António Barreto, e mais
esclarecedor a respeito do seu próprio posicionamento na questão, que uma certa
altivez aristocrática impede que se defina sem tanto rigor intelectual e com maior
abertura subjectiva, por emocional que fosse…
OPINIÃO
A morte e a democracia
Nunca se perceberá o encarniçamento de
alguns partidos de esquerda com a eutanásia. Não parece uma questão essencial e
urgente. Nem tem especial efeito eleitoral. Mas tem aspecto de ser mais uma
“questão fracturante”.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 25 de
Outubro de 2020
O
debate em curso sobre a eutanásia
acabou rapidamente por se dividir em duas discussões: uma sobre a
matéria propriamente dita e outra sobre o processo de legislação.
A
proposta de lei que propunha a realização de um referendo não foi
aprovada. Teremos, assim, um debate parlamentar seguido de
aprovação, ou não, da lei sobre a eutanásia, na sua versão final, após
negociação e discussão na especialidade. O Parlamento fez bem em reprovar esta proposta. Por uma razão essencial: a
pergunta a referendar estava mal formulada, designadamente porque colocava no
mesmo pé eutanásia e suicídio assistido.
São duas coisas diferentes, no modo e nos fundamentos. A ideia de que os
referendos exigem uma pergunta clara, não tendenciosa, a fim de obter uma
resposta simples que se possa formular com o “sim” e o “não”, é um requisito
excelente. O tom (“matar outra pessoa”…), a equiparação de duas realidades
diferentes e o acrescento da expressão “em quaisquer circunstâncias”
Por
outro lado, tendo em conta com as diferenças existentes entre
suicídio assistido e as modalidades de eutanásia (activa e inactiva, voluntária
ou involuntária, etc.), seria indispensável bem distinguir o que está em causa.
É
possível e moralmente aceitável ser contra ou a favor de todas as formas que
precedem, ou ser a favor de certas modalidades e contra outras. Há diferenças
essenciais, morais e deontológicas entre as diversas formas citadas. O que quer
dizer que uma só pergunta referendável não responde às exigências. E um
referendo com cinco ou seis perguntas, que para mais exigem uma discussão
serena, não se afigura prático. Esta é uma das principais razões pelas quais os
referendos à eutanásia são discutíveis e eventualmente desaconselhados.
O problema não fica por aí. Na verdade, os argumentos dos que defendiam ou negavam a realização do referendo obrigam a
uma reflexão mais complexa. Como é
fácil verificar, tanto das esquerdas como das direitas e do centro, há uma
espécie de padrão de comportamento. Quando
o tema convém e as previsões são favoráveis, o recurso ao referendo é fácil.
Pelo contrário, quando as sondagens sugerem que o resultado pode contrariar as
pretensões, logo surgem os argumentos políticos e filosóficos que negam a
hipótese de realizar um referendo para certos temas. Quando
a maioria parlamentar é desfavorável, surge uma hipótese de referendo. Quando
a vitória está assegurada, o referendo é afastado. Quando a
matéria divide um partido, o referendo é a solução. Certo é que muita gente em
Portugal é a favor ou contra os referendos conforme lhe convém. O aborto e a
regionalização foram bons exemplos. A eutanásia também.
A democracia tem riscos. Como se
sabe. No último século, foram muitos os exemplos de eleições de fanáticos e
déspotas e de referendos inesperados e danosos. Acontece que eram as decisões
dos povos e dos eleitorados. Veja-se o percurso de eleições e de referendos na
Alemanha, na Itália, em França, na Venezuela, na Grã-Bretanha, no Brasil, no
Irão, na Argélia… A história da democracia eleitoral e referendária é uma
história com surpresas e desastres. Mas não deixa de ser assim mesmo: os
riscos são elevados, mas os perigos de não haver eleições nem referendos são
piores!
