Faço minhas as observações dos
comentadores colocados no final - realmente os primeiros que comentaram a excelente crónica de JPP:
chagas_antonio EXPERIENTE: (No Barreiro não existem só arquivos: existe uma
reserva de sabedoria e de participação cívica, que pode e deve ser explorada e
aproveitada nos tempos difíceis que se avizinham. Obrigado pela lucidez, JPP.
03.10); orion EXPERIENTE: (JPP será sempre lembrado pelas suas magníficas
crónicas, ímpares nos jornais portugueses. Escreve com a memória de quem nasceu
em 1948 e tem muito para contar. Desta vez, no fim da adolescência, entre o que
cá chegava do Maio de 1968, a Guerra Colonial e o
ocaso do Estado Novo. O Barreiro é mítico, acolhendo as hordas de camponeses que,
desde os anos 30, começaram a engrossar o operariado, vindos do Alentejo e da
exploração da terra pelos grandes proprietários. Foi desta forma que os efeitos da Revolução Industrial, tardiamente, chegaram
a Portugal. E em finais
da década de 60 já estava em modo frouxo. Muito bem, JPP).
Não foi só no Barreiro, contudo, que surgiram manifestações
culturais enfeudadas á doutrinação marxista, preconizadores, talvez, do 25 de
Abril. Também em Lourenço Marques tais
manifestações se verificaram nos anos 60, com um cineclube e um teatro
experimental com peças clássicas, e suponho que muitas reuniões clandestinas a
apontar os novos tempos - sem fábricas embora, nem trabalhadores operários a exemplificar a doutrina …
OPINIÃO - O
meu primeiro Barreiro
Nessa noite, como nós não
frequentávamos a “classe operária”, havia que ir vê-la ao Barreiro. E lá fomos
para o barco.
JOSÉ PACHECO
PEREIRA PÚBLICO, 3 de Outubro de 2020
Nunca
imaginei ir tantas vezes ao Barreiro
como vou agora. As razões são mais ou menos conhecidas e têm que ver com o facto
de dois armazéns do Arquivo Ephemera serem no Barreiro. Não
apenas no Barreiro, mas em pleno território da CUF, depois da Quimigal e agora
da baía do Tejo, atrás do mausoléu onde está sepultado (ilegalmente, aliás) Alfredo
da Silva, e no meio de armazéns e ruínas de
fábricas, oficinas e estranhos ofícios que lá se instalaram, como uma igreja
evangélica, e vários ateliers de arte. Vou lá e estou bem lá, mas, voltando
atrás, nunca imaginei “frequentar” o Barreiro como hoje. O Barreiro, se
fosse uma pessoa, dir-se-ia que era um “carácter”, um portador de identidade,
por boas e más razões, que não deixa ninguém indiferente, mesmo que esteja já
muito “descaracterizado”, ou seja, estragado. Tem em
cima do seu presente, um enorme passado e nunca é fácil viver com muita
história em cima. A história
não está só nas pedras, nas colunas de aço abandonadas, nos silos a
desfazerem-se, nos terrenos poluídos, está dentro das pessoas, das famílias,
das associações, das ruas e parques. Está no dístico da CUF, “o
que o país precisa, a CUF faz”, está numa
das melhores vistas do Tejo e de Lisboa, numa longa faixa ribeirinha, está em
tradições únicas como a do esperanto, ou do futebol popular e operário.
Aí
por volta de 1966, um
pequeno grupo de amigos, estudantes de várias faculdades, “associativos” como
se dizia, ou seja, opositores do regime, num período que nós ligamos ao Maio de
1968, mas que na realidade começou muito antes, interessava-se
pela cultura que era duplamente do contra, contra o Estado Novo e contra a
ortodoxia neo-realista. Isto incluía um outro cinema, uma outra literatura,
uma outra música, mas, acima de tudo, uma outra vida. Nós pensávamos que era nova, mas na realidade era
mais um remake de outros momentos anteriores em que houve mudança, ou pelo
menos vontade de mudança. E isso implicava, como também sempre aconteceu, uma
certa forma de vagabundagem que acompanhou esse pré-Maio, mais uma certa forma
de libertinagem, e mais uma série de outras “agens” que não vêm aqui ao caso.
Não havia muito dinheiro, e a cidade,
onde eu era estrangeiro, tinha uma geografia que nós próprios criávamos, desde
a Cidade Universitária, ao Campo Grande, ao Saldanha, ao Rossio e à Praça da
Figueira, e, por fim, nos sítios onde, junto de gente pouco frequentável, se
podia comer por muito poucos escudos, na Rua da Alegria, ou na Rua do Alecrim. Uma geografia de cafés, restaurantes e tascos, que
para mim era sempre escassa, porque vinha habituado a uma terra com cafés por
todo o lado e onde por 2$50 se podia passar o dia, ler e escrever, e sobrava
dinheiro.
Numa
dessas noites, eu, a Diana Andringa e o Alexandre de Oliveira resolvemos ir ao
Barreiro, já era noite escura. O Alexandre morreu cedo e não sei se a Diana se
lembra como eu dessa noite, mas como nada de muito relevante para as nossas
personae de hoje está em jogo, posso contá-la como me lembro. A razão por
que resolvemos fazer essa viagem nocturna era porque o Barreiro era o Barreiro,
o local mítico da classe operária, e como todos os esquerdistas in the making,
a terra era simbólica da revolução que desejávamos, mas para a qual não
tínhamos mão-de-obra, e duvidávamos sequer de ter a legitimidade de fazer parte
dela.
