sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Três exemplos e mais

 

Um trio uniforme de figuras públicas coesas no seu dirigismo político, não como os três mosqueteiros, por real amizade e por amor pelo rei, mas por subtil atitude de amor pelos interesses pessoais de cada um. Uma atitude jornalística de comentador não isento e mal-educado, (permitindo-se trazer o palco alegremente - embora malcriadamente - chocarreiro dos DDT para as páginas de um telejornal). Uma garantia de futuro segundo um modelo governativo de continuidade cleptocrática – eis três exemplos abordados por Paulo Tunhas, que assim justifica, com a expressividade intelectual de sempre, o nosso posicionamento na cauda de uma Europa de maior sucesso: Três exemplos de um desprestígio que está há muito incrustado na massa populacional, a que pertencemos, e que já Eça tantas vezes fez sentir, como neste exemplo extraído de “O crime do Padre Amaro”, pela voz de duas figuras de padres que a ironia de Eça desfaz, naturalmente, na sua orientação criativa, que o contraste amplifica hilariantemente – exemplos de antigamente, talvez mais extintos hoje, mas não menos dolorosos, que atingem as cidades - no parasitismo irredutível dos Sem-abrigo, por exemplo, comprovativo de uma estrutura social de escassez perpétua, em muitos níveis …

«- Muita pobreza por aqui, muita pobreza! – dizia o bom abade. – Ó Dias, mais este bocadinho de asa!

- Muita pobreza, mas muita preguiça – considerou duramente o padre Natário. Em muitas fazendas sabia ele que havia falta de jornaleiros, e viam-se marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar Padres-Nossos pelas portas. – Súcia de mariolas! – resumiu.

- Deixe lá, padre Natário, deixe lá! – disse o abade. – Olhe que há pobreza deveras. Por aqui há famílias, homem, mulher e cinco filhos, que dormem no chão como porcos e não comem senão ervas.

- Então que diabo querias tu que eles comessem? – exclamou o cónego Dias lambendo os dedos depois de ter esburgado a asa do capão. – Querias que comessem peru? Cada um como quem é!

O bom abade puxou, repoltreando-se, o guardanapo para o estômago, e disse com afecto:

- A pobreza agrada a Deus Nosso Senhor.»

A cauda da Europa /premium

A Europa não é sem dúvida uma lagartixa, mas há tantas coisas esquisitas por estas bandas que, em dias mais sombrios, uma pessoa apanha-se a pensar: que Deus me perdoe, mas não será que merecia?

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 15 out 2020

Durante anos, mantive-me firme na minha convicção que os portugueses são mais parecidos com os outros povos do mundo, nomeadamente com os outros europeus, do que por aí se diz. É uma convicção, no fundo, tranquilizante. Pelo menos, os nossos defeitos aparecem sob uma luz menos cruel se se aparentam aos dos franceses ou italianos. E as nossas qualidades revelam um fundo civilizacional comum. Podemos estar na cauda da Europa, mas, como a Europa não é uma lagartixa, não nos arriscamos a que ela se solte se tal parecer necessário à sua sobrevivência. Conforta saber isso. Mas, às vezes, convém pensar contra nós mesmos e contra as nossas convicções. E se houver diferenças que nos singularizem de modo particularmente saliente, ao ponto de revelarem um contraste qualquer que assinale uma espécie de incompatibilidade final? Se a cauda for mesmo amovível de forma indolor para o resto do corpo? Não é inútil, quanto mais não seja como mero exercício, visitar estes negros pensamentos, se possível com a ajuda de exemplos concretos, convenientemente distintos entre si.

