segunda-feira, 5 de outubro de 2020

É pena que se fique pela excelência da escrita


José Pacheco Pereira merece mais do que isto de escrever bem e ficar-se por aí. Ele merece ser chamado a participar na transformação desse nosso estatuto de permissividade de violência do forte sobre o fraco – quer se trate das lides académicas ou das forças armadas, (para não falar das outras lides) - que todos acham que é mesquinha e ninguém se dispõe a interferir, num jogo de escondidas cerimonioso e pusilânime - até porque vivemos em democracia, onde a liberdade de actuações faz parte do dogma. Não é fácil eliminar tal vileza neste jogo de praxes, sobretudo num país mesquinho como o nosso, que, desse modo, impõe uma superioridade ficcional aparente e momentânea, na vilania da sua inferioridade intelectual, vingativa e invejosa. Como, de resto, afirma a comentadora Carolina Nunes: D. João V, Marquês de Pombal, governos liberais do século XIX e até Salazar todos decretaram a abolição da praxe sob pena de expulsão, prisão, etc. e até hoje ela ainda existe. Por isso, homens como José Pacheco Pereira, respeitados pelo seu saber e ousadia, deveriam poder impor-se na formação moral deste pobre país de cumplicidades. Bastaria organizarem-se.

OPINIÃO: Diz o/a menino/a: “Ai como eu gosto de ser seviciado...”

Poucas coisas são mais deprimentes sobre o estado da chamada “juventude” do que a aceitação ou, pior ainda, a vontade da praxe, de a praticar e de ser “praxado”.

JOSÉ PACHECO PEREIRA      PÚBLICO, 26 de Setembro de 2020

Tenho algumas matérias recorrentes nestes artigos, que são uma espécie de campanha. Todas têm um aspecto em comum: o combate a formas atávicas do nosso atraso como sociedade, à nossa complacência com práticas inaceitáveis numa forma “civilizada” de viver, ou decisões que nos fazem andar para trás por inércia, preguiça ou cobardia. E deixem-se de hipocrisias, toda a gente sabe o que significa “civilizada”, por oposição a bárbara, ou “andar para trás”, em contraste com andar para a frente. Não precisamos de grandes polémicas sobre a “civilização”, nem sobre o sentido da história, para aceitarmos que há atitudes culturais que fazem o mundo em que vivemos, no pequeno tempo em que cá estamos, melhor. Direitos, garantias, comportamentos, que distinguem o mundo com tortura ou sem tortura, o mundo da igualdade entre homens e mulheres, o mundo que pune a violência, o mundo que preza, respeita e defende o adquirido na cultura e na ciência, o mundo que assenta na liberdade, o mundo em que se é “mais humano”, mais próximo do “milk of human kindness”, em vez do sangue.

Verdade seja dita que Lady Macbeth detestava essa “human kindness”, que associava à fraqueza, mas numa altura em que as sociedades democráticas estão em crise, com o reservatório do ódio das redes sociais, precisamos de dar força a essa humana fraqueza e não ser complacentes com a sobrevivência diária e reiterada de manifestações de barbárie de todo o tipo, no meio do nosso silêncio. Daí, voltando ao princípio, que escreva várias vezes sobre mil coisas pequenas e grandes que são da família alargada de Lady Macbeth, mesmo que não pareçam.

Três são recorrentes nestes artigos: a violência contra os animais traduzida no espectáculo do gáudio público com a tortura dos touros; outra, o aviltamento das praxes, e uma, que não parece ser da mesma família mas que é, a degradação da língua portuguesa pela ortografia oficial do “acordês. Em todas estas perversões ou não andamos para a frente, ou andamos para trás, e todas comunicam entre si num desprezo pela dor gratuita noutros seres, na vontade de sujeição e humilhação, de dar e de receber, por uns finórios de colher de pau na mão, e por fim na inércia na ignorância da riqueza expressiva da língua. As duas primeiras já cá não deviam estar há muito tempo, a terceira é o resultado de uma engenharia desastrosa que só sobrevive pela indiferença dos poderosos pela riqueza expressiva do português.

