Foi, sobretudo, o que este artigo de Teresa de Sousa me sugeriu, neste seu arrazoado de aflitivo repúdio dos desprezos de Trump para com uma pobre Europa, sobretudo, que ficará órfã do apoio daquela, caso Trump retome o poder, e faço minhas as palavras da comentadora Rita Laranjeira INICIANTE, por me ter lembrado de idênticos argumentos: “Não deixa de ser irónico que aqueles que tanto criticavam o "imperialismo" americano e a sua política externa demasiado interventiva, agora que os EUA têm o presidente que ordenou menos acções militares nos últimos 80 anos (!) têm saudades da imagem da América perante o mundo antes de Trump... É o que dá ligar em demasia à forma em detrimento da substância.”
ANÁLISE ELEIÇÕES EUA 2020
Pode a América voltar a ser a América aos olhos do
mundo?
Não vale a pena alimentar a ilusão de que a relação da
América com o mundo vai regressar ao ponto em que estava antes de Trump. “Não
há bilhete de regresso ao mundo antes de Donald Trump”.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO,24 de
Outubro de 2020
1.- Uma
das raras coisas normais nas eleições presidenciais americanas é o facto de quase
ninguém mencionar a política externa. E, no entanto, para o resto do mundo, o
seu resultado será “o mais pesado de consequências da história recente”. A afirmação de Julian Borger,
analista do Guardian britânico, talvez não seja tão exagerada quanto parece. As
eleições presidenciais americanas têm sempre um forte impacte global porque os
Estados Unidos continuam a ser o país mais poderoso do mundo. Desta vez,
soma-se uma outra razão. Talvez nunca tenham sido tão distintas as visões
dos dois candidatos sobre a relação da América com o mundo. O primeiro
mandato de Donald Trump conseguiu pôr fim ao habitual consenso bipartidário no
domínio da política externa com que o resto do mundo podia contar.
O ano de 2020 será, definitivamente,
o ano em que uma pandemia tomou conta da humanidade, mas será também o ano em
que a sorte do mundo esteve, em grande medida, dependente da escolha que os
eleitores americanos – provavelmente menos de 200 milhões – fizerem nas urnas,
a 3 de Novembro.
2. Há
duas perguntas simples que toda a gente coloca. A
primeira é se o mundo, tal como ainda o conhecemos, resistirá a mais quatro
anos de Donald Trump. A segunda, até que ponto Joe Biden consegue
restaurar a imagem e a liderança americana no mundo?
Pode
dizer-se sem risco de errar que a primeira pergunta obtém respostas mais
convergentes. O mundo continuaria a sua caminhada cada vez mais
rápida em direcção ao caos. A China teria o seu caminho em direcção à hegemonia
mundial facilitado. A Europa, órfã do seu grande aliado, ver-se-ia obrigada a
fazer das fraquezas forças para enfrentar uma realidade internacional para a
qual não está preparada.
Tem fundamento um cenário tão negro? O
título de um ensaio de Richard Haass,
publicado na edição de Setembro/Outubro da Foreign Affairs, consegue ser a mais simples das definições do que
foram os anos de Trump
na Casa Branca: Present at the Disruption. O director do Council on Foreign Relations de
Washington vai buscar inspiração às memórias de Dean Acheson, conselheiro de
Roosevelt e secretário de Estado de Truman, Present at the Construction.
Acheson descreve ao pormenor como os Estados
Unidos reconstruíram a ordem internacional do pós-guerra a partir da criação de
instituições multilaterais assentes na regra e fiéis à defesa da liberdade e
dos direitos humanos – do sistema das Nações Unidas ao Sistema de Bretton
Woods, da fundação
da Aliança Atlântica ao impulso decisivo para a unificação da Europa Ocidental. A ordem liberal que os Estados Unidos criaram
sobreviveu à Guerra Fria, viveu um breve e feliz interregno em que a democracia
e os mercados pareciam contagiar o mundo inteiro, resistiu à “guerra ao terror” de George W. Bush, teve
em Obama um convicto defensor.
Donald Trump operou uma
ruptura. “Quase destruiu ou, no mínimo,
ignorou, as alianças permanentes dos Estados Unidos, um dos seus principais
pontos fortes em comparação com outras grandes potências como a China ou a
Rússia”, diz William Burns, do Carnegie Endowement de Washington. Ignorou
as instituições multilaterais, considerando-as apenas um sorvedouro de dinheiro
e de recursos dos EUA. Abandonou
o apoio à integração europeia e chegou a pôr em causa a própria NATO.