Primeiro exemplo: Marcelo Costa Rio. Não é preciso ser um subtil analista político para nos darmos conta que somos governados por uma misteriosa entidade que dá pelo nome de Marcelo Costa Rio. É indiscutivelmente uma originalidade, já que em qualquer outra parte do mundo tal entidade seria impossível e em seu lugar existiriam três entidades distintas e perfeitamente autónomas, mantendo entre si uma exterioridade que as individualizaria irredutivelmente. Aqui não. Sem entrar nas elevadas controvérsias teológicas do Concílio de Niceia, apresentam uma perfeita identidade que desafia o entendimento. Pensam em comum e agem em comum, como se de uma única substância se tratasse. Não há Marcelo, Costa e Rio. Há Marcelo Costa Rio. Uma parte dos portugueses acredita na Santíssima Trindade, mas vê-la assim no dia-a-dia, lidando como uma só pessoa com os diários problemas da nação, é caso para grande estupefacção. O pasmo e o assombro tomam conta de nós. E entorpecem-nos. Marcelo Costa Rio decide tudo, desde a nomeação da Procuradora-Geral da República à escolha do Presidente do Tribunal de Contas. Ao que se ouve dizer, negar a nova Trindade é pouco ético e antipatriótico. O credo da República resume-se num só artigo: eu acredito em Marcelo Costa Rio. Os poucos bandos de heréticos que ainda sobrevivem, os actuais discípulos do bispo Ário, são impiedosamente perseguidos. O dogma exige unanimidade. Só uma pergunta: o que é que vêm fazer aqui as eleições?

Segundo exemplo: o regador regado. A primeira curta-metragem inteiramente ficcional da história do cinema, foi realizada em 1895 por Louis Lumière e tem por título O Regador Regado, L’arroseur arrosé. Conta, em menos de um minuto, a história de um jardineiro que, enquanto rega o jardim, fica surpreendido pela súbita falta de água a sair da mangueira. A coisa explica-se pelo facto de um miúdo, pregando-lhe uma partida, pisar deliberadamente a mangueira, impedindo a água de circular. E quando o jardineiro aproxima a boca da mangueira da cara, para ver se há algum problema, o miúdo tira o pé, libertando a circulação da água, e um jacto forte bate em cheio na cara do jardineiro. Lembrei-me desta história no outro dia a ver na TVI José Alberto Carvalho a comentar detalhadamente a saída de Donald Trump do hospital onde estivera internado. Alberto Gonçalves já comentou o caso na Rádio Observador, mas permito-me voltar à carga, porque raras vezes assisti a um espectáculo tão delirante na televisão, e Deus sabe como ela abunda em delírios sortidos. Mesmo para os altos padrões de José Alberto Carvalho, e eles são mesmo muito altos, o feito foi prodigioso. Não é que o homem passa um tempo infinito numa interpretação semiótica da maneira como Trump desce umas escadas, apoiando-se num corrimão? Em tudo – no modo como ele dá umas banais e quase imperceptíveis pancadinhas no corrimão, por exemplo – ele vê sinais do horrível carácter de Trump, num exercício de delírio interpretativo sem igual. Para se ter uma ideia da coisa, basta dizer que nem Luís Costa Ribas seria capaz de chegar a tais patamares. Como é óbvio, quem acabou encharcado de ridículo foi o próprio José Alberto Carvalho. A diferença para com o filme de Louis Lumière é que foi ele mesmo, e nenhum miúdo brincalhão, a pisar a mangueira. Pisou voluntariamente a mangueira, dirigiu-a à cara, levantou o pé e, zás, o jacto de água soltou-se muito lampeirinho. Não imagino em nenhuma televisão inglesa, francesa, italiana ou espanhola um exemplo equivalente de tal semiótica cabalística. Estamos já muito longe da banal má-fé. É loucura pura e simples. Loucura mesmo.