Hoje voltamos à praxe, esse mundo personificado por uma colher de pau que não é para cozinhar, por uma moca que é para partir cabeças e por uma tesoura que não é para esculpir os cabelos. A trilogia original era uma palmatória, uma moca e uma tesoura. Estes tempos de pandemia voltaram a colocar de novo a questão das praxes, que só a cobardia das instituições universitárias tem permitido sobreviver, com um pé ou mesmo com os dois dentro das instalações académicas ou nas suas imediações, poluindo as ruas das cidades com as cenas vergonhosas de poder e submissão.

Apetece dizer que há coisas boas que advêm de coisas más, e que a pandemia, ao levar as autoridades académicas a proibir com diferentes graus de rigor as actividades da praxe, são disso exemplo. Mas não digo, porque é tudo mau e mesmo esta proibição, que não é mais do que uma suspensão, vai deixar quase tudo na mesma, a não ser uma geração de órfãos da praxe, dos da colher de pau e dos que levam com ela.

A pandemia se há coisa que não faz é educar, como se vê num decreto de um grupo chamado em latim macarrónico Magnum Consillium Veteranorum: “A Tradição Académica, nas suas variadas vertentes, configura-se como uma componente integrante e indissociável da frequência do Ensino Superior em Portugal, com uma forte carga histórica e simbólica, sendo responsável pelo acolhimento e integração de sucessivas gerações de estudantes universitários numa nova fase da sua vida. Não obstante a assumida vontade em perpetuar esta Tradição…”, lá veio a covid estragar a festa da colher de pau. Estou, aliás, a imaginar os lamentos dos meninos e das meninas: “Olha que pena, logo este ano em que eu entrei para a faculdade não vou poder ser seviciado(a), para depois daqui a um ano poder andar a apascentar pelas ruas da cidade uns “caloiros” a fazer imbecilidades em público”.

Poucas coisas são mais deprimentes sobre o estado da chamada “juventude” do que a aceitação ou, pior ainda, a vontade da praxe, de a praticar e de ser “praxado”. Quanto a mim, podem ir a todas as manifestações verdes e pela Amazónia, ou chorar pelo Tibete, mas, se aceitarem andar a pintar a cara, a arrastar-se pelo chão e a engolir as obscenidades duns tipos vestidos de padre, numa exibição de sadismo e de masoquismo, é porque não cresceram o suficiente para ter voto em qualquer matéria.

Historiador

TÓPICOS  

OPINIÃO  PRAXE ACADÉMICA  ENSINO SUPERIOR  EDUCAÇÃO  UNIVERSIDADES  ESTUDANTES

COMENTÁRIOS:

