Tão cobiçado – não por uma mas por
múltiplas raposas, desta vez apanhou um corvo duro de roer, que não vai nas cantigas encantatórias das
tais raposinhas que debaixo da árvore das patacas, se esgatanham entre elas e
não se entendem quanto à distribuição das fatias. O corvo pede demonstrações
certas, para ser ele a distribuir as fatias a preceito, as raposas bem matutam,
as contas saem-lhes sempre furadas. Entanto… “na sombra Cleópatra jaz morta.”
Leiamos antes Fernando Pessoa, que sabe definir melhor a sua tristeza.
E a nossa. A de João Miguel
Tavares, certamente, que quer, obviamente, mais para o seu país:
II - Na sombra Cleópatra jaz morta.
Na sombra Cleópatra jaz morta.
Chove.
Embandeiraram o barco de maneira errada.
Chove sempre.
Para que olhas tu a cidade longínqua?
Tua alma é a cidade longínqua.
Chove friamente.
E quanto à mãe que embala ao colo um filho
morto —
Todos nós embalamos ao colo um filho morto.
Chove, chove.
O sorriso triste que sobra a teus lábios
cansados,
Vejo-o no gesto com que os teus dedos não
deixam os teus anéis.
Porque é que chove? Fernando Pessoa
OPINIÃO: ORÇAMENTO DO
ESTADO 2021
Dançar
ao orçamento à beira do abismo
O tempo que se está a perder na
aprovação de um orçamento que corre o risco de já estar desactualizado ainda
antes de ser aprovado é absurdo.
JOÃO MIGUEL
TAVARES
PÚBLICO, 24 de
Outubro de 2020
É fácil
perceber isto no futebol, porque os jogadores correm sem parar, e após uma hora
de pressão intensa é visível que a velocidade diminui, há mais espaços, mais
erros, mais bolas perdidas, mais cansaço. Com os governos e os ministros não é
muito diferente. Governar é uma actividade altamente desgastante. A
frescura dos primeiros mandatos é irrepetível, e os percalços, as más decisões
ou as simples gafes vão-se acumulando, às vezes de forma pouco compreensível. Pensamos: “como é que um político tão habilidoso
comete um erro destes?”, e raramente atribuímos a explicação à razão mais óbvia
de todas: puro e simples cansaço.
O
problema com a actual novela em torno do orçamento de Estado é, desde logo,
esse – a esquerda está a obrigar o governo a correr imenso, em pressing constante, por causa de uma
questão que é secundária face aos tremendos desafios que o país tem pela
frente. O próprio PCP diz que se abstém na
primeira votação mas que depois logo se vê. Em linguagem
futebolística, é como se o governo e o PS, em vez de defenderem a baliza e
prepararem o contra-ataque, tivessem de andar a apanhar as bolas que são
atiradas a toda a hora para a bancada. Dir-me-ão: mas a discussão do
orçamento não é um dos momentos politicamente mais relevantes do ano? Sim, com
certeza que é – em anos normais, com horizontes economicamente previsíveis. Ora,
este é um ano que é tudo menos normal, e de previsível o horizonte económico
não tem nada.
O tempo que se está a perder a
negociar um orçamento que corre o risco de já estar desactualizado ainda antes
de ser aprovado é absurdo. Ninguém sabe como a pandemia irá evoluir, e é esta
evolução que vai ditar o contexto económico de 2021. Está toda a gente a fazer
contas em folhas Excel que daqui a dois meses já arderam. É óbvio que essas contas têm de ser feitas – mas
não faz qualquer sentido que a esquerda se entretenha a dançar à beira do
abismo em contexto de pandemia, só porque essa encenação lhe dá jeito. Este é o
orçamento que ninguém quer aprovar e que é inevitável que seja aprovado.
Mas como é possível definir datas-limite se a barganha política é do
género que estamos a ver, com avanços e recuos, queixas de amuos e de traições?
Parece-vos uma loucura? Sejam
bem-vindos ao mundo da “geringonça 2.0”
O
problema deste triste bailado é que ele tem consequências muito concretas. A
UTAO, que apoia o Parlamento na análise do orçamento, traçou há dias um retrato arrasador do
processo a que estamos a assistir. Disse que os dados do orçamento para 2021
conheceram “quatro versões entre 12 e 19 de Outubro”; que as várias correcções
“objectivamente confundiram quem tem o dever de acompanhar estas matérias”; que
“grande parte dos pedidos” de esclarecimento enviados ao ministério das
Finanças “permanece sem resposta”; que é necessário “conciliar o tempo da
decisão política com o tempo do trabalho técnico”; e que, por tudo isto, é
fundamental que “as negociações políticas” respeitem “uma data-limite definida
antecipadamente”.