Terceiro exemplo: três anos para garantir o futuro. Com a aproximação da vinda dos dinheiros da Europa, e no seguimento de uma conversa que vem de longe, voltou a falar-se muito de corrupção. E, claro, logo apareceu quem minimizasse o problema, como a (simpática, de resto) comissária europeia Elisa Ferreira. Receio que a doutrina que ela defende esbarre com uma tendência forte em Portugal: a admiração genuína e pouco disfarçada pelos espertos que são capazes de vigarizar o próximo sem serem por isso castigados. Basta pensar no que se ouvia anos atrás sobre, por exemplo, José Sócrates. Em 1841, um jornalista e poeta escocês, Charles Mackay, publicou um clássico menor sobre as grandes ilusões colectivas que em certas alturas tomam conta dos povos, das vigarices financeiras à caça às bruxas: Memoirs of Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crowds (um título que inspirou um livro recente de Douglas Murray). O livro interessa sobretudo hoje em dia aos economistas, que aproveitam muitas das ideias de Mackay, mas interessa igualmente qualquer pessoa que sinta curiosidade pela facilidade de acreditar dos seres humanos e proporciona uma leitura fascinante. Um dos capítulos é dedicado à admiração pelos grandes salteadores, algo de comum em Inglaterra, de Robin Hood a Dick Turpin e para além dele. Em Portugal, tirando Zé do Telhado, não me lembro de mais nenhuma figura dessa equívoca estirpe que tenha granjeado uma tão ilustre reputação. Mas os vigaristas, sim. Há algo em nós que os venera, mesmo que à superfície provoquem indignação. Por isso, e por aquilo que se lê ou vê diariamente, eu tenderia a duvidar do optimismo de Elisa Ferreira. A apetência pelo dinheirinho é grande e, se se dispõe de meios legais para nos protegermos dos eventuais castigos às malfeitorias, ela tem a trela longa. A coisa vem de há muito e foi teorizada por Caio Verres, um governador da Sicília atacado por Cícero em tribunal em 70 a.C. Os governadores romanos das províncias não eram pagos, mas tinham nelas um poder praticamente absoluto, o que originava normalmente corrupção em grande escala. Verres terá declarado que um homem precisava de três anos no seu posto de governador: o primeiro para garantir uma fortuna para a vida; o segundo para juntar dinheiro para pagar aos melhores advogados de defesa; e o terceiro para amealhar o necessário para subornar o juiz e os jurados, com vista a escapar à justiça. A doutrina de Verres parece muito actual, pelo que se vai sabendo.

A Europa não é sem dúvida uma lagartixa, e Portugal, mesmo na cauda, não se arrisca excessivamente a ser separada do resto do corpo para a sobrevivência deste. Mas há tantas coisas esquisitas por estas bandas que, em dias mais sombrios, uma pessoa apanha-se a pensar: que Deus me perdoe, mas não será que merecia?

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POLÍTICA  CRÓNICA  OBSERVADOR

COMENTÁRIOS:

