Nomes, figuras históricas de um passado
triste, factos desconhecidos que tornam presentes dois seres mal conhecidos, talvez
porque foram discretos, ou foram mais nobres, nos seus comportamentos de
responsabilidade. Salles da Fonseca, ao
dramatizar os seus encontros, supostamente fantasmagóricos, (o que aponta para
um estado de espírito de alegria fictícia no autor dos textos), vai-nos dando
referências sobre essas figuras e esses tempos idos, com o espírito de sempre,
que contém reservas de idêntico “raffinement” de maneiras, em vias de extinção,
talvez…
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA A BEM DA NAÇÃO, 13.10.20
Personagens:
Rei D. Manuel II; Presidente Manuel Teixeira Gomes; Rainha D. Maria Pia
Cenário – passeio sobranceiro à «Praia dos
Pescadores» na Ericeira
* * *
MTG –
Boa tarde, Majestade! Cá estamos nós prontos para espantar os nossos colegas,
os fantasmas que nos atazanam.
R –
Como as outras, a conversa de hoje também fica exclusivamente entre nós, nem às
paredes a confessaremos porque as paredes têm ouvidos e os ouvidos têm pernas.
MTG –
Às ordens de um Rei sereno até um Presidente sereno obedece. – ambos riram - Mas é claro que manterei segredo do que Vossa
Majestade disser. Ouso pedir reciprocidade de tratamento.
R –
Os pedidos de um Presidente sereno são facilmente satisfeitos por um Rei
sereno. Tratemos, pois, de afastar os nossos fantasmas…
MTG –
Quem começa?
R –
Posso começar eu. E, para já, não vou afastar os meus fantasmas mais antigos.
Fico-me só pelo que aconteceu em 5 e 6 de Outubro de 1910: a viagem de
Lisboa a Mafra e o embarque aqui na Ericeira. Como se imagina, nas
Necessidades, toda a gente estava de cabeça perdida, desde os criados que se
viam sem emprego até às Rainhas mas a carruagem apareceu a horas de viajarmos
para Mafra, quando lá chegámos tudo estava preparado para nos receber durante a
noite, na manhã seguinte viemos até aqui sem correrias de quem foge, tínhamos
um bote à nossa espera e o yacht «Amélia» ancorado ao largo. Até mesmo o
percurso de Lisboa a Mafra pareceu um passeio de Domingo. A República tinha
sido proclamada em Loures no dia 4, não devíamos passar por lá; a viagem por
Cheleiros seria impossível para os cavalos e, contudo, sem que eu desse uma
única ordem, saímos calmamente das Necessidades, rumámos a Queluz, tomámos o
caminho de Pêro Pinheiro e Negrais, Malveira e Mafra, tudo isto sem subidas nem
descidas difíceis. Estava tudo pensado por alguém, tudo aconteceu sem
atropelos. Este é o meu primeiro enigma. O
segundo, o ambiente em Mafra onde parecia
que nada se estava a passar no resto do país e, finalmente, o que aconteceu à
chegada ao yacht quando, esperando nós que rumaríamos ao Porto, o Comandante me
declarou – sem me pedir licença nem qualquer hesitação – que rumaríamos a
Gibraltar e não a qualquer outro destino. Pura e simplesmente, estávamos a ser
raptados e o rapto começara no preciso momento em que subíramos para a
carruagem no pátio das Necessidades. E quando chegámos a Gibraltar, já estava
tudo arranjado para a minha avó seguir para Génova e não nos acompanhar até ao
nosso destino final que, entretanto, já sabíamos que seria Londres. Tudo
excessivamente sincronizado para se poder assemelhar a uma fuga.
MTG –
Eu não lhe chamaria rapto mas sim uma acção que visava pôr a Família Real
portuguesa a recato, em condições que garantissem a sua própria segurança
física.
R –
E a minha avó?
MTG – Vim
a saber mais tarde que Londres não queria que a Casa de Sabóia se imiscuísse
nos assuntos do Império Britânico.
R – E
o que é que Portugal tem a ver com o Império Britânico?
MTG – Formalmente,
nada. Mas a antiga Aliança dá aos ingleses um sentido de obrigação de protecção
de Portugal que não sentem com outros países.
R – A
Aliança ou os vinhos do Porto e da Madeira, as possessões ultramarinas e mais
não sei quê?
MTG –
Pois… E quando Vossas Majestades chegaram a Londres e se instalaram no mesmo
palácio em que a Senhora D. Amélia nascera (estava então a Família Real
francesa também em exílio), houve que procurar um Embaixador português que
«falasse» bem inglês…
R – A
bon entendeur! Quer isso dizer que os ingleses já tinham ligações com os
republicanos?
MTG –
Manda a prudência ao cavaleiro que mantenha um pé em cada estribo.
R –
Agora sou eu que digo «Pois…». Realmente, com a sua chegada a Londres,
sentimos uma certa segurança. Mas o fim da sua comissão foi um tanto repentina.
