sábado, 31 de outubro de 2020

Tempos antigos para memória


Em vez das notícias da saúde, enviou-me o Dr. Salles, como efeméride, o poema “ANIVERSÁRIO” de Álvaro de Campos, antecedida do extracto biográfico acerca do heterónimo. Já então, na meninice deste, se festejavam os anos, para sua imortalização futura, ligada ao conceito pesado do efémero, o qual efémero em Pessoa não se verificará, mau grado a tristeza que escorre do seu poema. Hoje, devido a um perigoso vírus, já os meninos mal festejam os seus anos, talvez para lembrarem mais tarde, sem tanto impacto literário, contudo, – quem sabe? - já que aquele disse tudo sobre o absurdo, sendo que, nos anos da sua infância, como contraste, “a alegria estava certa como uma religião qualquer…”. Fiquemos, pois, com o poema de Álvaro de Campos, fazendo votos sinceros pela saúde de HSF.

 EFEMÉRIDE – ainda a tempo EFEMÉRIDE – ainda a tempo

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 31.10.20

Álvaro de Campos

"Nasceu em Tavira, extremo sul de Portugal, no dia 15 de outubro de 1890. Teve uma educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro Mecânica e depois Naval. Todavia não exerceu a profissão por não poder suportar viver confinado em escritórios”. (Fernando Pessoa)

 

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

 

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,

O que fui de coração e parentesco.

O que fui de serões de meia-província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino,

O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...

A que distância!...

(Nem o acho... )

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

 

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,

Pondo grelado nas paredes...

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim...

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

 

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,

O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

 

Pára, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

 

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos  (in "Poemas")

COMENTÁRIOS:

Francisco G. de Amorim 31.10.2020: Muito BOM

Anónimo 31.10.2020: Sempre a surpreender-nos agradavelmente, Henrique. Muito bem recordada a data do aniversário do Álvaro de Campos, que, de acordo com o seu Criador, e como testemunhou junto de Adolfo Casais Monteiro, nasceu a 15 de outubro de 1890, às 1h30 da tarde… E como também muito bem dizes, foi para a Escócia estudar engenharia, designadamente naval em Glasgow. Queres saber que, quando estive na Setenave encontrei, pelo menos, um engenheiro naval (naquele tempo eram conhecidos por arquitectos navais) formado exactamente em Glasgow? Tenho a sorte de ter uma gravação de poemas de Pessoa, designadamente “Aniversário”, ditos por Paulo Autran. Quando lia o poema no teu post, mentalmente ia ouvindo a voz de Paulo Auntran. Esse disco, comprado em S. Paulo, quando lá vivia, contém alguns outros poemas do nosso aniversariante, como a “Ode Triunfal” (Ó rodas, ó engrenagem, r-r-r-r-r-r-r eterno!). É preciso ser um grande declamador e ter uma dição fabulosa para poder recitar aquela Ode, a qual surgiu, ainda segundo o seu autor, “num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda”. De acordo com um livro de Fernando Pessoa (Ficções do Interlúdio, edição também brasileira) o poema “Aniversário” está datado de 15/10/1929, pelo que é legítimo admitir que o poema foi a atenção que Álvaro de Campos quis ter perante o seu Criador, naquele dia festivo. Deixa-me acrescentar um parágrafo, até em atenção a um teu fiel leitor, sempre pronto a deixar o seu comentário (já o fez, desta vez) e que sei que vive no Rio de Janeiro. Tive um grande orgulho quando constatei a admiração que os brasileiros tinham por Fernando Pessoa, admiração essa que se consubstanciava em saraus, privados ou públicos, sobre Pessoa e declamação, bem como discussão, da sua poesia, para além de as montras das livrarias de S. Paulo terem, habitualmente, livros seus. Já não tenho presente, mas creio que sim, se a sua poesia era estudada nas Escolas. Nas Faculdades de Letras, certamente que era. Tenho mais livros sobre o nosso poeta comprados em S. Paulo do que em Lisboa. Finalmente, na disciplina de Português (ou Literatura) inserida na preparação para admissão ao Instituto Comercial, no ano letivo 1960/61 (já vais perceber a razão de o explicitar), o professor a certa altura disse qualquer coisa como isto: “Para mim, e para mais alguns hereges como eu, Fernando Pessoa é um poeta como lírico (não como épico) superior a Camões”. Calculas, Henrique, o choque que foi, depois de tudo o que tínhamos ouvido dizer de Camões, alguém, naquele tempo, vir a pôr em causa o que estava tão interiorizado em nós? Abraço.Carlos Traguelho

