terça-feira, 6 de outubro de 2020

Pessimismo

 

Helena Garrido bem se esforça por aligeirar as medidas recomendadas pelo Conselho Europeu para a recuperação económica do país, como regras passíveis de cumprimento fácil e não dispendioso. Não há, praticamente quem não sorria com tais normas, utópicas num país que se reconhece orientado sem critério de honestidade e eficiência, na avidez de um governo de compadrio perdulário e cínico.

Mesmo sem dinheiro, há muito para fazer /premium

Boa parte das recomendações que temos de cumprir para aceder aos subsídios europeus requerem pouco ou nenhum dinheiro. Exigem sim coragem para fazer reformas. E a promessa de mais e melhor crescimento

HELENA GARRIDO         OBSERVADOR, 05 out 2020

Reduzir o poder das ordens no acesso às profissões; diminuir as barreiras à entrada em determinados negócios por via de excesso de regulação ou licenciamentos; tornar mais rápidos os processos de recuperação e insolvência das empresas; melhorar o funcionamento dos tribunais administrativos e fiscais; tornar o mercado de trabalho menos dual e combater a pobreza de forma mais eficaz. Estas são medidas recomendadas pelo Conselho Europeu a Portugal que praticamente não custam dinheiro. As outras conhecemos melhor, exigem dinheiro e são todas as que passam por uma economia mais verde e digital e por um país que contribua também para ser mais resistente a choques futuros.São estas medidas que não precisam de dinheiro que merecem maior atenção, pelo efeito multiplicador que podem ter no crescimento da economia portuguesa, na era do plano que trará para o país pelo menos 13 mil milhões de euros a fundo perdido no prazo de três anos.

O Plano de Resiliência e Recuperação (PRR) deverá ser entregue, na sua versão preliminar, a 15 de Outubro, conforme recomendado pela Comissão Europeia no seu guião para que a versão definitiva esteja em Bruxelas a 30 de Abril de 2021. Existe inclusivamente um “template” para a elaboração do plano. Como se pode ver nesses documentos, há um capítulo em que os países terão de relacionar o seu plano com as recomendações do Conselho, todas, com excepção das que na avaliação foram identificadas como “totalmente cumpridas” ou registando um “progresso significativo” (ver aqui na página 7) – Portugal não tem nenhuma destas excepções, como veremos adiante.

Existem igualmente recomendações gerais, associadas às prioridades europeias, como o combate à lavagem de dinheiro, reformas que melhorem o ambiente de negócios e medidas contra o planeamento fiscal agressivo. Além, obviamente, das prioridades europeias da agenda verde e digital, assim como as políticas associadas a aumentar a capacidade de a União Europeia enfrentar melhor, no futuro, choques como o da pandemia. Existe assim um quadro de condições para aceder aos fundos que o primeiro-ministro tem referido como um “contrato, levando já as comparações com o que foi o Programa de Ajustamento Económico e Financeiro, como se pode ler neste artigo de Sérgio Aníbal, “as semelhanças e diferenças em relação à troika. Claro que uma diferença óbvia é não estarmos perante a ameaça de bancarrota, dependentes do cheque da troika, para o Estado honrar os seus pagamentos a funcionários públicos e pensionistas. Neste plano, se não cumprirmos ficaremos, em princípio, com menos acesso a fundos para investir.

Vale a pena visitar os documentos que vão ser revisitados pela Comissão Europeia (CE) quando avaliar o PRR português. São três os documentos que vale a pena ler: a recomendação do Conselho de Julho de 2019; o relatório da CE sobre Portugal com data de Fevereiro de 2020 onde se pode perceber com pormenor as recomendações; a recomendação do Conselho de Maio de 2020, já incluindo os efeitos da pandemia. Há uma única recomendação que não foi cumprida de todo até agora e que é bastante antiga: reduzir as restrições de acesso às profissões reguladas. O que significa isto? Basicamente medidas que reduzam o poder das ordens profissionais e que funcionam como barreiras à entrada de novos profissionais. Este problema estava já identificado no programa da troika e sistematicamente referido como não tendo registado qualquer progresso. Vamos a caminho dos dez anos – o PAEF foi assinado em 2011 – sem que se tenham reduzido o poder das ordens profissionais. O Governo está já a avançar com medidas neste domínio. Embora a iniciativa tenha sido interpretada como uma espécie de reacção ao relatório da Ordem dos Médicos sobre o lar de Reguengos, na realidade é uma exigência antiga da União Europeia que agora terá de ir finalmente para a frente, como uma das condições para receber os fundos europeus. E esta é uma das medidas que não custa dinheiro, exige coragem política que não houve até hoje. Vamos ver se é desta.