TG – O
Presidente Sidónio Paes
era da linha dura. Recebi
ordem de regresso imediato a Portugal. Despedi-me do Rei Jorge V e da Rainha
Alexandra que me receberam à pressa e, por amizade, fora das normas do
protocolo. Despedi-me do Primeiro Ministro e segui no primeiro barco que
arranjei. Passei por Lisboa para tratar de assuntos administrativos e recolhi-me
a Vila Nova de Portimão e às minhas adoradas amêndoas, as minhas filhas,
entretanto adolescentes. E assim fiquei em recato enquanto o Capitão Agostinho
Lourenço punha a Marinha Grande na ordem sidonista. Com o fim do
Consulado Sidonista, Lourenço desaparece da cena portuguesa durante 15 anos
para só reaparecer em 1933 para instalar a PVDE. Ele e eu fomos como os
alcatruzes mas em 1925 fartei-me de tudo, desmoralizei e exilei-me. Deixei os
bens às minhas filhas e fui para longe da confusão que só com mão de ferro
assentaria. E como não sou dos da «hard glove», auto-exilei-me na Argélia
francesa onde encontrei estalajadeiras amáveis e deixei-me por lá ficar à
espera que o Capitão Agostinho Lourenço fizesse o que fez e que não era do meu
estilo «soft glove».
R – E
os «Serviços» abandonaram-no?
MTG – Bem,
Majestade, digamos que as minhas modestas despesas foram sempre atempadamente
liquidadas. Mas o meu funeral em Bougie foi pago pelo nosso Governo.
R – E
com esta conversa, o Senhor afugenta algum fantasma?
MTG –
Sim, Majestade. Estava muito necessitado de contar tudo a quem merecesse
saber e me desse garantias de segredo absoluto. É o caso de Vossa Majestade.
Foi então que, no seu passo miúdo, vinda
do «Passeio Marítimo», surgiu a Rainha
D. Maria Pia que, passando junto do Rei e do Presidente, lhes fez
saber que –Ho sentito tutto quello che
hai detto e penso che, se non è vero, è ben trovato – e, sempre no seu
passo miúdo, seguiu até à porta da «Casa da Fernanda» onde se esfumou… Iria
comer um «ouriço»? Que disparate! Quando é que já se viu um fantasma a comer?
Outubro de 2020 Henrique Salles da Fonseca
Tags: história
COMENTÁRIOS:
Francisco G. de Amorim 13.10.2020: Muito
bom. Dá um livro.
Anónimo: 13.10.2020: Ao contrário
dos 3 diálogos anteriores entre o Rei D. Manuel II e o Presidente Manuel
Teixeira Gomes, neste não referes se a conversa continua. Independentemente de
os diálogos continuarem ou não, o que escreveste já é suficiente para eu poder
complementar o meu comentário que fiz à tua primeira Conversa Solta entre estes
dois personagens. Conseguiste, Henrique, através da leveza dos diálogos, que
estes fossem fáceis de ler e de apreender o que de importante continham, dando
assim a conhecer alguns aspectos relevantes da vida desses dois Homens e, consequentemente,
da nossa História. A tua elegância levou-te a abster de salgar ou apimentar
as vidas pessoais do Rei ou do Presidente. Como longe estás da pena afiada e
acutilante de João Chagas, o qual se referiu ao autor de “Novelas Eróticas” e
de “Agosto Azul” como “uma espécie de Óscar Wilde, com alguns vícios deste e
sem o seu talento”!... Nunca ouvi, mesmo aos republicanos mais empedernidos,
dizer mal do Rei D. Manuel II, antes pelo contrário, sempre ouvi (e li) que foi
amigo de Portugal, pronto ajudar o seu País, apesar de exilado, não obstante as
vicissitudes dramáticas e trágicas que nele viveu, como é sabido.
Um dos muitos méritos dos teus posts é obrigar-nos a reflectir sobre
acontecimentos, ideias, pensamentos ou conceitos. E a propósito destas
Conversas Soltas, dei por mim a fazer, entre outras, as seguintes reflexões:
Que cegueira e ódio políticos podem levar grupos de pessoas a classificar
como “mártires da liberdade” os regicidas e a prestar-lhes, durante alguns
anos, homenagem nos aniversários do hediondo crime que foi o regicídio? Que
traumatismo político sofreu Manuel Teixeira Gomes para renunciar à Chefia do
Estado, ao fim de 2 anos e 2 meses, bem como para se autoexilar e nunca mais
regressar a Portugal? Dizem os livros que ele se tinha cansado de pedir
a Afonso Costa (a quem ele devia o lugar de Presidente da República) que
deixasse Paris e viesse chefiar o Governo, mas que este não se demoveu. Por
outro lado, também teve de fazer face a uma revolta militar (mas isso era o
“pão nosso de cada dia”). Igualmente teve que aturar duas vezes, como Chefe
do Governo, António Maria da Silva, com quem acabou por estar de relações
cortadas e, tendo este ganho eleições em novembro de 1925, evitou, ao renunciar
em Dezembro, de lhe dar posse mais uma vez. Aliás, este senhor foi Chefe de
Governo cinco vezes. Convém recordar que a República, em 15 anos e 7 meses que
durou (entre “Velha”, “Nova” – Sidonismo - e de novo “Velha”), teve 45
governos e 8 Presidentes da República, tendo sido o nosso protagonista o
penúltimo. Que estabilidade!... Abraço. Carlos Traguelho
Muito bem
escrito assim a historia é muito interessante de ler. Muito talento estimado
amigo Henrique.
Abraço agradecido do Ramos Gonçalves
Nenhum comentário:
Postar um comentário