Bem longe estamos do “Ó mar salgado, / Quanto do teu sal / são
lágrimas de Portugal… Agora, desfeito esse, temos um doce mar mais à porta, de que usufruíamos há pouco, conforme a
cor da bandeira, e agora em expressão reduzida, por via das contingências
viróticas, o que, naturalmente prejudica todos os que o amam para o prazer,
como Maria João Avillez, que dele
fala com saudade e ternura. E poesia também. Mas a sua férula – pesarosa no
caso do mar - é temerariamente condenatória nos casos seguintes, de outras
temáticas da sua – e nossa – reprovação: bem longe estamos, sim, além desse mar
em falha, dos ideais de democracia tal como a conceberam alguns dos idealistas
do passado - entre os quais se conta MJA
–
ideais em vias de extinção, naturalmente, como o mar de há pouco. E uma vez
mais, o seu terçar armas por uma personalidade respeitável, que os da pujança
política de hoje souberam, aparentemente, conspurcar, desaparecidos também os
preceitos de uma educação, dantes, ensinada, e hoje, amordaçada.
Um fim previsível, na tristeza de uma
época de mascarada mal convicta, que nos vai empurrando para o abismo – não dos
mares de outrora, espaçosos, mas puramente desse, à nossa porta, pouco amável hoje, na
tristeza desse fim: o do mar amigo à nossa porta, o dos ideais políticos ou
educativos, como aquele, em vias de extinção.
O fim da época / premium
E o peso “deste” fim de época? Os
optimistas dirão que se trata de um intervalo num percurso de normalidade
conhecida, os pessimistas, como eu, chamam-lhe fim de época: sem medo das
palavras.
MARIA JOÂO AVILLEZ
OBSERVADOR, 23 set
2020
Já
prestes a chegar, passada aquela curva mais íngreme quando se desce para a
praia, a expectativa sobe na antevisão da cor da bandeira. O ritual repete-se
de ano para ano: bandeira verde seria demasiado “whisful thinking”, talvez
amarela? Mas céus, tudo menos a vermelha, mãe de todas as impossibilidades. Desta
vez, porém, não havia bandeira no areal. E também já não havia toldos. Nem
havia banheiros. A ausência dos toldos às riscas azuis e brancos, até
ali sempre alinhados como soldados de um exército protector, fizera subitamente
da areia um outro oceano infinito enquanto eu imaginava, no barracão da praia,
uma montanha de riscas de pano já bem dobrados, até para o ano. Era o fim da época. Provavelmente, alguém avisara,
mas não dera por isso, nunca deixo que o Verão me fuja ou me arrede dele, e
mais uma vez partira afoita para o meu Atlântico – meu, do mesmo exactíssimo
modo em que uns sapatos, ou um automóvel, podem ser meus.
O
mar ali é fértil em susto e avaro de calmaria, mas paciência. Nunca foi de outro modo e já nos conhecemos há tanto
tempo que julgo saber-lhe as correntes, os baixios e outros perigos. Costuma
ter a cobri-lo uma tela de neblinas obstinadas e às vezes – muitas vezes –
cachos de nuvens de um esbranquiçado espesso, que parecem misteriosamente ter
ali estacionado para sempre. Paciência. Outra vez. Requiem por um dia Verão.
Mas nos chamados “dias bons”, com os deuses de feição, o mar amável, a bandeira
verde, os sentidos ficam de imediato alerta, pressentindo o dom. São dias mais
raros e, por isso, sorvidos com volúpia. Poucas coisas conheço de mais
totais, do que um banho de mar no Atlântico num dia azul de Verão e nunca por
nunca ser qualquer outro mar – e sabe Deus como o Mediterrâneo me inspira –
teve a primazia.
E
nos dias “assim-assim”, faz-se de conta. São os de bandeira amarela,
entalados entre a glória do Verão (o verde da bandeira) e o repúdio da
temeridade, sinalizada pelo vermelho. Nesses dias, hesitamos entre a
tentação e o receio do mar, traiçoeiro, dizem, e esperamos: talvez as águas
sosseguem, ou o vento mude, ou… Anda-se a pé, dobra-se a esquina das rochas, ou
vai-se até à lagoa, o mais manso refúgio para os esfaimados das ondas como
sou. Mas não gosto dos dias de bandeira amarela, são incaracterísticos,
de nem uma coisa nem outra, quase inócuos. (Lembram-me
um coro de hesitantes, ou alguns vultos da República, sempre encostados ao
conforto mole do “nim”, parecido com os muitos “mas” daquele amarelo praieiro e
nem sei porque me lembrei disto agora.)