Vasco Machado INICIANTE: Fazer analogia entre "engenharia" e "acordo ortográfico", isso sim, é uma "forma atávica do nosso atraso como sociedade", e consubstancia uma "prática inaceitável num forma 'civilizada' de viver"... 27.09.2020    Carolina Nunes INICIANTE: Deixem-se de paternalismos bacocos. Os alunos universitários não são crianças indefesas, são adultos livres de fazer as suas escolhas. A maioria dos praxados aceita pacificamente a praxe por um motivo: só pode praxar quem foi praxado. E na cabeça da maioria trocar um ano como praxado por todos os anos restantes da licenciatura e mestrado como praxantes é um bom negócio. Arménio Luís Alves dos Anjos INICIANTE: Talvez com umas aulas de cidadania os nossos jovens reflictam sobre a praxe. Alguém que aceita ser praxado e praxa só pode ser um cidadão sem qualificação. Humilhar e ser humilhado NÃO. Passei pela faculdade e pelo serviço militar, instituições onde a praxe era norma, mas nunca a suportei nem a fiz. E no SMO como oficial miliciano não a autorizava. A integração faz-se de outra forma: ensinando e ajudando os que estão num lugar estranho. Célio Caldeira EXPERIENTE: As praxes actuais, ainda que reprováveis e atentatórias da dignidade humana, não são nada quando comparadas com aquelas a que assisti na década de 60 do século passado, no liceu de província em que estudei. A começar pela diferença no porte físico entre um aluno do primeiro ano e outro do sétimo - diferença essa que é irrelevante no ensino superior - o que suscitava um sentimento não muito diferente do terror quando o "praxador" aparecia à frente do "praxado"; depois, o tipo de praxes e rituais impostos aos caloiros, verdadeiramente humilhantes e que relegam as praxes actuais para o canto das brincadeiras de crianças. As mais humilhantes eram a rapadela do cabelo ou a lavagem da escadaria do liceu num dia de temperaturas negativas. Quem tentasse esquivar-se sofria perseguições e não contava com qualquer defesa institucional; era colocado numa lista negra e quando fosse "apanhado" sofria a dobrar. Era lá permitido que faltasse ao respeito ao dux veteranorum! Estou a querer dizer que aceito as praxes actuais? Nada disso! Elas serão sempre estúpidas, porque perpetuam situações de vingança que se auto replicam ano após ano, cada uma mais estúpida que a anterior. Não sou contra os rituais de iniciação se eles envolverem uma intenção de boa integração do novato e com respeito pela sua dignidade, ainda que impliquem situações engraçadas e eventualmente embaraçosas, nunca ultrapassando a fronteira do bom gosto e da aceitação de todas as partes. Situações como aquelas a que eu assisti é que nunca mais! Espero que neste campo o futuro passe mais pelo bom senso.   PG INICIANTE: Excelente artigo. As "praxes" e as touradas são inaceitáveis. Os defensores de ambas evocam invariavelmente a "tradição". Nas últimas décadas tem-se felizmente posto fim a várias "tradições", incluindo ditaduras, tortura e pena de morte. Há certamente rituais de recepção aos novos alunos do ensino superior que não são de uma imbecilidade atroz, mas são raras a ponto de se tornarem invisíveis.   Vasco Machado INICIANTE: Retenho várias coisas neste artigo de opinião... desde logo, quanto à praxe, PP não se coíbe, como muitos outros, em falar do que não conhece! Criticar a praxe e pretender, por decreto, aboli-la, é acima de tudo, um insulto aos milhares de estudantes que, todos os anos, participam nestas actividades. Estaremos perante adolescentes indefesos, a necessitar de protecção legal? Serão todos diminuídos mentais, apesar do mérito académico (sim, em Medicina também há praxe!)? As actividades ou rituais de integração/iniciação/passagem estão generalizadas em muitos sectores da nossa sociedade (forças armadas e policiais, maçonaria, desporto, igreja, etc.) mas, por alguma razão que a razão desconhece, apenas a praxe realizada no ensino superior é perniciosa e precisa de ser proibida! 26.09.2020    PG INICIANTE: Vasco, tem medo que lhe tirem a colher? Não se preocupe, tem muitas outras de se afirmar. Algumas delas passam por estudar e pensar. 26.09.2020    Vasco Machado INICIANTE: Já não tenho idade para andar de colher na mão. Mas já andei. E, antes, fui praxado. Bem praxado. E, volvidas várias décadas, as melhores amizades e recordações desses tempos, vão todas dar a momentos e vivências relacionadas com a praxe e restantes tradições académicas. E efectivamente penso, penso muitos nos pobres de espírito que falam de algo que desconhecem e partem do princípio que os que aderem às tradições académicas (que não se resumem à praxe/recepção ao caloiro, mas abarcam também grupos de fados, tunas, orfeões, coros académicos, etc. etc.) são almas indefesas a necessitar de auxílio... 27.09.2020     mzeabranches INICIANTE: Um retrato do país: defende-se com o mesmo empenho e seguidismo a preservação de duas tradições - uma cruel e outra aviltante - e a vandalização da língua, que secularmente nos identifica, estrutura e define! 