No Sul, refiro-me especificamente ao
Norte de Moçambique, alvo de infiltrações e ataques jihadistas recentes,
especialmente em Cabo Delgado. José Pedro Teixeira Fernandes faz um
relato e uma análise de muito interesse histórico sobre o resultado deste abrir
de braços inquietante da Europa a islamitas radicais que querem impor os seus
dogmas pelo mundo que lhe abre democraticamente os braços, o que tem provocado
desacatos vários, especialmente neste ainda jovem século 21. E o terror
continua, mesmo com covid a confinar…
ANÁLISE
A França, a Turquia e o islamismo radical
PÚBLICO, 27 de
Outubro de 2020,
1. O
conflito entre a França e o islamismo radical não é novo. O assassinato por decapitação de Samuel Paty, ocorrido a 16 de Outubro de 2020 nos subúrbios de
Paris, foi mais um episódio trágico.
O seu autor, Abdoullakh Abouyedovich Anzorov, foi um jovem muçulmano
refugiado de origem chechena. Para cometer esse acto de
barbárie terá sido instigado pelo islamita radical Abdelhakim
Sefrioui e outros, entre os quais se encontra
também o pai de uma aluna do professor Samuel Paty. No simbólico do atentado terrorista está uma clara intenção de atingir o cerne dos valores da
sociedade francesa, em particular os valores laicos da república. A escolha de alvos altamente simbólicos para a
sociedade, feita pelos islamistas radicais (jihadistas), não é um mero
acaso. Basta recordar um outro atentado também perpetrado por islamistas
radicais, ocorrido a 26 de Julho de 2016, numa igreja em
Saint-Étienne-du-Rouvray, perto de Ruão. Nesse atentado, o octogenário
padre Jacques Hamel foi
barbaramente assassinado (degolado) e um dos fiéis ficou em estado grave.
2. Quer o professor Samuel Paty, quer o
padre Jacques Hamel, são apenas duas vítimas entre os muitos milhares de
mortos e de feridos graves que os atentados perpetrados pelos islamistas
radicais têm provocado, em França, na Europa e um pouco por todo o mundo
(incluindo nos próprios países muçulmanos).
Mas, no caso francês, existe, como notado, um simbolismo
particular nestes dois atentados terroristas. Mostram uma intenção de atacar o cerne
da identidade e valores franceses,
seja na sua versão tradicional religiosa cristã (simbolizada pelo ataque a uma
igreja e pela morte do padre), seja na sua versão republicana ligada à escola
laica (simbolizado pelo ataque e morte de um professor à saída da escola). A
mensagem é clara: não
há compromisso possível entre os valores do Islão, tal como os interpretam, ou
distorcem, os islamistas radicais (jihadistas) e os valores da França, seja na
sua versão tradicional religiosa cristã, seja na versão da república laica, de
valores e direitos humanos tendencialmente universais.
3. Após
o último atentado, o Presidente francês, Emmanuel Macron, decidiu actuar em termos políticos e jurídicos contra
o islamismo radical. Propôs-se
especialmente combater o separatismo promovido pelos islamistas radicais o qual
obsta, deliberadamente, a uma integração de muitos muçulmanos na sociedade
francesa. Estes
últimos, os islamistas radicais, têm por objectivo criar mundos à parte no
mesmo território. Pretendem
evitar a todo custo a absorção, pelas diversas populações muçulmana, dos
valores franceses em qualquer das versões apontadas — em especial os valores da
república laica, os quais são estruturantes da organização político-jurídica da
França contemporânea. Tais
populações são tipicamente oriundas de fluxos migratórios, antigos ou recentes,
com origem nas sociedades tradicionalistas muçulmanas Sul do Mediterrâneo. Têm, naturalmente, dificuldades de adaptação a uma
sociedade urbana e impessoal e imbuída de valores profundamente laicos (e
materialistas). Mas, neste combate político de Emmanuel Macron contra o
islamismo radical dentro do seu próprio país, estes últimos encontraram um aliado
externo de envergadura: a
Turquia de Recep Tayyip Erdoğan. Recorrendo a
uma linguagem truculenta e (ainda mais) imprópria diplomaticamente do que é
habitual, o Presidente da Turquia pôs em causa a sanidade mental
de Emmanuel Macron.