Mas
seja qual for o humor ditatorial da bandeira, resta-me sempre, nesta praia ou
nas outras daqui – e não se sabe qual a mais imperiosamente oceânica -, a
certeza do cheiro a maresia, como se sabe, o mais inebriante dos cheiros. E
se o Ruy Belo estivesse
agora ao pé de mim, percebia muito bem isto da maresia e destas ondas. E de
como pode ser absoluto o seu efeito sobre a “anima” de uma pessoa, ele que
sentia como ninguém estas moradas atlânticas e tanto as procurava.
Mas agora já não há bandeira, nem
toldos, nem banheiros. O Verão partiu, a praia é hoje uma imensa terra de
ninguém, fustigada pelas arrebentações prodigiosas do equinócio. É o fim da época, com a fininha melancolia que a
tinge. Deve haver poucas coisas tão tristes como o fim da época num lugar de
Verão do qual se esteve (quase) como numa questão de vida ou de morte.
2 Tal
como o Verão, aquilo que prezamos como democracia estará também em fim de
época? A liberdade, de pensamento e
gesto, o Estado de Direito, a certeza da independência entre os seus três
poderes, insubstituíveis traves mestras do regime democrático; o cumprimento da
lei, a importância do Parlamento, o trânsito partidário, o poder do voto, o
valor do debate, uma “media” com saúde democrática… Tudo
isso, enfim, que nos educa para uma cidadania decente – e nos protege e defende -, parece estar nalguns países a atingir o seu
prazo de validade com ameaçadora naturalidade. Admirável naturalidade, de
resto, e por isso deixo aqui um caso, que a ser verdade, volta a
radiografar bem a dimensão da ameaça. Ocorreu
no México. Eu sei que é
longe e pouca intimidade temos com o país latino tão distante, mas o exemplo é
bom. Foi protagonizado pelo seu Presidente, Manuel Lopez Obrador, em cuja
eleição grande parte do país depositou as maiores esperanças, após décadas
(demasiado) longas de ocupação do palco político pela direita. Pois bem: do dia
para a noite, Lopez Obrador decidiu
proceder a um “referendo” para que os mexicanos se pronunciem se sim ou não
devem ser julgados os presidentes da República que antecederam Lopez Obrador no poder. São
cinco, nenhum anda a contas com a Justiça,
nenhum tem processos judiciais em curso ou, sequer, abertos. Segundo o que leio
(El País) “cabem
poucas dúvidas jurídicas sobre o impossível encaixe legal de um gesto destes. Numa
democracia é a Justiça, os seus juízes e fiscais que tomam estas decisões. E
não o poder executivo, nem o legislativo, nem as a votações populares”.
Que o acto é exclusivamente político,
é verdade. Que um
presidente tenha ousado semelhante ideia e avançado para a sua concretização,
parece mentira. O México será muito longe, mas longe ou perto, as regras da democracia
são únicas e as mesmas, o mau uso que delas se faz é que começa a rolar para os
abismos. Isto, para variar das
nossas poucas-vergonhas caseiras e já repararam como elas se tornaram sucessivas?
Todos os dias há um novo episódio, como nas séries, mas infelizmente a nossa é
péssima.
3. E o peso “deste” fim de época?
Os optimistas dirão que se trata de um
intervalo num percurso de normalidade conhecida, os pessimistas, como eu, chamam-lhe fim de época:
sem medo das palavras, ou sabendo lidar com elas. O fim da “normalidade “ que era a nossa; do como éramos, fazíamos, escolhíamos e nos
relacionávamos; o fim dos códigos que regiam esse mundo, onde, mais forte ou
mais frágil, havia chão debaixo dos pés e há aqui qualquer coisa de quase
apocalíptico com a qual vai ser preciso aprender a lidar. Aprender
(literalmente) uma nova vida. O solo
que pisamos hoje é deslizante e traiçoeiro, vive-se às apalpadelas, no escuro
do desconhecido. Os mais racionais consolam-se com (excesso?) a esperança de
uma vacina que “qualquer dia estará aí”, confiando até que o Inverno pode não
ser tão madrasto quanto as previsões ou, até (!), que a energia vital da vida
vencerá o medo e a dúvida. No entretanto, não se sabe com quem aprender
estes dias, nem em que livros ler de que passarão a ser feitos. Ou a que
fonte ir bebê-los.
Perguntas sem respostas, claro. Talvez
seja melhor assim. Banir a curiosidade e dispensar a imaginação, em vez de
antecipar – mobilando-a – a nova época impressa globalmente no mundo,
talvez não seja má ideia.