Ainda no quadro das barreiras à iniciativa económica, o Conselho recomenda que se “reduza o peso administrativo e regulatório” que recai sobre as empresas, diminuindo, designadamente as barreiras e simplificando os licenciamentos. Simultaneamente, e também relacionado com um melhor ambiente para a actividade económica, recomenda-se que se torne mais eficiente os processos de insolvência e recuperação, assim como os tribunais fiscais e administrativos – que têm prazos inimagináveis.

Todas estas medidas, da redução do poder das ordens à diminuição do poder das empresas instaladas por via de complexos processos de licenciamentos, passando por insolvências e recuperações mais rápidos e tribunais que funcionam, nada disto requer muito dinheiro. Deste conjunto de medidas, apenas a aceleração dos processos nos tribunais administrativos e fiscais exige algum investimento em recursos humanos. Tudo o resto significa, apenas, simplificar legislação.

No domínio do mercado de trabalho, a principal recomendação é igualmente antiga: adoptar medidas para acabar ou reduzir a segmentação do mercado de trabalho. O diagnóstico está igualmente feito há muito tempo e algumas medidas foram adoptadas na era da troika, com a revisão da legislação laboral. Mas o problema subsiste: o país está dividido entre os trabalhadores que têm empregos fixos ou pelo menos com alguma segurança e trabalhadores que vivem em total insegurança. A crise provocada pela pandemia expôs esta dualidade de forma bastante dramática, nomeadamente no domínio da Cultura.

Sobre o mercado de trabalho, a líder da bancada parlamentar do PS Ana Catarina Mendes também revelou em Julho ser intenção do Governo avançar com alterações. Em que termos? Não se percebe ainda, sendo certo que só existem condições políticas para aproximar o grupo dos que vivem em insegurança laboral – os precários – dos que vivem em total segurança. É melhor isso do que vivermos num país em que “uns são mais iguais do que outros”. A intenção do Governo de limitar a três o número possível de renovação dos contratos de trabalho temporário parece ir nesse sentido.

Um outro desafio em matéria de recursos humanos é o de aumentar a qualificação dos portugueses, uma prioridade identificada pela UE, mas igualmente sentida em Portugal, como se percebeu pelo debate público do designado plano Costa Silva. Mais uma vez, estamos perante um conjunto de prioridades que requerem medidas que não custam dinheiro e poderiam, também elas, ter um efeito significativo de multiplicação do crescimento da economia. O combate à pobreza é outra das recomendações presente nos documentos da Comissão Europeia e do Conselho, considerando-se que “a capacidade de redução da pobreza das transferências sociais (que não as pensões), assim como a sua adequação, continua a ser comparativamente baixa em Portugal”. Há um conjunto de medidas em negociação no Orçamento do Estado para 2021 que vão no sentido de respeitar transitoriamente esta recomendação, designadamente a criação de um novo apoio social extraordinário. Mas estamos longe de medidas que tornem mais eficazes as transferências sociais.

As outras recomendações estão na linha do que tem sido anunciado, nomeadamente no que diz respeito ao investimento na ferrovia, nas energias renováveis, na digitalização da economia e na redução das assimetrias regionais ou reforço da integração das redes europeias de transporte. Além disso, estão aqui incluídas todas as políticas que reforcem os serviços de saúde, com o Conselho a destacar a necessidade de assegurar a resiliência do sistema e o acesso, em condições de igualdade e qualidade, aos serviços de saúde. Estas sim, são medidas que exigem dinheiro. Ficam ainda em alerta medidas no sentido de melhorar as finanças públicas e o equilíbrio financeiro das empresas que pertencem ao Estado. Podem não ser políticas que mereçam especial atenção nesta fase, mas estarão em foco assim que a economia comece a recuperar.

Nesta lista não exaustiva de recomendações do Conselho Europeu a Portugal, que o Governo terá de considerar no seu plano de resiliência e recuperação, percebe-se que há muitas medidas que não requerem dinheiro, exigem sim coragem política e capacidade de organização. E percebe-se bem que são essas medidas, mais do que os investimentos em infra-estruturas, que poderão aumentar a capacidade de Portugal crescer a um ritmo mais elevado do que os 2% que tanto nos satisfez nestes últimos quatro anos.

CRESCIMENTO ECONÓMICO  ECONOMIA  UNIÃO EUROPEIA  EUROPA  MUNDO

COMENTÁRIOS:

CarlosMSantos: Depois da bancarrota do Sócrates, tivemos apoio externo mas fiscalizado "in loco", que não foi bonito mas parece que foi eficaz; se calhar e tendo em conta o que vamos lendo e ouvindo, não seria má ideia a CE controlar a aplicação destes fundos de forma semelhante.    Joaquim Moreira: Se é verdade que "Mesmo sem dinheiro, há muito para fazer", não é menos verdade que, mesmo sem dinheiro muito se pode fazer. Mas, para isso, a primeira condição é querer. O que, com esta gente que assaltou o poder, é muito difícil ou impossível de acontecer. E, por uma razão, muito fácil de entender: só o dinheiro move esta gente que apenas quer estar no poder. Não para os grandes problemas do País ajudar a resolver, mas apenas para distribuir o dinheiro que dizem vamos receber. Por isso, quando diz que, "o Governo terá de considerar no seu plano de resiliência e recuperação, percebe-se que há muitas medidas que não requerem dinheiro, exigem sim coragem política e capacidade de organização", está a dar-me razão, ao mesmo tempo que dá a explicação. Ao exigir, coragem política e capacidade de organização! Duas condições que não existem na actual "governação", como ainda hoje disse o líder da oposição.    obdest cipo: ×Mesmo sem dinheiro, há muito para fazer ????? Mas não há para roubar !!!!    Gens Ramos: Essa questão da “igualdade de oportunidades”, no m/ p. vista, é polémico. Num regime liberal, como todos defendemos, o esforço, a competência, a perseverança, o planeamento, o trabalho, a capacidade criativa e imaginação, têm de ser compensados. Reparem, no problema da cultura: licenciei-me em escultura da FBAP e tive de trabalhar no privado e no público para sobreviver; se estava à espera, neste país de favores, de viver das aptidões que me deram com a minha licenciatura estava fluem arranjado. Ora bem!    Madalena Magalhães Colaço: A engenheira Elvira Fortunato, que pôs o laboratório da Faculdade de Ciências e tecnologia na UNL da qual é responsável como um dos melhores a nível mundial. Diz ela numa entrevista ao expresso. Diz ela que há mais de um ano que tenta comprar para a faculdade um grande microscópio de 2 milhões de euros e que o dinheiro para a compra não vem do orçamento do estado mas de uma bolsa que recebeu. Sobre a máquina da Administração Pública diz Elvira o seguinte:...há muitas portas, muitas autorizações, muitos procedimentos...Depois dizem-nos sempre que o problema está relacionado com as regras europeias mas é mentira. Porque a burocracia da Administração Pública é diabólica, as plataformas informáticas e os formulários são muito complexos. Este caso completamente absurdo, onde há dinheiro mas o estado não o deixa aplicar, é paradigmático do que se passa no país. È de nos revoltarmos contra a administração pública e eliminar estas burocracias inúteis.       bento guerra: Fazer sem dinheiro, seria governar, mas a "esquerda" está cá para espatifar e atingir um novo "resgate"      josé maria: Ó Helena Garrido, você também é só mais uma que não põe o dedo na ferida em relação ao maior cancro da economia portuguesa, os escandalosos ajustes directos? Não seria tempo de haver algum colunista do Observador a denunciar essa pouca-vergonha? Andam todos distraídos ou politicamente coniventes com tamanha escandaleira que tem vindo a roer os alicerces da nossa democracia e a degradá-la cada vez mais?     Carlos Quartel: Pode a autora sentar-se confortavelmente, esperando que o PS mexa a mínima palha, antes que apareça o dinheiro. Pode haver muito que fazer, há muito que fazer, mas como se dinamizam as vontades, sem lhes aquecer as costas com os milhões de Bruxelas?? Se bem que tenha descido a temperatura, este pessoal não é muito defensor de trabalhar para aquecer ...... Carlitos Sousa: Alguma ingenuidade de Helena Garrido. Depois de muitos anos ainda não entendeu que o xuxalismo só vive com o dinheiro alheio. Ou dos empréstimos estrangeiros, ou dos impostos dos contribuintes. Sem dinheiro eles não se dão ao esforço de fazer seja o que for. Nesse dia preferem passar o poder à oposição e deixar os "outros" a resolver o problema. O xuxalismo vai eternizar-se nos próximos anos, enquanto chover dinheiro europeu. Vai ser uma Festa que eles não querem perder.   Kifas Ribeiro. "diminuir as barreiras à entrada em determinados negócios por via de excesso de regulação ou licenciamentos". Leia-se: " agilizar as negociatas para melhor e mais depressa se sacar ao Estado"....  Antes pelo contrário. Em suma, o que é preciso são medidas para agilizar a incompetência e a corrupção... Aqui está um perfeito exemplo das razões pelas quais a UE nos tem sido perniciosa, no sentido em que Portugal na realidade não se desenvolveu - apenas passou a gastar mais dinheiro. É que estes alemães (ou outros povos europeus) não conhecem Portugal a não ser pelas estatísticas que lhes fornece o governo (ainda por cima). Os dinheiros europeus desapareceram sempre neste país, onde apenas uma pequena parte acabou por servir para qualquer coisa, que em geral foi paga três vezes o seu custo real a empresas que ainda ficaram a receber rendas e subsídios, e o resto, nos bolsos de uma quantidade de pequenos vigaristas que ainda aproveitaram para fazer calotes aos bancos, e deixaram o País destruído de Norte a Sul, cheio de monos em betão, empresas falidas, automóveis por pagar, e estruturas inúteis, degradadas, ou em vias de degradação Pelo contrário, do que Portugal precisa é de mais centralização, maior controlo e fiscalização, e verificação - inclusive dos diplomas e das universidades - por entidades centrais, que não estejam corrompidas pelas teias de interesses locais nem pelos partidos!!!   Filipe Paes de Vasconcellos: Espero, sincera e ansiosamente, que os países bem governados e por isso prósperos, não nos dêem qualquer espécie de chance para a batota e trapalhadas a que o governo nos tem vindo a habituar. Temos um governo socialista apoiado pela extrema esquerda que não joga com esta mentalidade de rigor e exigência.    Luis Martins: Esperar que os nossos políticos tomem medidas impopulares mas que sejam o melhor para o futuro do país é o mesmo que esperar que o sol comece a rodar em redor da terra   Adelino Lopes: Medidas que não custam dinheiro? (mas que podem causar muitos prejuízos pessoais) É preciso aqui recordar a frase “em Portugal mandam os portugueses”? O que o ministro quis dizer é que em Portugal manda o governo PS, e se for necessário existe uma maioria progressista que pode levantar a mão para aprovar. São conhecidos os custos daquelas medidas (sem custos para o utilizador = SCUT). Por exemplo, está a ver os juízes a prescindirem do dinheiro “sacado” pelos gestores judiciais? Eu não. E dos rendimentos dos advogados nas questões administrativas e fiscais? Eu não. Está a ver os sindicatos a prescindirem dos privilégios (direito) dos funcionários públicos? (aqui os custos serão políticos) Ordens profissionais? Aqui é que eu estranho. A menos da questão do corporativismo dos que já lá estão e de caciques, não consigo encontrar a lógica da situação. Mas atenção: a regulação dos profissionais é fundamental para controlar o anarquismo.

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