4. As
críticas e hostilidade de Recep Tayyip Erdoğan às políticas de integração das
comunidades muçulmanas na Europa e Ocidente, em particular às políticas mais
determinadas a prosseguir os valores seculares europeus, não são nada de novo.
Vê tais populações como um instrumento útil da sua política externa
(neo)otomana, pelo que quer evitar, o mais possível, que absorvam valores
democráticos, pluralistas e laicos pela via social, cultural e educativa. Anteriormente, Recep Tayyip Erdoğan incitou a
numerosa diáspora turca na Alemanha a resistir à integração no sentido de
absorção cultural e de valores pela sociedade germânica, irritando
Angela Merkel e o Governo alemão. Importa
clarificar que Recep Tayyip Erdoğan e o seu Partido da Justiça e
Desenvolvimento (AKP), não são islamistas radicais. Todavia, para os seus próprios fins de política
interna e externa, procuram usar e instrumentalizar os múltiplos grupos
islamistas radicais sunitas, desde os jihadistas do Daesh e outros mais ou
próximos (nas guerras da Síria e da Líbia) até à Irmandade Muçulmana (no Egipto
e com ramificações a muitos países europeus).
5. No passado, a Turquia
de Recep Tayyip Erdoğan projectava uma imagem para o mundo muçulmano diferente
daquela que procurava dar na União Europeia, para agradar aos europeus. Hoje o
Governo da Turquia sente-se demasiado forte para se dar a esse trabalho. Se voltarmos ao caso original das caricaturas
do Profeta Maomé vemos a raiz da actual atitude turca com mais nitidez. O caso começou na Dinamarca em finais de 2005 com a publicação feita originalmente pelo jornal Jyllands-Posten.
Em inícios de 2006 as caricaturas foram republicadas
em vários países europeus, em especial em França, tornando-se o jornal satírico
Charlie Hebdo um novo
alvo dos que contestavam tal publicação. Se
os europeus na época prestassem mais atenção ao que a Turquia dizia sobre
tal caso na Organização da Conferência Islâmica (OCI), não ficariam tão
surpreendidos com as actuais posições de Recep Tayyip Erdogan. Importa lembrar que, na altura, a OCI era até
presidida por um turco, Ekmleddin İhsanoğlu. Todavia, a Turquia não se
empenhou em explicar o funcionamento das sociedades europeias aos restantes
membros da OCI, em particular ao nível da liberdade de expressão e de imprensa
— um direito que permite a caricatura, mesmo que de mau gosto ou podendo ser
considerada ofensiva — como seria expectável de um candidato à adesão à União
Europeia. Procurou bem mais
mostrar-se solidária com os restantes países muçulmanos que condenaram
duramente a Dinamarca e todos os que publicaram as candidaturas na imprensa
europeia.
6. A
acrescer à disputa em torno da integração de populações muçulmanas na
Europa e sobre a forma de lidar com o
islamismo radical — no limite esta é uma disputa sobre os valores
estruturantes de uma sociedade, sobre os quais não se pode abdicar —, há hoje uma dimensão fortemente geopolítica na
rivalidade entre a França e a Turquia, a qual decorre sobretudo no Mediterrâneo
Sul e Oriental. Em grande parte, está ligada à já referida ambição
(neo)otomana da Turquia, de projectar
a sua influência e poder nos antigos territórios do Império Otomano que perdeu
em inícios do século XX, do Iraque à Líbia passando pelos Balcãs. Um episódio significativo ocorreu ligado ao conflito
da Líbia em Junho de 2020. Um navio
da marinha francesa que participava na operação Sea Guardian da NATO terá sido
alvo de uma acção agressiva por parte de fragatas turcas quando procurava
controlar um navio cargueiro (também turco) suspeito de violar o embargo de
armas com destino à Líbia. No cerne desse incidente estão os apoios a
facções opostas da guerra na Líbia. De um lado o governo da unidade nacional de Fayez
al-Sarraj apoiado política e militarmente pela Turquia, pelo Qatar e
pela Itália. No outro lado o Exército Nacional da
Líbia chefiado pelo marechal Khalifa Haftar, apoiado pelo
Egipto, Emirados Árabes Unidos e também pela França.
