Dá a impressão de que não, de que o
embrião da democracia não estava ainda na Constituição de 1822, só mesmo
as boas intenções na referência a “condenação
da arbitrariedade”, com “o exercício
do poder nu e cru” e a “consagração
dos direitos fundamentais”, o povo sendo representado nas cortes pelos “representantes da nobreza que governavam as
terras”, tal como sempre se fizera, creio que desde as “Cortes de Leiria” de 1254, que reuniu, pela primeira vez, os
representantes do povo, juntamente com os do clero e da nobreza, no reinado de
D. Afonso III.
Fernando Dores Costa faz uma
análise historiográfica muito interessante e facilmente demonstra que não, “o termo democracia designando para os
liberais a multidão em fúria”. A democracia hoje é esplendorosamente
servida pelos partidos que ela aparentemente apoia, através do seu voto, e tem
como seus defensores do peito os sindicatos que a estimulam a greves e marchas
reivindicativas, coisas que não se viam por 1822. Numa coisa tinham os liberais
razão: ainda hoje o termo democracia
designa uma multidão em fúria.
OPINIÃO
Estava o embrião da democracia na
Constituição de 1822?
A consagração do censo tinha um
fundamento objectivo, por mais repugnante que seja para a nossa sensibilidade actual.
Manuel Fernandes Tomás encarava com naturalidade a “corrupção” eleitoral no
sistema inglês: sempre que os governos ou os “homens ricos” quiserem comprar
votos, fá-lo-iam.
FERNANDO DORES COSTA
PÚBLICO, 4 DE OUTUBRO DE 2020
Os constitucionalistas procuram na
Constituição de 1822 a presença das tradições discursivas que parecem
demonstrar um percurso que conduziu logicamente ao actual quadro constitucional. Na verdade, encontramos nesses textos a condenação
da arbitrariedade – ou exercício do poder nu e cru – e a consagração dos
chamados “direitos fundamentais” como limites intransponíveis da autoridade.
Mas a partir deste patamar, sabemos que esse imaginado caminho entre o
liberalismo e a democracia levanta muitas outras questões. A Constituição
de 1822 deve, deste modo, ser vista em
contexto.
A
reclamação de uma convocação das Cortes na sua forma tradicional
– por estados (sendo estes a nobreza, o estado eclesiástico e o dos
povos, no plural, designando os representantes das nobrezas que governavam as
terras com assento na reunião, e não o “povo” como um grupo social) para
ouvir as suas queixas - não constituía em si mesma algo que colidisse com a
legitimidade tradicional da monarquia. Mas tornara-se uma referência abstracta,
pela ausência de reunião desde 1697-8 e, mais tarde, no período pombalino,
atentatória do poder do rei, sobretudo quando assumia um papel determinante,
como em 1697-8, aquando do afastamento do rei Afonso VI substituído pelo irmão
D. Pedro, ainda que como regente, e não como rei, como muitos queriam.
Mas
ainda em 1809, os governadores do reino, quando foi criada a contribuição
extraordinária de defesa, alegaram que não podendo convocar Cortes, tinham consultado
todos os “tribunais”, tal como eram designados genericamente os vários órgãos
consultivos do Estado. Por aventarem essa possibilidade, seriam repreendidos
pelo conde de Linhares, então primeiro-ministro de D. João no
Rio de Janeiro, que excluía liminarmente essa reunião como um
caminho inevitável para a desordem e responder-lhe-iam os governadores que,
tendo o conde limitado de tal modo os seus poderes, receavam que a nova
contribuição não tivesse a indispensável legitimidade sem haver reunião de
Cortes.
Convocar
uma assembleia para redigir uma constituição era algo bem diferente. Sendo certo que o que a maioria esperava deste novo
tempo após 1820 eram resultados muito tangíveis: que o rei
regressasse à Europa e que o Brasil permanecesse tanto quanto possível
subordinado ao poder residente em Lisboa, nomeadamente fragmentando-se em
função de ligações diversas das várias regiões a Portugal.
Mas,
para além disso, a existência de uma constituição teria o objectivo de
regularizar as relações entre a autoridade e os subordinados e consequentemente
reforçar as leis e as ordens. Em vez de uma acumulação desordenada de leis,
a existência de uma lei das leis permitiria idealmente uma
delimitação universal das acções. O que era uma resposta ao mal-estar
criado pelo sentimento de impossibilidade de chamar à responsabilidade os
homens que rodeavam o rei, desde há muito vistos com mais do que desconfiança. O
rei capturado pelos conselheiros intriguistas era o tema central do discurso de
“oposição” desde o século XVI. Mas restringir o mal-estar aos ministros em
sentido estrito – ou seja, ao reduzido número dos que eram secretários de
estado e despachavam com os reis - ilude a dimensão muito ampla do conflito.
O que estava em jogo era a margem de arbitrariedade deixada aos
detentores de cargos e postos, que abusavam do seu poder e eram apontados como
opressores dos proprietários e lavradores, que eram vistos como os elementos
chave da sociedade. O
ideal apontado era o de uma sociedade onde o número de cargos públicos fosse o
mais reduzido possível. O muito activo deputado Borges Carneiro é exemplo do
defensor do alegado regresso a uma sociedade simples onde os homens se
dedicariam às suas propriedades sem serem perturbados.
