É uma exposição muito bem engendrada,
nestes tempos que correm, e sobretudo oportunista, para obstar à nova ascensão
de Trump à presidência
dos Estados Unidos. Apesar de tanta sabedoria, bem longe
do obscurantismo que aponta na população portuguesa, que, nos seus tempos de
lutadora da causa progressista, ferozmente tentou elucidar, com extrema
eficácia, como era natural, pertencente ela às elites difusoras da literacia
própria, que redundou plenamente naquilo que se viu de explosão ornamental de
cravos rubros a festejar situações da plena euforia lusa, dizia eu e retomo,
sem me perder, que, apesar de tanta sabedoria, julgando que politizava a
população portuguesa, logo os meios informáticos lhe vieram transtornar,
posteriormente, os cálculos, traumatizando-a, certamente, ao constatar que a
população juvenil pouco se interessa pelas questões políticas, entre outras
questões, etc e tal, como se sabe.
Pobres dos jovens sem grande futuro, todavia, neste infernal panorama de uma
Covid miserável, que lhes cerceia o futuro, para além da iliteracia política
que também talvez cerceie, na continuação de um passado vagaroso na
alfabetização, desde tempos bem recuados, hoje tornado ainda mais poderoso de
analfabetismo e desumanização, pela alienação mental que o uso excessivo desses
meios proporciona.
Mas voltando à vaca fria, que são os “moutons”
franceses, por conta da farsa do “Maître
Pathelin”, que já aqui referi, insisto que este excelente texto de Isabel do Carmo de rigor expositivo, sem pretensões de
ironizar, a que corresponde uma seriedade intelectual que há muito lhe
reconhecemos, pretende, todavia, como já o disse, abrir os olhos aos mais
iletrados, no sentido de uma vez mais impor a sua esquerda oportuna, para
denegrir Trump e lançar
uma luz de apoio ao candidato Biden,
indiferente à mancha negativa que sobre este pesa, além de outros óbices
importantes. E isso já não nos parece tão honesto da parte da articulista.
Quanto a Trump… ele aparenta ser um homem
completamente destituído quer de princípios quer de modos. E no entanto, a mim
parece-me, mau grado o seu desprezo pelo politicamente correcto, um cidadão
corajoso, sincero e ardiloso, dentro dos princípios de amor pela sua pátria,
cujos ascendentes e suas políticas pretende respeitar, entre outros êxitos de
governação, mau grado a covid.
OPINIÃO
A pandemia de obscurantismo
É, portanto, mais uma vez contra novas
formas de desigualdade que temos que lutar. Retirando a exclusividade de
literacia crítica às elites e facilitando-a àqueles a que se chamava “povo”, às
“massas”, para que a democracia seja mesmo democracia. É urgente. Mas é tarefa
difícil, que temos que encarar.
ISABEL DO CARMO
PÚBLICO, 28 de
Outubro de 2020
É o obscurantismo que sustenta o populismo e é este que põe em causa
o conceito e a prática de democracia.
Impõe-se a necessidade de análise desta realidade. Uma boa parte do poder
político mundial apoia-se nele e não pretende mudá-lo. A velha ideia de que a
alfabetização dava poder aos povos, não chega. Estamos perante novos meios de
comunicação e nunca como hoje foi tão necessária a literacia crítica, o
pensamento crítico. Não só e também para as “elites”, mas como necessidade para
as chamadas “massas”.
Muito da Esquerda mais esquerda, da
social-democracia, dos republicanos, vem na genealogia da Revolução Francesa e
das Revoluções Liberais também portuguesas (sempre a aprender com Fátima Sá e
Miriam Halpern Pereira), que transformaram os súbditos em cidadãos e teriam
também a ideia de os equipar com a capacidade de leitura. Não é por acaso que algumas das
líderes dos bairros da Comuna de Paris eram professoras primárias, tal como
algumas mulheres do chamado Socialismo Utópico. Assim foram algumas das nossas republicanas e os
grémios escolares, antes e durante a República, prosseguiam esse ideal da alfabetização.