Conhecendo
esses riscos, tentando não utilizar o referendo como arma oportunista e
demagógica, há medidas de segurança que permitem que o recurso à democracia
directa não seja destruidor da própria democracia. Por exemplo, um longo prazo (vários anos) entre a
decisão e a realização do referendo pode ser uma condição eficaz para diminuir
a carga emotiva excessiva ou a pulsão conjuntural que impede uma decisão
serena. Outra medida de segurança é a necessária aprovação pelas
instituições que devem pronunciar-se sobre a realização de referendos, assim
como sobre as perguntas. Se umas dezenas ou centenas de milhares de cidadãos o
pedirem, se uma maioria parlamentar estiver de acordo, se o Presidente da
República aprovar e se o Tribunal Constitucional concordar com os termos, não
há razão para que uma qualquer questão não possa ser submetida a referendo.
Era assim que deveria ser, incluindo as normas constitucionais, os direitos e
os impostos. Nem sempre é assim, infelizmente, pois a Constituição
proíbe certos temas. Mas tenhamos consciência de que se trata de normas
constitucionais pouco democráticas e medrosas.
Em
suma, o Parlamento decidiu bem, mesmo se foi por maus motivos. Na
verdade, os deputados pretenderam subvalorizar o instituto do referendo e
criticar a sua utilização, quando o grande argumento era o da forma e do
conteúdo da pergunta.
Quanto
ao conteúdo do referendo, a eutanásia e o suicídio assistido, estão aprovados
os cinco projectos apresentados. Uma lei final poderá vir a ser o resultado de
negociações e de cooperação entre os diversos partidos que apresentaram os seus
próprios projectos.
Nunca se perceberá o encarniçamento
de alguns partidos de esquerda com a eutanásia. Não parece uma questão
essencial e urgente. Nem tem especial efeito eleitoral. Mas tem aspecto de ser
mais uma “questão fracturante”, daquelas (como o aborto, a objecção de
consciência, o casamento homossexual, a adopção de crianças por homossexuais, a
inseminação com sémen de homem falecido, etc.) que agradam a uns para incomodar
outros.
Os projectos aprovados não faziam rigorosamente as distinções que
deveriam ter feito: eutanásia
activa (intervenção directa para pôr um termo à vida), eutanásia passiva (não
fazer, interromper ou cessar tratamentos), eutanásia voluntária (o próprio
exprime o desejo), eutanásia involuntária (o próprio está incapaz de decidir e
é outra pessoa, médico ou não, que decide) e suicídio assistido (o próprio
executa as operações, mas os dispositivos, produtos ou instrumentos são
fornecidos por outra pessoa).
O suicídio assistido é a solução
mais clara. A intervenção exterior é instrumental, a decisão é do
interessado e a execução é do próprio. É
esta a solução que melhor respeita a vontade da pessoa, o seu livre arbítrio e
a sua escolha informada. Já a eutanásia, com os seus equívocos e
as suas diversas modalidades, revela aspectos muito negativos, a começar pela
modalidade involuntária, isto é, pela decisão sem escolha prévia do paciente.
São de condenar todos os métodos que
desviam a decisão para outra pessoa que não seja o paciente. Só a decisão e o
gesto do próprio respeitam as exigências de liberdade pessoal e de dignidade.
Sociólogo
TÓPICOS
OPINIÃO
EUTANÁSIA MORTE PARLAMENTO REFERENDO ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA PARTIDOS POLÍTICOS
COMENTÁRIOS:
bento guerra.919566 EXPERIENTE: A habitual nuvem de fumo. Não se vota a eutanásia, mas
a despenalização do acto médico de abreviar a morte, em circunstâncias
específicas. Faz-se permanentemente, nas urgências hospitalares.
Mario Coimbra EXPERIENTE: Excelente
análise. Obrigado.
DemocrataXXI EXPERIENTE: Muito bem
visto, sempre me perguntei, sobre o porquê da oposição do PCê Talvez, que a
resposta esteja em que os extremos se tocam ...
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