terça-feira, 13 de outubro de 2020

Figuras revisitadas

 

Nomes, figuras históricas de um passado triste, factos desconhecidos que tornam presentes dois seres mal conhecidos, talvez porque foram discretos, ou foram mais nobres, nos seus comportamentos de responsabilidade. Salles da Fonseca, ao dramatizar os seus encontros, supostamente fantasmagóricos, (o que aponta para um estado de espírito de alegria fictícia no autor dos textos), vai-nos dando referências sobre essas figuras e esses tempos idos, com o espírito de sempre, que contém reservas de idêntico “raffinement” de maneiras, em vias de extinção, talvez…

CONVERSAS SOLTAS - 5

HENRIQUE SALLES DA FONSECA     A BEM DA NAÇÃO, 13.10.20

Personagens:  Rei D. Manuel II; Presidente Manuel Teixeira Gomes; Rainha D. Maria Pia

Cenário passeio sobranceiro à «Praia dos Pescadores» na Ericeira

* * *

MTG – Boa tarde, Majestade! Cá estamos nós prontos para espantar os nossos colegas, os fantasmas que nos atazanam.

R – Como as outras, a conversa de hoje também fica exclusivamente entre nós, nem às paredes a confessaremos porque as paredes têm ouvidos e os ouvidos têm pernas.

MTG – Às ordens de um Rei sereno até um Presidente sereno obedece. – ambos riram -  Mas é claro que manterei segredo do que Vossa Majestade disser. Ouso pedir reciprocidade de tratamento.

R – Os pedidos de um Presidente sereno são facilmente satisfeitos por um Rei sereno. Tratemos, pois, de afastar os nossos fantasmas…

MTG – Quem começa?

R – Posso começar eu. E, para já, não vou afastar os meus fantasmas mais antigos. Fico-me só pelo que aconteceu em 5 e 6 de Outubro de 1910: a viagem de Lisboa a Mafra e o embarque aqui na Ericeira. Como se imagina, nas Necessidades, toda a gente estava de cabeça perdida, desde os criados que se viam sem emprego até às Rainhas mas a carruagem apareceu a horas de viajarmos para Mafra, quando lá chegámos tudo estava preparado para nos receber durante a noite, na manhã seguinte viemos até aqui sem correrias de quem foge, tínhamos um bote à nossa espera e o yacht «Amélia» ancorado ao largo. Até mesmo o percurso de Lisboa a Mafra pareceu um passeio de Domingo. A República tinha sido proclamada em Loures no dia 4, não devíamos passar por lá; a viagem por Cheleiros seria impossível para os cavalos e, contudo, sem que eu desse uma única ordem, saímos calmamente das Necessidades, rumámos a Queluz, tomámos o caminho de Pêro Pinheiro e Negrais, Malveira e Mafra, tudo isto sem subidas nem descidas difíceis. Estava tudo pensado por alguém, tudo aconteceu sem atropelos. Este é o meu primeiro enigma. O segundo, o ambiente em Mafra onde parecia que nada se estava a passar no resto do país e, finalmente, o que aconteceu à chegada ao yacht quando, esperando nós que rumaríamos ao Porto, o Comandante me declarou – sem me pedir licença nem qualquer hesitação – que rumaríamos a Gibraltar e não a qualquer outro destino. Pura e simplesmente, estávamos a ser raptados e o rapto começara no preciso momento em que subíramos para a carruagem no pátio das Necessidades. E quando chegámos a Gibraltar, já estava tudo arranjado para a minha avó seguir para Génova e não nos acompanhar até ao nosso destino final que, entretanto, já sabíamos que seria Londres. Tudo excessivamente sincronizado para se poder assemelhar a uma fuga.

MTG – Eu não lhe chamaria rapto mas sim uma acção que visava pôr a Família Real portuguesa a recato, em condições que garantissem a sua própria segurança física.

R – E a minha avó?

MTG Vim a saber mais tarde que Londres não queria que a Casa de Sabóia se imiscuísse nos assuntos do Império Britânico.

R – E o que é que Portugal tem a ver com o Império Britânico?

MTG Formalmente, nada. Mas a antiga Aliança dá aos ingleses um sentido de obrigação de protecção de Portugal que não sentem com outros países.

R – A Aliança ou os vinhos do Porto e da Madeira, as possessões ultramarinas e mais não sei quê?

MTG – Pois… E quando Vossas Majestades chegaram a Londres e se instalaram no mesmo palácio em que a Senhora D. Amélia nascera (estava então a Família Real francesa também em exílio), houve que procurar um Embaixador português que «falasse» bem inglês…

R – A bon entendeur! Quer isso dizer que os ingleses já tinham ligações com os republicanos?

MTG – Manda a prudência ao cavaleiro que mantenha um pé em cada estribo.

R – Agora sou eu que digo «Pois…». Realmente, com a sua chegada a Londres, sentimos uma certa segurança. Mas o fim da sua comissão foi um tanto repentina.