Henrique Salles da Fonseca, 31.10.2020

“A minha casa maior”
(inspirado no poema de Álvaro de Campos “Realidade”. Transcrevo apenas alguns excertos do poema dele e abaixo o meu. Maria Emília Gonçalves)

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos…
Nada está mudado – ou, pelo menos, não dou por isso …
…Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.
……………………………….
Hoje se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
……………………………………………………
Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro,
…………………………………………………………………………..
Talvez isto realmente se desse…
Verdadeiramente se desse…
Sim, talvez…
(excertos do poema “Realidade” de Álvaro de Campos)

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A MINHA CASA MAIOR…

Sim, há mais de vinte anos eu morava aqui
neste largo grande demais para a minha pequenez
e era feliz, tão feliz...
Ou serei mais agora que recordo essa nostalgia
desejando regressar à casa que habitava!

A casa ainda lá está, nesse largo,
com outros personagens instalados,
todos os dias uns, todos os dias outros,
porque essa casa é agora uma pousada
e contudo as casas não sabem de nada…
Lembro-me dos pequenos momentos
em que brincava no largo!
Hoje passados vinte anos,
não habito mais esse lugar.
Sim, o mistério do tempo!

Na velha casa perdida da minha infância,
continuam a morar os meus velhos queridos:
Os outros sentirão isto como eu?
Hoje como ontem,
passei por várias casas
mas a minha casa maior é a NATUREZA:
Misturo, amasso palavras, lembranças
e as palavras voam como o tempo que passou;
Há mais de vinte anos
por entre as copas das árvores ouvia cantar os pássaros:
Hoje continuo a abrigar-me nelas;
Esta festa cá fora, a festa lá dentro,
as árvores enchendo-se de folhas
ou desnudando-se eróticas
em sílabas nuas
que vêm poisar na minha pele mansamente;
Talvez isso realmente se dê,
Talvez isso realmente se desse,
Sim talvez!  
Mª Emília Gonçalves

Adriano Lima 31.10.2020

Bem lembrado, Dr. Salles. Quem lê este poema encontra aquela dimensão da poesia que só a genialidade de Pessoa nos oferece. Devo confessar, com mágoa, que no liceu pouco ou nada me ensinaram de Pessoa, como se ele tivesse de ser marginalizado pela sua ousadia criativa de transgredir as normas por que se regia a poesia clássica: a arrumação textual com respeito ao uso da rima, da métrica e outros grafismos. Não sei se era assim ou não, mas permito-me esta suspeição.
Conforme vemos neste poema de Álvaro de Campos, assim como noutros, a poesia pessoana é marcada por uma oralidade e prolixidade espalhadas em versos longos, quase expressão em prosa, despejando torrentes incontidas de emoção impulsiva, ou se mais refreada nem por si menos expressiva dos seus sentimentos mais angustiantes.

A originalidade criativa de Pessoa é fragmentar-se em heterónimos representativos de entidades existenciais, num processo de mistificação atrás da qual o poeta revela a íntima essência do seu psiquismo. A poesia que publicou em seu próprio nome acaba por ser tão heterónima como as outras, mas podendo dizer-se que é como Álvaro de Campos que o poeta mais desnuda a sua alma.
Neste poema, “Aniversário”, Pessoa evoca a sua infância feliz e despreocupada, contrapondo-a à fase final da sua vida, em que o poeta exprime a sua amargura, pessimismo e desilusão perante a realidade da existência humana.

Procurando uma explicação e forçando uma analogia, diria que ao evitarem sobrecarregar a mente dos adolescentes com a poesia pessoana, é como se os responsáveis pela Educação quisessem manter nos jovens o mesmo mundo de inocência despreocupada que Pessoa evoca poeticamente no seu “Aniversário”. Mas sabemos que não era assim, porque a sorte ou as contingências naturais da vida não proporcionavam a todos as mesmas condições de felicidade. Obrigado, Dr. Salles e prezados companheiros comentadores, por este belo momento. Adriano Lima

 

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