Finalmente, a única política que chegou a ter alguma aceitação,
acabou por traduzir-se em quase nada. Elegeu
a China como o grande rival da América, o que poderia não alterar
substancialmente a política de “contenção” posta em prática por Barack Obama,
quando definiu a China como o maior adversário estratégico dos EUA no século
XXI.
Faltou-lhe, no entanto, tudo o resto. Desfez as
alianças e os acordos comerciais que Obama negociou na Ásia-Pacífico,
abandonando a Parceria Transpacífica com 11 países da região, incluindo o Japão
e excluindo a China. Substituiu a “contenção” pela hostilidade. “A Administração Trump cedeu o terreno à
China, ao abdicar da sua liderança global e ao negligenciar os seus amigos em
todo o mundo”, diz ainda
Burns. Trocou uma política por slogans, omnipresentes na sua campanha: o vírus é “chinês”; “se Biden ganhar, a
China ganha”.
Robert Zoellick, que foi o representante de George W. Bush para as negociações de comércio, acrescenta um
veredicto ainda mais negro: “A política de Trump em relação à
China, que valoriza mais a postura do que os resultados, foi um total falhanço.
Feitas as contas, a retórica belicista e radical não fez vergar a ambição
chinesa, nem lhe retirou os instrumentos de que precisa para afirmá-la.”
Retirou-se
a superpotência liberal e democrática. Entraram em cena grande potências revisionistas, que
se opõem ao liberalismo e à democracia. “Quatro anos de política externa norte-americana
radicalmente revisionista deram força aos autocratas em todo o mundo,
promoveram o aventureirismo, alimentando os conflitos nas fronteiras da Europa
e as divisões entre parceiros”,
diz Rosa Balfour, directora do Carnegie-Europe. Regressando a Richard Haass, mais
quatro anos de Trump transformariam a “disrupção” que introduziu na ordem
internacional na sua “destruição”.
3.
Edward Luce, colunista do Financial Times em Washington, argumenta que foi
no domínio da política externa que o actual Presidente conseguiu cumprir
algumas das promessas que fez aos americanos em 2016. “Não iniciou nenhuma
guerra. Retirou as tropas do Afeganistão e do Médio Oriente. Os Estados
Islâmicos [Daesh] perdeu o seu território. Os aliados
da América foram forçados a pensar num mundo em que os EUA deixam de garantir a
sua segurança.”
O
argumento de Luce não significa uma apreciação positiva da sua política
externa. Pretende apenas sublinhar que o que fez vai, em muitos aspectos, ao
encontro do que pensa uma maioria de americanos, pouco interessados no que se
passa no mundo. O colunista do Financial Times também quer dizer que não
vale a pena apagar o seu mandato, porque isso não é possível. Joe
Biden apoiou publicamente os acordos que
Trump negociou entre Israel e os Emiratos Árabes Unidos e é muito provável que
mantenha a embaixada americana em Jerusalém.
O mesmo não pode ser dito das suas
cimeiras com o líder da Coreia do Norte, exibidas como um enorme êxito na
contenção do seu programa nuclear. Se era precisa uma prova, ela foi
apresentada na parada militar com que King Jong Un celebrou o último
aniversário da fundação da Coreia do Norte – um “míssil monstro” com capacidade para transportar
ogivas nucleares e atingir território americano.
4. “Biden
pode salvar o mundo?” A
pergunta é retórica, mas contém, ao mesmo tempo, as grandes expectativas e o reconhecimento
das dificuldades que esperam o sucessor de Trump na Casa Branca, desde que não
seja o próprio Trump.
A
simples eleição de Joe Biden terá um efeito imediato:
restituir algum brilho à imagem internacional da América. “Apesar de Trump, os Estados Unidos ainda mantêm um
considerável soft power, porque grande parte do mundo olha para a sua
presidência como uma aberração, que não reflecte o verdadeiro carácter da
América”, escreve Kemal Dervis,
da Brookings Institution, que já chefiou o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento e foi ministro da Economia de Ancara.
Outros autores são menos
optimistas. Reconstruir a confiança nos EUA vai
levar tempo – o tempo necessário para confirmar que Trump foi uma excepção e
não uma viragem. “Os políticos americanos vão ter de trabalhar
arduamente para ultrapassar algum cepticismo, incluindo dos nossos mais
próximos aliados, e o receio de que a polarização política americana tenha
infectado a sua diplomacia”, diz William
Burns. Será uma questão de tempo, mas não
apenas isso. Não vale a pena alimentar a ilusão de que a relação da
América com o mundo vai regressar ao ponto em que estava antes de Trump. “Não há bilhete de regresso ao mundo antes de Donald
Trump”, escreve Philip Stephens
no Financial Times. A realidade
internacional mudou. Os principais actores mundiais também. A política externa
de Biden terá de levar em conta esta mudança.