Durante
a ditadura, e enquanto puderam, as Universidades Populares criadas por
Bento de Jesus Caraça e as escolas
de esperanto abriam
conhecimentos para além do ensino elementar. Assim chegámos ao movimento revolucionário
do 25 de Abril, com este ADN de todos aqueles que nele se envolveram. E com 40%
de analfabetos. Alfabetizar
foi um desígnio e bem. As escolas de adultos, a telescola e, mais tarde, as
Novas Oportunidades deram instrumentos para ir mais longe no conhecimento e,
portanto, ter mais algum poder. Mas não chegava… Os novos alfabetizados
estavam ainda muito longe das elites que tinham acesso às direcções partidárias
e ao exercício do poder. Alguns pensavam que devagarinho íamos lá e que era
preciso ir educando o “povo”. Mal sabíamos nós que nos ia cair em
cima o Facebook, o WhatsApp, o Instagram, o Google, o YouTube e outros.
A contradição é enorme. Graças a eles
eu tenho acesso a artigos de investigação de todo o mundo, em vez de depender
de um centro de documentação universitário onde ia buscar cópias. Recuando alguns anos mais, tinha que pedir a uma
empresa farmacêutica que os obtivesse e mais atrás ainda (tempos de estágio)
dependia duma casa de fotocópias para as bandas do Chiado. Este foi o percurso
da minha geração. Quanto a escritos ou livros políticos, dependíamos do
Sud-Expresso.
Com as novas redes informáticas, abriu-se-nos o mundo, sem qualquer
deslocação física, e isso é bom. No
entanto, contraditoriamente, estas maravilhosas redes foram o veículo da
divulgação de explicações obscuras, de factos que não ocorreram, de ardilosas
agendas que manipulam milhões de pessoas. A chamada pós-verdade. O Facebook tem 2603 milhões de utilizadores e o
WhatsApp e o YouTube têm 2000 milhões. Como vivem da publicidade, explícita ou
implícita, os lucros são também na escala dos mil milhões anuais. Quanto à
Internet, é utilizada por mais de metade da população mundial – 4,57 milhares
de milhões. O
pensamento obscurantista, ardiloso, falso, enganador, é pois espalhado à escala
de milhões. Não estamos a falar de populações com religiões animistas que vivem
numa lógica diferente das populações alfabetizadas. Estamos a falar de populações
que sabem ler no ecrã e até lêem rapidamente. Terão elas literacia? E terão
literacia crítica? Terão pensamento crítico? Tudo aponta para que uma grande
parte não tenha nem literacia crítica nem pensamento crítico. E isso está a ser
perigoso para o ser humano.
Socorro-me
de um extenso artigo do investigador português de alto gabarito da
Universidade Livre de Bruxelas, José Morais, publicado em conjunto com Régine Kolinsky (para quem quiser ter acesso, Journal of Cultural Cognitive
Sciences, 9 de Junho 2020), que traduzo por “Observar
o pensamento: um instrumento cognitivo cultural".
Para a análise que aqui pretendo deixar em aberto, os investigadores explicam que
literacia é diferente de literacia crítica, que pensar (alguns
animais parece que pensam) é diferente de raciocinar, que ler automaticamente é
diferente de compreender. Que
ler é diferente de explicar o que se leu recorrendo à escrita articulada, isto é,
redigir. Ainda em relação à articulação, que corresponde também à compreensão,
note-se que muitas vezes na Net a linguagem é desarticulada. São flashes de
palavras.
Ter
literacia crítica corresponde a fazer perguntas perante o que se lê: é verdade? Isto
que estou a ler tem alguma lógica? Corresponde a encontrar
contradições, incorrecções, falsidades. E
ser capaz de as discutir com contraditório, com alternativas e com argumentos.
Ora bem, estudos fiáveis realizados mostram que nos países desenvolvidos há
30% de pessoas com literacia crítica e nos outros 10%. E quem são esses?