P.S.:
Li e tive muito pena. Imensa pena. A carta enviada por um grupo de católicos ao
Patriarca de Lisboa, por ter ele assinado um manifesto onde se fundamentavam as
discordâncias quanto ao ensino da disciplina de Cidadania e da punição
atribuída a dois alunos que deixaram de frequentar essas aulas, enferma do
mesmo que aqui apontei há oito dias: o nível de irracionalidade e “inseriedade”
que afecta hoje, ferindo de morte, qualquer debate intelectual e político.
Segundo li no título de um jornal, D. Manuel Clemente e um outro Bispo estariam
em má companhia nesse manifesto, porque os seus signatários são de extrema
direita (quais?). No corpo
da notícia já só seriam “alguns” (quais?).
Haverá “justificação” mais à mão, mais corriqueira, mais inserida no ar do
tempo, mais politicamente correcta, mais obsessiva e, claro, mais falsa?
Ocasião desperdiçada. Mas pior: como católicos que se afirmam, escrevem e
assumem, a figura de D. Manuel Clemente, o seu percurso, o seu exemplo, a sua cultura, não
mereceriam a estes signatários uma confiança no seu critério e no entendimento
dos actos que pratica? Ou seja,
não hesitaram, em nome do tal ar do tempo – esse sim, “sagrado” – em lhe passar um atestado de irresponsabilidade
cívica, coisa muito feia. Quem esperava outro fôlego e melhor
substância neste escrito católico, não se terá lembrado que a boa-fé e a
seriedade moral e intelectual também podem estar em fim de época.
Receba um alerta sempre que Maria
João Avillez publique um novo artigo.
NATUREZA AMBIENTE CIÊNCIA DEMOCRACIA SOCIEDADE POLÍTICA CIDADANIA
COMENTÁRIOS:
manuel soares Martins: Lá que é um fim é. Fim da época, fim do sistema, fim do paradigma... enfim,
o fim da macacada. Pedro
J.: "...a boa-fé e a seriedade
moral e intelectual também podem estar em fim de época." Que remate de texto tão
poderoso. E a quem devemos esta queda na seriedade moral e intelectual na vida
pública portuguesa, no Estado? Nos últimos 25 anos? A escumalha socialista tem
grande parte da culpa mas o PSD não é isento. Consigo abrir uma excepção para
Pedro Passos Coelho como Primeiro-Ministro. antonyo antonyo: Muito bom, sobretudo o último
parágrafo (para não dizer PS)...Luis Ferreira: Só estamos em fim de época
porque quem vota se arregimentou à volta de partidos como se fossem a sua
família. E à família perdoamos (quase) tudo, até ideias estúpidas que por vezes
nos prejudicam, desde que esse familiar nos convença de que está a ser
atacado... e hoje todos os partidos se dizem atacados! Ridículo. Andrade QB: Talvez que a poesia seja a melhor companhia para a
despedida. Esquece causas e culpados e convida ao abandono ao destino. Um
remédio muito bem-vindo quando a adrenalina já não ajuda à protecção do
perseguido. Infelizmente, tudo aponta para termos que agradecer a poesia deste
artigo a Maria João Avillez. Manuel Magalhães: Bonito texto Maria João e onde
se tocam assuntos de extrema importância, embora de forma suave mas... “à bon
entendeur”... bento
guerra: Neste caso, verdadeira época
viral Gens Ramos: Este fim de verão, da forma que o descreve parece um
pouco dramático; quando na realidade, esta beleza de “cá estar” continua a ser
bem apetecível. A disciplina de C e D, não faz falta, por isso dela se fala.
Maria Cordes: Claro que estamos em fim de época, M. J., com tudo o que sucede
semanalmente, mas ainda mais, insidiosa e subterraneamente, i.é, sem
transparência, para que ocorra, sem darmos por isso, cada vez mais parecidos
com países do continente que mencionou, que conheci prósperos e relativamente
seguros (México e Venezuela, que percorri, há algumas décadas). Nem o Professor
Karamba consegue visualizar como é que isto vai acabar, nesta república. Maria
Nunes: É um prazer ler as crónicas de
MJA, pelas belíssimas imagens que nos transmite e pela excelência do seu
português. Manuel
Vilhena > Maria Nunes: Maria Nunes de acordo, mas, já agora, também pelo seu
conteúdo. Adoro. Maria
Nunes > Manuel Vilhena: Concordo plenamente. Não mencionei o conteúdo por
distracção. Todas as crónicas de MJA têm uma mensagem subjacente.
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