A China continuará a ser o maior
desafio estratégico dos Estados Unidos nas próximas décadas. Não haverá
imediatamente grandes mudanças na relação com Pequim. Manter-se-ão as actuais
tensões económicas e tecnológicas. Haverá uma dimensão nova, dos direitos humanos,
que uma futura Administração Biden não poderá ignorar. E a extrema tensão em redor de Taiwan - provavelmente, o mais sério risco de uma confrontação
militar - exigirá de uma nova
Administração democrata toda a sua capacidade dissuasora. Como traçar um limite
ao crescente expansionismo da China será um dos maiores quebra-cabeças do novo
Presidente.
Será
mais fácil restabelecer uma boa relação com os velhos aliados e restaurar parte
da confiança dos europeus na NATO. Biden não será “o amigo de Putin” e o “inimigo de Merkel”. Mas Trump, se perder, deixa atrás de si uma Europa mais dividida
na sua relação com a América, tentada pelo sonho de “autonomia estratégica”,
incluindo no domínio da segurança e defesa, mais desconfiada da solidariedade
americana. O
Irão pode ser um teste importante. Biden já disse que, se for eleito, retomará o compromisso americano com o tratado nuclear negociado
por Obama em 2015 e que Trump abandonou. Como uma condição: “Teerão
terá de cumprir o que ficou estabelecido”.
Um grande “se”. O candidato democrata também já anunciou que os EUA
regressam ao Acordo de
Paris sobre as alterações climáticas e manter-se-ão na OMS.
5.Estas são
as mudanças imediatas. Uma estratégia
internacional a mais longo prazo, adaptada ao mundo pós-pandemia, ainda é
matéria para intenso debate nos círculos de política externa próximos de Joe
Biden. O candidato democrata tem uma longa
experiência nos assuntos internacionais desde os seus tempos de senador e de
vice-presidente de Obama, com quem teve algumas divergências. Uma ala mais
“progressista” dos seus conselheiros diz que lhe falta ambição e audácia.
Os mais realistas, escreve Christine Kauffmann no Monde,
“preocupam-se mais em olhar, não tanto para Biden, mas para uma sociedade americana muito dividida, e para
o estado actual do mundo”.
Anne-Marie Slaughter, braço-direito de Hillary Clinton no departamento de
Estado no primeiro mandato de Obama,
escreveu no Financial Times sobre as mudanças que espera de Biden: “Em
estilo, [mudará] dramaticamente. Na
acção, substancialmente, mas não
completamente”. Continua a actual directora do think-tank New America: “Os
EUA voltarão a abraçar o multilateralismo e a estender a mão aos aliados e aos
parceiros com renovado vigor”, mas “continuarão a exercer a competição entre
grandes potências e a concentrar-se na China enquanto o seu maior rival”.
É
esta, precisamente, uma das grandes questões em debate – se é possível travar a
transformação da ordem liberal numa ordem internacional que regressa à “balança
de poder”. A antiga conselheira de Hillary Clinton concluiu que a política
externa de Biden se pode resumir a três D's: “Domestic,
Deterrence and Democracy”. A frente
interna será fundamental, porque boa parte da capacidade de conter a China
passará pela renovação económica e tecnológica dos Estados Unidos. É nestas duas dimensões que a China é mais forte,
e não na dimensão militar. Biden, o defensor dos acordos de
comércio livre do tempo de Obama e de Bill Clinton, será provavelmente mais
sensível à protecção da capacidade industrial americana.
É esta, precisamente, uma das grandes
questões em debate – se é possível travar a transformação da ordem liberal numa
ordem internacional que regressa à “balança de poder”
O
D de Democracia pode
traduzir-se numa velha ideia: não apostar tanto nas organizações multilaterais,
antes fundar uma “aliança das democracias”, capaz de contrariar a vaga
autoritária que varre o mundo e reforçar o modelo ocidental contra o modelo
chinês. O outro
D, de Dissuasão, não
agradará tanto aos “progressistas” da sua entourage, que gostariam de ver uma
redução significativa do gigantesco orçamento da defesa. Os tempos não caminham
nessa direcção. E Biden é, em primeiro lugar, um pragmático.
TÓPICOS
MUNDO
ELEIÇÕES EUA
2020 PRESIDENCIAIS AMÉRICA EUA DONALD TRUMP JOE BIDEN
COMENTÁRIOS:
Nenhum comentário:
Postar um comentário