Os que por razões sociais estão equipados com os melhores graus
de instrução. A
desigualdade é, mais uma vez, a estrutura em que assenta esta capacidade de
discernir. E as elites dos poderes políticos que usam esta desigualdade de
discernimento autoperpetuam-se. Para além da desigualdade de grau e
qualidade de instrução, todos nós temos que nos defender das nossas ignorâncias. Pois
quanto mais ignoramos um assunto, mais tendência temos para acreditar numa
“verdade” que nos querem vender, o que está provado em vários estudos. Dir-se-ia que a burocracia das administrações
públicas se ia simplificar? Não. A burocracia online multiplicou-se. Só
depende de um click e da sua própria exclusividade como meio.
Dir-se-á que as “massas” que lêem estas falsas notícias e que aderem
ao discurso soletrado e de frases curtas de Trump são estúpidas? E nós é que
somos os inteligentes? Longe disso
Ora,
verifica-se que são populações alfabetizadas que todos os dias trocam mitos
por história, opiniões por factos, mentira por verdade. Aceitam
sem cepticismo o que lêem na Net. A “verdade” da Net passa a funcionar como o
“até deu na televisão”. Só que a esta fonte podem pedir-se responsabilidades. À
Net, não. Há uns que acreditam
na Terra Plana ou que a Criação aconteceu como descrita no Antigo Testamento
(relembre-se que este vem do tempo dos rapsodos e da oralidade). Mas outros há que, sem ir tão longe, ficam mais
perto. Ouço, certamente com uma frequência semanal, pessoas de nível
universitário acreditarem sem pensamento crítico em teorias pseudo-científicas a respeito de glúten,
lactose, hidratos de carbono, desintoxicação, “energia”, ou que comer carne
traz maus instintos. Digamos
que estes mitos dizem respeito ao corpo de cada um(a). Ou então o mito satisfaz a imaginação. Acreditar
que o coronavírus da covid-19 foi fabricado em laboratório é com certeza
mais “interessante” do que perceber que existe na natureza, tal como outros. Assusta mais quando o mesmo nível de “factos”,
“verdades”, “teorias” se espalha entre as massas, manipuladas pelo poder
político. Quando, por exemplo, activistas New Age, que sempre navegaram
inocentemente no obscurantismo do “natural”, derivam agora para o QAnon, grupo anónimo
apoiante de Trump que espalha notícias falsas, entre elas acusações de
pedofilia dirigidas aos adversários políticos. Nada que já não tenha sido feito
em Portugal.
Dir-se-á
que as “massas” que lêem estas falsas notícias e que aderem ao discurso
soletrado e de frases curtas de Trump são estúpidas? E nós é que somos os
inteligentes? Longe disso. A inteligência faz parte do desenvolvimento do ser
humano. A capacidade de raciocínio e de transmissão de conhecimento corresponde
à evolução humana. Todos os seres humanos são inteligentes e capazes de
raciocínio, sem depender de características genéticas herdadas. É o meio
ambiente, a comunidade, o grau de instrução, que vão dando capacidade de
raciocínio, de discernir, de pôr em causa. E as opções dependem de múltiplos
factores. Veja-se o caso de gémeos iguais, mas educados em meios desiguais. É, portanto, mais uma vez contra novas
formas de desigualdade que temos que lutar. Retirando a exclusividade de
literacia crítica às elites e facilitando-a àqueles a que se chamava “povo”, às
“massas”, para que a democracia seja mesmo democracia. É urgente. Mas é tarefa
difícil, que temos que encarar.
Médica; professora da Faculdade de Medicina
de Lisboa; activista política
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COMENTÁRIOS;
Marcelo Melo INICIANTE: Brilhante exposição.
Jose Luis Malaquias EXPERIENTE: Brava!
Jorge Lampreia INICIANTE: Nem mais! Mais artigos, por
favor!
Antonio S Santos INICIANTE: Totalmente na “mouche”, cara
colega. Antonio Simas Santos
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