Tenho
ideia que não falámos muito no meio das luzes das torres das fábricas e do
ruído industrial, numa paisagem que hoje quase não existe em Portugal, porque
era uma experiência que nos tornava silenciosos. Se era para ver os operários, o
que recebemos foi o pacote completo: o mundo da fábrica, de uma fábrica a
sério, como não havia outra em Portugal, um mundo para nós tão estranho como
Marte. O mundo era simples, no Barreiro havia não só operários, havia a “classe operária” e essa “classe”
pertencia ao PCP. Anos mais tarde arrogámo-nos ao direito de a roubar ao
PCP, sem nunca se ter grande sucesso. Verdade seja que as coisas já não
eram como no mito, a CUF estava a mudar, ensaiava a primeira comissão de
empresa, e o PCP no Barreiro já não era o que era, minado por velhos conflitos
entre famílias comunistas, a tal ponto que muitos “controleiros”
consideravam-no uma zona difícil, não porque houvesse poucos militantes, mas
porque havia muitos e, como já disse antes, história a mais. E nessa noite,
como nós não frequentávamos a “classe operária”, havia que ir vê-la ao Barreiro.
E lá fomos para o barco.
A
viagem de barco era belíssima, entre as luzes de uma margem e de outra, e,
depois de chegados, a pé lá fomos ver a CUF, até à portaria de entrada dos
operários do lado da cidade, e às voltas pelas ruas, percebendo muito bem porque
uma se chamava “Rua do Ácido Sulfúrico”, porque cheirava a qualquer coisa
cáustica. Tenho ideia de que não falámos muito no meio das luzes das torres
das fábricas e do ruído industrial, numa paisagem que hoje quase não existe em
Portugal, porque era uma experiência que nos tornava silenciosos. Se era
para ver os operários, o que recebemos foi o pacote completo: o mundo da fábrica,
de uma fábrica a sério, como não
havia outra em Portugal, um mundo para nós tão estranho como
Marte.
Quando
nos cansámos, percebemos que não tínhamos sequer pensado em qualquer horário de
regresso, mas conseguimos apanhar ou o último barco da noite ou o primeiro da
manhã, já não me lembro. Mas tínhamos visto o Barreiro, como se fôssemos em
peregrinação. Isto hoje pode parecer, a quem não viveu estes anos e estes
momentos, insignificante ou trivial, mas foram estes que nos fizeram. E
bem. Historiador
TÓPICOS: HISTÓRIA BARREIRO INDÚSTRIA CUF PCP TEJO LISBOA
COMENTÁRIOS:
José tavaresINICIANTE:
Alfredo da Silva está sepultado naquele local, como
tanta outra gente, a única diferença é que os outros não estão assinalados nem
têm mausoléu, é que ali era o velho cemitério do Barreiro. Provavelmente
ninguém se lembrou de dizer isso a Pacheco Pereira o que o levou a pensar que o
mausoléu poderia ser não legal.
04.10.2020 Conde do Cruzeiro INICIANTE: Um operário, é todo aquele que só tem como riqueza o
que recebe pelo seu trabalho. Gente pobre, honesta, trabalhadora, apenas porque
neste país a trabalhar ninguém fica rico. Causa principal, a má distribuição da
riqueza gerada no país, a burla e a corrupção. Mas é o que temos infelizmente e
JPP sabe bem do que estou a falar. 04.10.2020
Sandra. MODERADOR: Não se "frequenta" a classe operária. Ou se
pertence à classe operária, ou não se pertence. Veio-me à ideia aqueles ou
aquelas, sei lá, que iam para uma praia, "brincar aos pobrezinhos".
03.10.2020 Aónio Eliphis EXPERIENTE: Exactamente cara Sandra. É tão romântico ver a burguesia
fazer passar-se por proletário. 03.10.2020
Sandra. MODERADOR: Aónio, "A Fábrica do Nada". Aconselho
vivamente. 03.10.2020 orion EXPERIENTE: O PCP nada tem a ver com a Rússia, Venezuela e Coreia
do Norte. João Ferreira dixit. Radicais de direita e esquerda: refresquem-se. A
noite já vai longa. Bom dia. 03.10.2020
chagas antonioEXPERIENTE: Excelente filme, Sandra! Refrescante e profundo ao
mesmo tempo. E musical! 03.10.2020 DemocrataXXI EXPERIENTE: Ah, ah, ah muito bem visto Sandra. 04.10.2020 G.A..514866 INICIANTE: Se alguém de um estatuto ou de uma origem diferente de
outros, sentir empatia pelos seus problemas e quiser pensar e actuar sobre
eles, é perfeitamente normal que queira visitar o local onde essa população
vive e trabalha. Nunca poderá dizer que é um deles, mas o trabalho de campo é
isto mesmo e não tem nada que ver com ir ao Zoo. Deixem-se de complexos do
pobrezinho. 04.10.2020 Aónio Eliphis EXPERIENTE Durante a revolução francesa havia revolucionário de
origens aristocráticas que andavam descalços na rua para se passarem por
plebeus. Pacheco Pereira foi ao Barreiro, para ver como viviam aqueles que
jurava defender politicamente. 03.10.2020
orion EXPERIENTE: Você de 1789 só se apercebe dos aspectos pitorescos. O
resto, para si, é negócio. Cure-se. 03.10.2020
chagas_antonio EXPERIENTE: No Barreiro não existem só arquivos: existe uma
reserva de sabedoria e de participação cívica, que pode e deve ser explorada e
aproveitada nos tempos difíceis que se avizinham. Obrigado pela lucidez, JPP. 03.10.2020 julio amado INICIANTE: Onde houver um mineiro, onde viver um operário, cada
terra é um Barreiro, do barro do proletário' - Ary dos Santos 03.10.2020
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