, o Costa não a quer perder porque ele quer dar o salto e não quer ser como o Centeno que não tomou balanço e o salto foi curto, não deu para sair do país. E o que também importa é ter a mão nos fundos da UE e a sua distribuição. Outra coisa para o qual o Costa tem habilidade e não quer perder. Ele que disse que não governava em duodécimos, agora já não se importa. Acho que ele governa de qualquer maneira, desde que fique no poleiro, e disso já a extrema-esquerda se apercebeu, razão das cada vez maiores e novas exigências. 25.10.2020     Eng. Jorge Simões INFLUENTE: Mais um excelente texto de JMT. Parabéns!24.10.2020      Colete Amarelo EXPERIENTE: Quer queiramos quer não, a Geringonça foi o melhor governo que Portugal teve na última década. E este não é nenhuma Geringonça pois o PS não a quis criar nas negociações feitas no início deste mandato. A razão por que o PS anda a apanhar bolas é a de ambicionar ter mais independência que a que os eleitores lhe outorgaram (resquícios do período socrático). E assim, em vez de ter selado um acordo que lhe permitiria governar em tranquilidade, - já que o PSD anda alienado- vai pedindo, ameaçando, provocando; política de partido remendado. 24.10.2020        Mario Coimbra EXPERIENTE: Estarmos numa situação pandémica está a deixar Costa fazer o que quer e o que não quer. É a desculpa perfeita. Sócrates deve estar a pensar, "o sacana do Costa tem mesmo sorte". É mais do mesmo e mais uma oportunidade perdida. 24.10.2020

JarDiniz INICIANTE Compreendo que os membros do Governo andem cansados assim como compreendo que, nestes dias de incerteza, sempre sempre muito complexo o exercício de fazer previsões e orçamentos. Mas é a lei da vida, "quem não quer ser lobo não lhe veste a pele"! Também acho normal o jogo político que se faz sempre em torno da negociação de um orçamento quando o que apresenta e quer fazer aprovar não tem garantida maioria no Parlamento. Quanto à UTAO... mais uns "buro" que gostariam sempre de afirmar como JP ...prognósticos? Só no fim do jogo! 24.10.2020      Nuno Silva EXPERIENTE: Futebol é demasiado complicado, com tanto gatuno encartado lá metido. Basta perceber um pouco de UE, e esquecendo os gatunos de lá, sabemos que não vem dinheiro nenhum da UE para a retoma... 24.10.2020      ALRB EXPERIENTE: Já nem conseguimos ficar satisfeitos quando mendigamos... bolas. Mendigos mal agradecidos...     24.10.2020    ALRB EXPERIENTE: Os orçamentos para Costa nunca interessaram porque as cativações feitas arbitrariamente, pelo ministro das finanças os afastam do que foi sufragado na AR. Costa gosta é de estar vinculado só a notícias agradáveis (ou falsamente agradáveis como é o caso da mexida nas retenções do IRS). Por outro lado ele atribui sempre a culpa de desgraças a outros. Então o que Costa quer é que haja comprometimento de outrem na austeridade orçamental que vem aí (independentemente dos números do orçamento que seja feito agora) de forma que não seja só ele responsável por más noticias e de forma que tenha um co-responsável no orçamento para o culpar dessas más noticias. Há uma coisa que lhe importa de sobremaneira: a popularidade. É com isso que pragmaticamente se ganham votos, tudo o resto, treta.      OldVic1 MODERADOR: Costa montou este cenário quando declarou que queria um acordo com a extrema-esquerda e não com os partidos que lhe são ideologicamente mais próximos; agora que se desenvencilhe. Vai continuar a fingir que, por exemplo, não é possível negociar um orçamento com o PSD, que por vezes é difícil de distinguir do PS? Enquanto Costa e os seus "aliados naturais" tocam violino, Portugal arde. E infelizmente, o que a experiência nos diz é que Costa &C.ª lidam mal com incêndios.       graça dias INICIANTE:  João Miguel Tavares sempre brilhante, sagaz e bem atento a esta governação da gerigonça, que sempre me situa em um país cuja geografia fica algures para lá do Atlântico       AAA_INICIANTE: Foi Costa quem nos trouxe até aqui. Sem perdão!

 

Nenhum comentário: