quarta-feira, 7 de outubro de 2020

E o medo continua


São sucessivos os artigos sobre o provável mau uso dos tais fundos europeus, ainda nem sequer eles cá chegaram - nem tão cedo chegarão, ouviu-se hoje nas notícias. O artigo de Paulo Rangel, que segue, é só mais um, severo e oportuno, nas informações que dá, até sobre a não recondução de Vítor Caldeira para a presidência do Tribunal de Contas, com as explicações esfarrapadas e impassíveis de António Costa sobre o assunto, ouvi-o eu hoje também, por detrás da sua máscara, que bem lhe quadra, como elemento de fuga e riso. O riso da sua fuga, é mais que certo. E todos nos regozijamos, porque ele está lá, a defender-nos, no seu regozijo, na sua fuga...

OPINIÃO:     O tiro aos fundos: prevenção da corrupção não passa pela contratação pública

Começam a ser coincidências a mais na área da justiça e do estado de direito para delas não se fazer caso.

PAULO RANGEL         PÚBLICO, 6 de Outubro de 2020

1. O mesmo governo, a mesma ministra da Justiça e o mesmo primeiro-ministro que, ao fim de cinco longos anos de inércia, apresentaram uma estratégia de combate à corrupção, querem, nas vésperas da chegada da “bazuca” de fundos europeus, “flexibilizar” e “simplificar” o regime da contratação pública. Recorro intencionalmente à palavra “bazuca”que diz muito do modo ávido e quase larvar como se encara o instrumento de recuperação – porque é essa a terminologia que o primeiro-ministro se deleita e compraz em utilizar. Quanto mais carrega e insiste na imagem da “bazuca”, mais inculca a ideia de que o que importa é “disparar” e “bombear” dinheiro de qualquer maneira. As denominações e as etiquetas raras vezes são acidentais. Pois bem, em nome de um suposto alívio da burocracia e de ganhos de eficiência, o governo amanhou e rascunhou um conjunto de alterações ao regime dos contratos públicos. Alterações essas que levantam todas as dúvidas, alimentam todos os receios e libertam todos os fantasmas do desperdício, do arbítrio, do favorecimento, do desvio e da instrumentalização dos fundos que aí vêm. Não se trata aqui de matéria de opinião ou de embirração da oposição; ela está sufragada pela posição sustentada do Tribunal de Contas, mas também por um amplo consenso na comunidade jurídica.

2. É de facto incompreensível que um governo que diz ter uma agenda contra a corrupção, ainda por cima alicerçada na prioridade dada à prevenção, ordenhe, ao mesmo tempo, uma legislação “facilitadora”, laxista e complacente numa área tão sensível como a dos fundos europeus. Ou seja, num dos campos do direito administrativo em que mais deviam incidir as ditas regras de prevenção da corrupção e do abuso. Agora que o Ministério da Justiça quer que as empresas fiquem obrigadas a ter planos e estratégias de detecção e prevenção da corrupção, vem o governo dispensar a administração pública dos mais elementares cuidados que a podiam contrariar. Os privados têm de se precaver dos riscos que os decisores públicos passam a estar dispensados de prevenir. O governo não pode alegar sequer que desconhece os meandros técnicos da legislação, pois, ao mais alto nível, tanto a ministra da Justiça como o ministro da Economia são reputados especialistas destas áreas, conhecendo muito bem o terreno que pisam. Eis um campo em que não há folga para atenuantes ou desculpas.

3. No quadro europeu, a propósito dos fundos mobilizáveis na estratégia de resiliência e recuperação, tem-se debatido muito a questão da “condicionalidade”. A palavra é maldita, para quem como nós sofreu as constrições da troika. Mas posta de lado uma qualquer receita desse género, há, sem dúvida, duas garantias – ou se se quiser, duas condições – a que a atribuição e a utilização de tais fundos devia estar sujeita. Uma é o respeito pelo princípio do Estado de Direito – a regra do rule of law. Outra é a existência de mecanismos que assegurem o bom uso dos fundos e previnam os desvios e as fraudes. Tenho insistido abundantemente neste ponto: a União Europeia e os Estados Membros têm de fazer depender o recurso aos fundos de garantias do seu bom uso. Talvez o governo português e o primeiro-ministro, deleitados com a linguagem explosiva das “bazucas”, não se tenham apercebido: a generalidade das pessoas com que falo olha com reservas e cepticismo para este novo pacote de ajuda. Não porque não o ache necessário ou até imprescindível. Antes porque receia que seja utilizado para projectos megalómanos, amiguismos partidários, empresas fantasma, formações no papel, miragens digitais. O sucesso do programa de relançamento da economia depende da confiança na qualidade e na transparência do mesmo. As regras de atribuição e utilização dos fundos – largamente inscritas no regime da contratação pública – não podem deixar de ser claras, transparentes e fomentadoras da qualidade das candidaturas. Ao contrário do que o governo faz supor na justificação atabalhoada desta “tentativa-tentação”, a transparência e o escrutínio não fomentam a burocracia nem a complicação. Ao contrário, as soluções simples favorecem a garantia de controlo externo. Mas uma coisa são procedimentos simples e claros, outra, bem diferente, são procedimentos simplistas e não controláveis; uma coisa são regras fáceis, outra, assaz diversa, são regras facilitistas.

4. As razões para preocupação com esta deriva do governo são redobradas, porque, em várias instâncias e planos, os sinais de relaxe e complacência são cada vez mais ostensivos. O último deles é a não recondução do Presidente do Tribunal de Contas, Vítor Caldeira. Não se trata apenas de um magistrado que exerceu impecavelmente as suas funções (de resto, ainda está para nascer o governo ou o presidente de câmara que diga bem do Tribunal de Contas). É, além do mais, um magistrado de enorme prestígio europeu: antes de vir para Lisboa, era “só” o Presidente do Tribunal de Contas Europeu. Como é que um país que preza o Estado de Direito e a independência dos tribunais, numa altura em que os fundos europeus terão centralidade, se dá ao luxo de prescindir de um magistrado deste calibre? Tanto falam das Hungrias, das Roménias, das Polónias e de Maltas e isto não lhes faz espécie nenhuma

Este é o mesmo governo que afastou Joana Marques Vidal. Este é o mesmo governo que acaba de contornar a escolha de um júri europeu independente para o lugar de procurador europeu (painel de que, por sinal, Vítor Caldeira fazia parte), fazendo prover no cargo o seu candidato de preferência.

Começam a ser coincidências a mais na área da justiça e do estado de direito para delas não se fazer caso. A imprensa continua sem questionar a Ministra da Justiça, apesar de todos os casos se inscreverem em áreas da sua órbita. E o primeiro-ministro vai passando pelos pingos da chuva. Podem fazer as juras que quiserem, mas também entre nós se aperta, a cada dia que passa, o cerco ao estado de direito.

Colunista

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COMENTÁRIOS

Manuel Ribeiro INICIANTE: Tem toda a razão mas omite que o PSD faz o mesmo sempre que pode.     Filipe Paes de Vasconcellos INICIANTE: Senhor Euro Deputado Paulo Rangel, Peço-lhe o especial favor de considerar esta minha sugestão: Alerte os seus colegas deputados dos países bem governados. Com esta gente só os países, os tais “forretas”, nos podem ajudar para que não se perca a última oportunidade para melhorar o nosso País. Os países bem governados da CE, e, por isso mesmo, PRÓSPEROS, serem muitíssimo exigentes com a gente que nos governa (mal!), e só libertarem capital à medida que venhamos a ter juízo. se não forem duríssimos, continuamos eternamente um país adiado. Espero, sincera e ansiosamente, que os países bem governados e por isso prósperos, não nos dêem qualquer espécie de chance para a batota e trapalhadas a que o governo nos tem vindo a habituar. Temos um governo socialista apoiado pela extrema-esquerda que não joga com esta mentalidade de rigor e exigência. 06.10.2020     Ferrel EXPERIENTE: Tinha de ser dito por um advogado. No caso da contratação pública ainda vamos tendo leis para combater a corrupção! No caso da privada, o assunto é dos accionistas e seus representantes, ou seja, é a lei da selva onde tudo é possível!    Joao2 MODERADOR: Ora nem mais. Desafio qualquer um a ler o Código de Contratação Pública e imaginar o que é transpô-lo para o contexto empresarial do estado onde o mesmo se aplica. Apesar de tudo, contrata-se com regras. Contratação pública ou contratação privada são uma falsa questão. Até podem ser as duas, desde que os fundos sejam bem empregues e resultem na melhor aposta e resultados positivos para o crescimento económico sustentável do país. Este jogo da corda entre o público e o privado acaba por ser entediante, porque o essencial não é isso.    A. Martins INICIANTE: Porque será, que desde a extrema-esquerda até à extrema-direita, toda a gente está com medo da gestão dos fundos da U. E. a ser feita pelo governo do partido socialista? Afinal de contas, lá bem no fundo, todos sabem, até os partidos da geringonça, o que aconteceu no passado com a corrupção e as diversas bancarrotas desse partido. É caso para dizer "Gato escaldado, de água fria tem medo" No ponto. Tenho é pena que Rui Rio, que ainda por cima tem toda a legitimidade moral do mundo para falar destes assuntos e os denunciar, tenha sido muito "morno" a falar sobre eles. Não tem que andar a criticar por criticar, mas quando há um ataque destas proporções à independência de instituições e facilitação da corrupção espero que veja a criticar e de forma dura!     Henrique Duarte INFLUENTE: Absolutamente.   Degui INICIANTE: Como diz o povo, não perde pela demora. Ainda não chegou a hora certa, imagino eu. Ou então começa-se a descobrir-lhe a careca, mais uma vez como diz o povo!

 

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