7.Neste
conflito, que é simultaneamente sobre os valores mais profundos de uma boa
sociedade e também geopolítico, Emmanuel Macron e a França necessitam de um claro apoio europeu na sua acção
contra o islamismo radical. Mais do que isso, necessitam de um apoio inequívoco
contra a tentativa de Recep Tayyip Erdoğan e da Turquia de condicionarem as
políticas francesas, alimentando protestos contra a França no mundo muçulmano e
ingerindo-se nos assuntos internos do país.
Todavia, para além das declarações de circunstância do Alto Representante da União para os Negócios
Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell — que
qualificou como inaceitáveis as declarações de Recep Tayyip Erdoğan sobre a
sanidade mental do Presidente francês —,
o apoio europeu à França é inconsistente.
Com Recep Tayyip Erdoğan e a Turquia a fazerem o contra-jogo dos islamistas,
facto ao qual acrescem os diferentes interesses geopolíticos dos europeus no
Mediterrâneo Oriental, a questão, como quase sempre, dividirá a União
Europeia. A Grécia e
Chipre — envolvidos
em antigos conflitos territoriais com a Turquia, agora também com uma nova
dimensão energética — apoiam de forma inequívoca a França. Mas outros Estados como a Alemanha ou a
Itália, que têm interesses particulares com
a Turquia, desde logo devido aos refugiados da Síria e ao apoio a diferentes
facções na Líbia, tendem a ser complacentes com Recep Tayyip Erdoğan. A
ser assim, o resultado será uma França e uma União Europeia permanentemente frágeis face ao islamismo radical e sem qualquer
estratégia
geopolítica sólida para lidar com a ambição de poder (neo)otomana da Turquia.
Investigador do IPRI-NOVA - Universidade
NOVA de Lisboa
TÓPICOS
MUNDO FRANÇA TURQUIA TERRORISMO RELIGIÃO DAESH IRMANDADE MUÇULMANA
COMENTÁRIOS:
Joao
MODERADOR: Algumas
notas, o Macron por acaso já tinha acordado, em Fevereiro “Em luta
contra o “separatismo islâmico”, Macron limita ensino do árabe e presença de
imãs estrangeiros”, um mês antes deste atentado o seu ministro deu conta
que já tinha fechado largas dezenas de “ONGs” muçulmanas. Há anos que eu
alerto para a cumplicidade destes “políticos” europeus, não só com os terroristas que matam na Síria e
onde for preciso a mando da aliança saudita/americana e da Nato, mas cá dentro,
por exemplo há quatro anos dizia o Público “em 1967, ao abrigo de um acordo que
lhe garantiu petróleo a preços mais baixos, a Bélgica autorizou a Arábia
Saudita a formar boa parte dos imãs que desde então pregam para as comunidades
magrebinas.”, com a Bélgica e com os outros pela Europa claro …
mzeabranches INICIANTE: Muito obrigada, por toda esta informação e reflexão.
Estamos num mundo cada vez mais perigoso, que põe em causa o respeito pelos
direitos humanos, tão duramente conquistados ao longo dos séculos, e que a
Europa tem obrigação de defender, frontalmente e sem subterfúgios.
Duarte Cabral EXPERIENTE: Isto ainda vai acabar mal. Ontem no artigo de opinião
de José Sasportes: "Em imediata resposta a Macron, o principal dirigente
da Irmandade Muçulmana, Ibrahim Mounir, proclamou no Cairo que as “leis
de Alá são superiores às da República”.
Qualquer comparação “entre o pensamento e os princípios do Islão, e a
intensidade da devoção dos seus partidários, e a realidade e a história dos
herdeiros da revolução francesa seria desfavorável aos herdeiros dessa
revolução”. O que é que a esquerda radical, tolerante, universalista tem a
responder a isto?
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