26.09.2020    car.freixos.877458 INICIANTE: Um dia perguntei a um pequeno grupo de praxados, gostam dessas "merdas" que vos fazem? Responderam quase em uníssono, gostamos.   José Trindade INICIANTE: O têm em comum as praxes e as touradas? Servem de distracção face a outros assuntos mais prementes e, convenhamos, mais melindrosos de se resolverem.      JPR_Kapa EXPERIENTE: Excelente JPP. Não podia estar mais de acordo - as praxes são um dos paradigmas da imbecilidade e estupidez humanas e ver alguma juventude a aderir a essas práticas diz muito da confusão que reina nessas cabeças e da falta de educação (exemplo maior onde falham os pais). Depois ainda querem acabar com a disciplina de cidadania? Para esses pais, filhos submissos ou garantidamente disponíveis para ser humilhados deve ser a prova suprema de redenção terrena.....que tristeza. Gualter Cabral EXPERIENTE: O espectáculo das praxes com a anuência dos seviciados, pais e instituições não só é uma degradação vexatória, como uma indicação clara e inequívoca do sentimento bárbaro do homem rudimentar possessivo. Podemos alargar o critério para os quartéis onde os recrutas são submetidos a toda a violência que os seus "superiores" lhe queiram infligir a coberto do, ainda, código napoleónico que vigora para satisfação dos prazeres despóticos de Suas Excelências.   Daniel A. Seabra INICIANTE: Alguns dos que obrigam os caloiros a tratá-los por doutores são os mesmos que não conseguem escrever um português aceitável nos testes de avaliação.   PG INICIANTE: Alguns? Que optimista!   Ricardo Moura INICIANTE: Bravo! Excelente texto!     Duarte Cabral EXPERIENTE: Os sem abrigos e a praxe académica na via pública são duas coisas que me envergonham enquanto cidadão português. Acabar com os primeiros é muito difícil, já com os segundos basta uma lei.    Carolina Nunes INICIANTE: Basta saber um pouco de história para saber que não é com uma lei que a praxe acaba. D. João V, Marquês de Pombal, governos liberais do século XIX e até Salazar todos decretaram a abolição da praxe sob pena de expulsão, prisão, etc. e até hoje ela ainda existe.   Jose Luis Malaquias EXPERIENTE: Penso que seria útil um debate entre JPP e o tal Magnun Consilium Veteranorum, pois penso que seriam mais as coisas que os uniriam do que as que os separam. Como alguém que estudou em Coimbra e que usava o traje todos os dias e não apenas nas festas, sou dos que mais lamenta e despreza o tal espectáculo degradante de andar a pintar caras e a pôr caloiros de quatro a pastar. Isso não é nem nunca foi a Praxe. Se JPP for ler qualquer código de Praxe de Coimbra não encontrará lá nenhuma dessas práticas e, pelo contrário, verá muitos dos seus maiores expoentes a condená-las sem qualquer reserva. A verdadeira Praxe, que infelizmente é muito deturpada, é de facto uma prática de acolhimento e de revivalismo histórico.   Adolfo-Dias INICIANTE: Não encontrará? Estão lá as rapadelas e as sanções de unhas, por exemplo... As horas de recolher, por exemplo... Atenção também eu acho que a praxe está muito desvirtuada daquilo que é suposto ser. Mas alguns dos disparates são "de origem".   Miguel Leitão 77 INICIANTE: No 1o ano na faculdade, detestei ser praxado, e admito que tenha até sido uma praxe higiénica e divertida. No 2o ano de faculdade, excluí-me das actividades de praxe, achava-as humilhantes e sem sentido. Passados 25 anos, continuo a ter mais pena dos mandantes imberbes, vestidos de pretensiosos fatos pretos, do que dos mandados. Não consigo perceber, no séc. XXI, como as universidades ainda o permitem oficialmente.    FPS INFLUENTE: A palavra é justamente essa, José Pacheco Pereira: deprimente. Um arrepio de deprimência que me deixa confuso de vergonha alheia, um asco que conduz ao desprezo que a ausência de graça não é superável e muito menos suportável. Todos estes sentimentos repulsivos, mas fazendo por não esquecer o horror criminoso de uma noite de inverno enfrentando o Atlântico que, como se sabe, não brinca mesmo em serviço. E não brincou, infelizmente!            Magritte EXPERIENTE: A praxe é um daqueles maus exemplos públicos e comuns que ao longo de muitos anos se continuou a permitir. Mas os ventos da mudança estão aí. O desastre do Meco, os mecanismos de queixa e (falta de) alternativas de acolhimento vão acabar por matar de vez essa tradição que, logo na universidade, promove o atavismo, o seguidismo e a submissão, num lugar que se quer de espírito crítico, diferença, novidade e combate. 26.09.2020    DemocrataXXI EXPERIENTE: A questão das praxes, é matéria para a tal disciplina de cidadania, mas quando as reitorias repudiam pela frente e aplaudem por trás está tudo dito. Proibir a praxe em tempos de Covid? O que é isto senão, ser permissivo com práticas humilhatórias? Corrijo, conivente com práticas de humilhação do próximo, degradantes do ponto de vista da dignidade humana e das escolas 26.09.2020

 

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