TG – O Presidente Sidónio Paes era da linha dura. Recebi ordem de regresso imediato a Portugal. Despedi-me do Rei Jorge V e da Rainha Alexandra que me receberam à pressa e, por amizade, fora das normas do protocolo. Despedi-me do Primeiro Ministro e segui no primeiro barco que arranjei. Passei por Lisboa para tratar de assuntos administrativos e recolhi-me a Vila Nova de Portimão e às minhas adoradas amêndoas, as minhas filhas, entretanto adolescentes. E assim fiquei em recato enquanto o Capitão Agostinho Lourenço punha a Marinha Grande na ordem sidonista. Com o fim do Consulado Sidonista, Lourenço desaparece da cena portuguesa durante 15 anos para só reaparecer em 1933 para instalar a PVDE. Ele e eu fomos como os alcatruzes mas em 1925 fartei-me de tudo, desmoralizei e exilei-me. Deixei os bens às minhas filhas e fui para longe da confusão que só com mão de ferro assentaria. E como não sou dos da «hard glove», auto-exilei-me na Argélia francesa onde encontrei estalajadeiras amáveis e deixei-me por lá ficar à espera que o Capitão Agostinho Lourenço fizesse o que fez e que não era do meu estilo «soft glove».

R – E os «Serviços» abandonaram-no?

MTG – Bem, Majestade, digamos que as minhas modestas despesas foram sempre atempadamente liquidadas. Mas o meu funeral em Bougie foi pago pelo nosso Governo.

R – E com esta conversa, o Senhor afugenta algum fantasma?

MTG – Sim, Majestade. Estava muito necessitado de contar tudo a quem merecesse saber e me desse garantias de segredo absoluto. É o caso de Vossa Majestade.

Foi então que, no seu passo miúdo, vinda do «Passeio Marítimo», surgiu a Rainha D. Maria Pia que, passando junto do Rei e do Presidente, lhes fez saber que –Ho sentito tutto quello che hai detto e penso che, se non è vero, è ben trovato – e, sempre no seu passo miúdo, seguiu até à porta da «Casa da Fernanda» onde se esfumou… Iria comer um «ouriço»? Que disparate! Quando é que já se viu um fantasma a comer?

Outubro de 2020     Henrique Salles da Fonseca

Tags:  história

COMENTÁRIOS:

Francisco G. de Amorim 13.10.2020: Muito bom. Dá um livro.

Anónimo: 13.10.2020: Ao contrário dos 3 diálogos anteriores entre o Rei D. Manuel II e o Presidente Manuel Teixeira Gomes, neste não referes se a conversa continua. Independentemente de os diálogos continuarem ou não, o que escreveste já é suficiente para eu poder complementar o meu comentário que fiz à tua primeira Conversa Solta entre estes dois personagens. Conseguiste, Henrique, através da leveza dos diálogos, que estes fossem fáceis de ler e de apreender o que de importante continham, dando assim a conhecer alguns aspectos relevantes da vida desses dois Homens e, consequentemente, da nossa História. A tua elegância levou-te a abster de salgar ou apimentar as vidas pessoais do Rei ou do Presidente. Como longe estás da pena afiada e acutilante de João Chagas, o qual se referiu ao autor de “Novelas Eróticas” e de “Agosto Azul” como “uma espécie de Óscar Wilde, com alguns vícios deste e sem o seu talento”!... Nunca ouvi, mesmo aos republicanos mais empedernidos, dizer mal do Rei D. Manuel II, antes pelo contrário, sempre ouvi (e li) que foi amigo de Portugal, pronto ajudar o seu País, apesar de exilado, não obstante as vicissitudes dramáticas e trágicas que nele viveu, como é sabido.
Um dos muitos méritos dos teus posts é obrigar-nos a reflectir sobre acontecimentos, ideias, pensamentos ou conceitos. E a propósito destas Conversas Soltas, dei por mim a fazer, entre outras, as seguintes reflexões:
Que cegueira e ódio políticos podem levar grupos de pessoas a classificar como “mártires da liberdade” os regicidas e a prestar-lhes, durante alguns anos, homenagem nos aniversários do hediondo crime que foi o regicídio? Que traumatismo político sofreu Manuel Teixeira Gomes para renunciar à Chefia do Estado, ao fim de 2 anos e 2 meses, bem como para se autoexilar e nunca mais regressar a Portugal? Dizem os livros que ele se tinha cansado de pedir a Afonso Costa (a quem ele devia o lugar de Presidente da República) que deixasse Paris e viesse chefiar o Governo, mas que este não se demoveu. Por outro lado, também teve de fazer face a uma revolta militar (mas isso era o “pão nosso de cada dia”). Igualmente teve que aturar duas vezes, como Chefe do Governo, António Maria da Silva, com quem acabou por estar de relações cortadas e, tendo este ganho eleições em novembro de 1925, evitou, ao renunciar em Dezembro, de lhe dar posse mais uma vez. Aliás, este senhor foi Chefe de Governo cinco vezes. Convém recordar que a República, em 15 anos e 7 meses que durou (entre “Velha”, “Nova” – Sidonismo - e de novo “Velha”), teve 45 governos e 8 Presidentes da República, tendo sido o nosso protagonista o penúltimo. Que estabilidade!... Abraço.
Carlos Traguelho

Muito bem escrito assim a historia é muito interessante de ler. Muito talento estimado amigo Henrique.
Abraço agradecido do
Ramos Gonçalves

 

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