josé maria: Em 2015, último ano da governação de Passos, a taxa de intensidade de pobreza estava em 26,7. Em 2018, último ano conhecido, essa taxa desceu para 22,4.Em 2015, o índice GINI estava em 33,9. Em 2018, ficou em 31,9.Em 2015, a taxa de desemprego fixou-se em 12,4. Em 2019, essa taxa foi substancialmente reduzida para 6,5. Eis apenas três índices para mostrar por que razão a larga maioria dos portugueses continua a preferir a actual solução governativa de Costa e seus aliados políticos.      José Paulo C Castro > josé maria: Era uma vez um país com 10 pessoas. 8 eram funcionários públicos. O governo (dois deles) decidiu contratar mais um. O desemprego desceu logo para metade. Eram todos muito pobres, tinham todos apenas 10 euros na conta depois de pagarem todas as suas dívidas. Os que não eram FP eram os mais ricos, pois tinham 20 euros cada por terem produzido algo. Tiveram que pagar 10 de imposto e ficaram todos então mesmo pobres. Consta que o índice de Gini do país melhorou imenso. O novo FP vai votar no governo por o terem empregado. O que não é FP pensa em emigrar, apesar de viver num país com um índice de Gini francamente bom. O governo está contente por manter uma boa maioria eleitoral, mesmo que seja com cada vez menos eleitores. Está a considerar aceitar imigrantes com menos de 5 euros na conta para repor a população e poder cobrar impostos no futuro.    josé maria > José Paulo C Castro: A "maldição socialista" deu nisto: Taxa de Intensidade da Pobreza: 2015 - 26,7; 2018 - 22,9 . Mas no tempo do Passos é que era bom...    José Paulo C Castro / josé maria: Limiar do risco de pobreza: 2015 - 5269€: 2018 - 6014€. Alguém com 5500€ anuais passou o limiar e tem agora a companhia dos restantes pobres. Pior, o salário médio também ficou mais perto.       Marie de Montparnasse: Se alguém com mente fértil em ficção conseguir descrever a misteriosa entidade ou criatura MarceloCostaRio e se a ela se associar a revivificada cauda da largartixa, terá aplausos e prémios merecidos. Obrigada Paulo Tunhas por todos e mais um textos da cultura e do saber..   José Paulo C Castro: A cauda a cortar e que se regenera é de lagartixa, sim. Tem nome de uma certa sigla partidária. Perdem regularmente a cauda e voltam. É uma lagartixa invertida face à lógica. A cabeça não está na cauda dispensável da liderança. Está na base oculta debaixo das pedras. Só com um laço. De longe. Lá da Europa, talvez, um dia...      Gens Ramos: Vamos fazer o quê! Devolver o dinheiro, a tal bazuca?         Sparks and Sparrows: Não obstante as dificuldades inerentes a um país periférico e com as idiossincrasias conhecidas, como meio século de obscurantismo, cuja sombra esconde muito saudosista que tudo tem feito para atrapalhar, Portugal deu um salto notável a todos os níveis. Hoje exibe com orgulho alguns dos melhores rácios de desenvolvimento!    Fernando Almeida > Sparks and Sparrows: O que diz ė verdadeiro. Todavia, sem falsas ilusões e sem corrupção, tínhamos dado o salto qualitativo!      Maria Augusta > Sparks and Sparrows: O meio século de obscurantismo que foi...espera...há praticamente....meio século ? Xi...camarada onde isso já vai! E meio século de socialismo serôdio dá para "curar" disso, ou não? O salazarismo e Passos Coelho têm as costas muito largas para os canhoto-fsscistas.     José Paulo C Castro > Sparks and Sparrows: Oh, Ana Ferreira, deixe-se lá de transfigurações

Renato Ribeiro: Este texto aponta para o enfraquecimento da democracia de um modo que concordo... Não como a histeria que vejo sobre as medidas sanitárias de novo estado em que estamos e que são vistas como tirânicas (exceptuando a de propor a obrigação de uso de uma app no telemóvel que, sim, sem dúvida, é danosa da liberdade - contudo, não creio que vá avante)          henrique pereira dos santos: Talvez João Brandão, embora geograficamente mais contida, tivesse uma admiração semelhante a Zé do Telhado       Adelino Lopes: Merecer merecia, só que não vai acontecer. Ou se calhar vai. (teoria da conspiração) Não vai acontecer porque os europeus continua interessados em manter aqui um cantinho para passar férias seguras. Mas pode acontecer, se surgirem mais uns Brexit´s, que podem ser vários em conjunto. Veremos. Quanto ao 3º exemplo, eu sou dos que acredito (teorias?) que a posição da maioria da população perante fulanos como o Sócrates é de inveja; não é de condenação.    Carlos Quartel: Bom para a saúde, ler isto. Faltaram as eleições para as CCR, amanhadas pelo trio maravilhas. A pergunta é pertinente. Eleições para quê ??   bento guerra: A cauda da lagartixa tem a capacidade de se regenerar e continua a mexer depois de separada. Portugal pode continuar a meio caminho entre a Europa e o terceiro mundo."Tuk-tuks" já temos    António Hermínio Quadros Silva: Como diria Fernando Pessoa '' que é cauda para além do lagarto remexidamente''

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