Mas
como é possível definir datas-limite se a barganha política é como estamos a
ver, com avanços e recuos, amuos e traições? Mesmo em Março deste ano, após o
orçamento de 2020 ter sido aprovado na generalidade, abateu-se sobre ele tal
borrasca de alterações em sede de especialidade que os deputados ficaram com 20 espectaculares segundos
à disposição para discutir cada alteração no hemiciclo. No total, foram mais de 1300 propostas
de mudança, sendo que mais de 1000 vieram da esquerda, e 700 dos partidos que
deviam sustentar o governo e que negociaram previamente a aprovação do
orçamento. Parece-vos uma loucura? Preparem-se para o
que aí vem. Bem-vindos à geringonça 2.0.
Jornalista
TÓPICOS
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COMENTÁRIOS:
Leclerc EXPERIENTE: O OE2021 não serve para nada. O
que está em causa é a presidência portuguesa da UE, o Costa não a quer perder
porque ele quer dar o salto e não quer ser como o Centeno que não tomou balanço
e o salto foi curto, não deu para sair do país. E o que também importa é ter a
mão nos fundos da UE e a sua distribuição. Outra coisa para o qual o Costa tem
habilidade e não quer perder. Ele que disse que não governava em duodécimos,
agora já não se importa. Acho que ele governa de qualquer maneira, desde que
fique no poleiro, e disso já a extrema-esquerda se apercebeu, razão das cada
vez maiores e novas exigências. 25.10.2020 Eng. Jorge Simões INFLUENTE: Mais um excelente texto de JMT.
Parabéns!24.10.2020 Colete Amarelo EXPERIENTE: Quer queiramos quer não, a
Geringonça foi o melhor governo que Portugal teve na última década. E este não
é nenhuma Geringonça pois o PS não a quis criar nas negociações feitas no
início deste mandato. A razão por que o PS anda a apanhar bolas é a de
ambicionar ter mais independência que a que os eleitores lhe outorgaram
(resquícios do período socrático). E assim, em vez de ter selado um acordo que
lhe permitiria governar em tranquilidade, - já que o PSD anda alienado- vai
pedindo, ameaçando, provocando; política de partido remendado. 24.10.2020 Mario Coimbra EXPERIENTE: Estarmos numa situação pandémica
está a deixar Costa fazer o que quer e o que não quer. É a desculpa perfeita.
Sócrates deve estar a pensar, "o sacana do Costa tem mesmo sorte". É
mais do mesmo e mais uma oportunidade perdida. 24.10.2020
JarDiniz INICIANTE Compreendo que os membros do
Governo andem cansados assim como compreendo que, nestes dias de incerteza,
sempre sempre muito complexo o exercício de fazer previsões e orçamentos. Mas é
a lei da vida, "quem não quer ser lobo não lhe veste a pele"! Também
acho normal o jogo político que se faz sempre em torno da negociação de um
orçamento quando o que apresenta e quer fazer aprovar não tem garantida maioria
no Parlamento. Quanto à UTAO... mais uns "buro" que gostariam sempre
de afirmar como JP ...prognósticos? Só no fim do jogo! 24.10.2020 Nuno Silva EXPERIENTE: Futebol é demasiado
complicado, com tanto gatuno encartado lá metido. Basta perceber um pouco de
UE, e esquecendo os gatunos de lá, sabemos que não vem dinheiro nenhum da UE
para a retoma... 24.10.2020
ALRB EXPERIENTE: Já nem conseguimos ficar
satisfeitos quando mendigamos... bolas. Mendigos mal agradecidos... 24.10.2020 ALRB EXPERIENTE: Os orçamentos para Costa nunca interessaram porque as cativações feitas
arbitrariamente, pelo ministro das finanças os afastam do que foi sufragado na
AR. Costa gosta é de estar vinculado só a notícias agradáveis (ou falsamente
agradáveis como é o caso da mexida nas retenções do IRS). Por outro lado ele
atribui sempre a culpa de desgraças a outros. Então o que Costa quer é que haja
comprometimento de outrem na austeridade orçamental que vem aí
(independentemente dos números do orçamento que seja feito agora) de forma que
não seja só ele responsável por más noticias e de forma que tenha um
co-responsável no orçamento para o culpar dessas más noticias. Há uma coisa que
lhe importa de sobremaneira: a popularidade. É com isso que pragmaticamente se
ganham votos, tudo o resto, treta. OldVic1 MODERADOR: Costa montou este cenário
quando declarou que queria um acordo com a extrema-esquerda e não com os
partidos que lhe são ideologicamente mais próximos; agora que se desenvencilhe.
Vai continuar a fingir que, por exemplo, não é possível negociar um orçamento
com o PSD, que por vezes é difícil de distinguir do PS? Enquanto Costa e os
seus "aliados naturais" tocam violino, Portugal arde. E infelizmente,
o que a experiência nos diz é que Costa &C.ª lidam mal com incêndios. graça dias INICIANTE: João Miguel
Tavares sempre brilhante, sagaz
e bem atento a esta governação da gerigonça, que sempre me situa em um país
cuja geografia fica algures para lá do Atlântico AAA_INICIANTE: Foi Costa quem nos trouxe até aqui. Sem perdão!
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