A
sujeição à lei seria a “despersonalização” dos cargos e postos, cujo exercício
deixaria de ser visto como uma oportunidade para a promoção dos interesses
particulares dos que os ocupam. Os homens deviam idealmente considerar que a
sua posição social decorria dos rendimentos obtidos da boa supervisão das suas
propriedades. O ideal era a neutralidade da administração, que passaria a ser
uma efectiva protecção comum dos homens e não um factor de conflito.
Recorde-se que isto se passava numa
sociedade em que não se imaginavam as mudanças económicas e sociais fundadas
sobre a industrialização e a urbanização, acentuado pelo ritmo lento do país.
Não era sonhado que houvesse a possibilidade de uma economia sem o exército de
jornaleiros ou criados de lavoura. Nas elites havia atenção às inovações
técnicas e ao investimento agrário, mas a transformação social estava fora do
horizonte.
A possibilidade de uma democracia em 1822 –
no sentido que hoje lhe atribuímos, sobretudo se for numa versão mais ambiciosa
– é um absurdo. A
grande massa dos indivíduos encontrava-se efectivamente excluída das decisões
políticas. Havia uma
elite de proprietários que governava a sociedade e uma mais pequena elite
que se julgava estar capacitada para interpretar a “vontade geral”. A
maioria daqueles a quem se reconhece a possibilidade de participação como
eleitores escolhe de entre esse pequeno grupo. Isto é percebido como
objectivo e natural. Na verdade, a democracia, para não ser a mera
reprodução da compartimentação social, implicaria um predomínio social dos de
média riqueza, o que não se verificava.
O termo democracia designava para
os liberais a multidão em fúria. Para
autores clássicos como Benjamin Constant era
evidente que apenas os proprietários podiam ser sujeitos políticos. Eram os
interessados na ordem. O sistema
político tinha dois níveis consagrados. A representação da nação é feita
pelos sábios que são capazes de interpretar o que constitui a “vontade geral”,
acima dos suas particularidades profissionais ou locais. Depreende-se que
há uma exigência de conhecimento da linguagem política. Estes não
representam as opiniões comuns, mas antes a instância de “racionalidade” que
vigia a administração.
Os constituintes de 1821 debateram com detalhe
quem podia ser eleitor, nomeadamente os subordinados não permanentes, como os
criados de lavoura. Usava-se o futuro acesso à condição de eleitor como
incentivo à aquisição de uma escolaridade elementar, pressupondo que os comuns
dariam a isso alguma importância.
A Carta constitucional de 1826 será mais clara ao estabelecer um censo, ou seja,
um valor mínimo de rendimento anual de 100 e 400 mil réis para se ser eleitor e
elegível para a Câmara dos Deputados, isso sendo considerado factor
mínimo de independência. Sabemos que isso estava longe de impedir a
“compra” de votos em troca de favores.
O
sistema a dois níveis (não considerando os excluídos por dependência ou pobreza),
dos votantes e dos elegíveis, tem um fundamento objectivo na sociedade. O alargamento
do número de votantes ou de elegíveis não iria por si mesma alterar o sistema,
embora, mesmo sem que houvesse razão para isso, pairasse o medo de uma irrupção
popular elegendo oportunistas desordeiros.
A
consagração do censo tinha um fundamento objectivo, por mais repugnante que
seja para a nossa sensibilidade actual. Manuel Fernandes Tomás encarava com naturalidade a “corrupção” eleitoral no
sistema inglês: sempre que os governos ou os “homens ricos” quiserem comprar
votos, fá-lo-iam. “Há compras
de votos, empenhos e seduções; mas é sempre a favor de três ou quatro homens
capazes, não é a favor de homens indignos.” [sessão
de Cortes de 29-08-1821, p. 2076]. No mesmo sentido, dizia o “pai da
Revolução de 1820” que presenciara o carácter tumultuário de um dia de
votações em Inglaterra, mas que no dia seguinte verificara que tudo regressara
ao normal. A eleição de deputados era uma competição entre os tais
“homens de capacidade” e os seus métodos eram encarados como uma fatalidade e
sem muita relevância.
A
possibilidade de poder participar na escolha ou de ser escolhido como
representante da nação era considerado algo que dependia de o indivíduo em
causa possuir um determinado nível de riqueza disponível que alegadamente
garantiria a independência nas suas opiniões e decisões. Eram aqueles que
estavam suficientemente libertos da pressão constante da sobrevivência, ou
seja, os que não estavam sempre ocupados em encontrar benefícios imediatos e
que trocariam o seu voto por algo de tangível. Os liberais eram
estritamente materialistas e muitas vezes, estritamente deterministas.
Nas democracias do século XX,
desapareceu a explicitação desta conexão entre a necessidade de haver um escudo
material para a liberdade de decisão política e, em sentido oposto, o sufrágio
universal masculino, e depois feminino, passava a garantir a todos os cidadãos
o direito a ser eleitor e eleito. O problema
da capacidade de resistência a pressões e a chantagens parece esfumaçar-se. A urbanização
e a passagem do espaço de referência comum dos habitantes de um âmbito local
para outro, nacional, alteram o panorama, mas nem por isso deixou de
haver coacção própria do caciquismo, agora em larga escala. Esses eleitores tornam-se, em sociedades urbanas e
pós-industriais, apenas consumidores no “mercado político”.
Investigador
do Instituto de História Contemporânea — Universidade Nova de Lisboa
TÓPICOS
OPINIÃO
HISTÓRIA CONSTITUIÇÃO 200 ANOS DA
REVOLUÇÃO LIBERAL D. JOÃO VI CORTES ESTADO
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